“Nem em Israel encontrei tanta fé” (Lc 7, 1-10)
Voltando às celebrações dos domingos do Tempo
Comum, o nosso texto de hoje abre uma seção de Lucas que vai de 7,1 até 9,6. A
mensagem dessa parte do Evangelho tinha muita relevância para as comunidades
lucanas, constituídas em grande parte de pessoas provenientes do
paganismo.
As narrativas deste bloco demonstram que Jesus
atravessava as fronteiras criadas pelos homens para separar os considerados
“puros” dos taxados de “impuros”, e assim restaurar a vida ameaçada.
Inicia-se com duas narrativas que relatam como Jesus curou um homem doente (o
empregado do centurião) e ressuscitou um homem morto (filho único da viúva de
Naim) em 7, 1-17, e termina com a cura de uma mulher doente (com fluxo de
sangue) e a restauração da vida a uma moça morta, a filha de Jairo (8,
40-56).
O relato de hoje prevê a futura missão da Igreja
aos gentios. Gira ao redor de um centurião romano em Cafarnaum (talvez a
serviço de Herodes Antipas) cujo empregado está à beira da morte. Tem certo
paralelo com a história, também lucana, da conversão do primeiro gentio, no
livro de Atos, de um centurião chamado Cornélio (At 10). Nesta Cornélio
também é elogiado como homem que respeitava o povo judeu e dava esmolas (At 10,
1-2).
O texto de hoje fala de uma comitiva de anciãos
judeus que pedem que Jesus atenda o centurião porque ele tinha feito boas obras
em favor da comunidade do povo judeu. Assim eles o consideram digno de ser
atendido, como se fosse judeu e não gentio impuro. Em contraste, o próprio
centurião manda dizer que ele não é digno nem merece que Jesus fira a Lei de
pureza entrando na sua casa. Ele reconhece o poder da palavra de Jesus de
vencer o poder da morte. Jesus afirma que ele é digno de ser atendido não
porque tivesse feito boas obras em favor da comunidade judaica local, mas
porque ele acredita que Deus vence a morte através de Jesus e da sua palavra. Ele,
fora da comunidade religiosa de Israel, tem essa fé enquanto os que podiam e
deviam ter não a tem.
Como muitos textos de Lucas, especialmente os
tocantes à questão da ação misericordiosa de Deus, este trecho no fundo desafia
a mentalidade muitas vezes embutida em pessoas religiosas, sem que elas
notem. Mesmo quando se dá a impressão de estarmos agindo movidos pela fé,
na verdade subjaz a mentalidade de “troca” ou de “merecimento”. No texto
de hoje, por exemplo, embora os anciãos judeus tomem atitude ousada em favor do
centurião pagão, é só porque “ele merece”.
A misericórdia de Deus, porém não funciona por
“merecimento”, mas por gratuidade. É o que se demonstra também no
capitulo 15 na parábola do Pai misericordioso e dos dois filhos. O
“pródigo” não pede para ser aceito como filho, pois “não merece”, mas o pai nem
lhe responde... Porque a lógica do perdão e da compaixão é outra.
É um grande desafio para a Igreja e para todos nós
nos libertar dessa mentalidade no fundo quase que “comercial” e entrar na
lógica de misericórdia e compaixão, como o Pai e também Jesus, nas suas
relações com a realidade de homens e mulheres em diversas situações de
fraqueza.
Esta é a grande intuição do Papa Francisco, pois é
o fundamento da “Boa Nova” – O Evangelho – e por isso cria tantas dificuldades
para muitos cristãos que não são conscientes de quanto faltamos com a
gratuidade e a compaixão. Que o nosso modelo seja o verdadeiro Deus de
Jesus “cujos caminhos não são os nossos, cujos pensamentos não são os nossos”
(Is 55, 8-9).
Tomaz Hughes SVD
Nenhum comentário:
Postar um comentário