Fonte de insegurança
Uma das expressões
mágicas do conservadorismo brasileiro é "insegurança jurídica". São
muitas expressões e mágicas, com poder assombroso, para os mais diversos fins.
É devido em grande parte a uma delas, por exemplo, que o prestígio do Supremo Tribunal Federal não anda lá essas coisas:
"Assunto interno do Congresso". Preferida em sua versão pedante, no
latim "interna corporis", com frequência a expressão é posta em atividade no Supremo, para
dispensá-lo de abacaxis jurídicos com risco de confrontar fortes correntes políticas e de opinião pública,
ou acirrar a difícil convivência no próprio tribunal. Impeachment,
Eduardo Cunha e as alegadas pedaladas, entre outros incômodos, têm mobilizado o
"interna corporis".
"Insegurança
jurídica" é um trator verbal. Propostas inconvenientes ao território do
dinheiro grosso são demolidas com facilidade ao som da ameaça. Todas criam
"insegurança jurídica", uma pretensa instabilidade da legislação e da
propriedade, na qual não há investimentos estrangeiros e há fuga de capitais, o
empresariado se recolhe e a economia desanda. A desgraça. Direitos sociais, avanços
trabalhistas, reforma agrária, legislação rural são motivadores involuntários e
constantes do trator "insegurança jurídica".
Em última instância,
compete ao Supremo Tribunal Federal dirimir nós jurídicos e divergências legais
mais resistentes, conter o ataque de inconstitucionalidades e, assim, assegurar
a estabilidade jurídica. É uma obra permanente. Feita, porém, em simultaneidade
com uma contribuição para a insegurança jurídica que, no mínimo, enfraquece a
autoridade do Supremo.
O Regimento Interno
(RI) do STF é como uma lei limitada e específica. Mas, se regula os
procedimentos no e do tribunal, também se destina à sociedade: propõe-se a dar
aos cidadãos rigor e igualdade de tratamento dos seus processos na instância
mais alta do Judiciário. Propõe-se e não dá.
Os prazos são fundamentais para aplicação de justiça.
Enquanto não há decisão, uma parte está injustiçada ou em risco de sê-lo. Por isso, o RI estabelece prazos precisos para seus ministros e para
advogados, e, se necessárias, alternativas definidas.
No ano passado, o
ministro Gilmar Mendes desempenhou
o papel democrático de demonstrar à população como o respeito a prazos foi
subvertido no Supremo. Com sua melhor simpatia, propalava em público a opinião
a favor do financiamento eleitoral por empresas. Antecipava o seu voto, pois. Mas o reteve por um ano e meio. Por mero desafio ou
deboche aos favoráveis a contribuições pessoais, estando já decidida por 6 em
11 votos a derrota de Gilmar Mendes. Um ano e meio em lugar da devolução do
processo no prazo do RI: duas sessões
após o pedido de vista.
O Conselho Federal da
OAB, representado pelo jurista Fábio Konder Comparato, entrou no STF com um
recurso chamado embargo de declaração. A causa pediu a definição do Supremo
sobre a inclusão na anistia, ou não, de crimes de desaparecimento forçado de
pessoas e de ocultação de cadáver. São crimes continuados ou permanentes, não
se considerando encerrados até que o sequestrado reapareça ou o cadáver seja
encontrado. Questão importante sobre a extensão da anistia.
Relator, o ministro Luiz Fux retém o processo há quatro
anos. O RI determina que tal recurso seja julgado
na primeira sessão ordinária após seu recebimento. Diante
disso, o PSOL entrou com novo recurso, para saber se a demora do julgamento
representa recusa de prestação de justiça. O ministro Dias Toffoli recusou o
recurso. Mais um recurso dirige-se agora ao Conselho Nacional de Justiça. Entre
advogados, não falta quem aposte em que o CNJ vai se declarar impossibilitado
de decisão sobre o STF. Se não há prazo
aqui, restará o recurso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde
o Brasil está condenado desde 2010, pelos crimes do Exército na caça à
guerrilha do Araguaia. A Corte, aliás, já declarou "inepta" a
interpretação da Lei da Anistia pelo Supremo.
Quase se pode dizer
que ninguém, entre os recorrentes ao Supremo, consegue saber o que ali sucederá
com o seu processo. Depende muito de quem seja o ministro sorteado para
relatá-lo. Depende de quem ou o que figure na causa. Depende de qual seja a
causa. Não é assim com todos os ministros, mas seria temerário dizer que só é
assim com um outro.
Se ministros do Supremo não cumprem o Regimento Interno
do Supremo em um ponto fundamental, e os cidadãos, por consequência, não têm
garantias sobre a tramitação dos seus eventuais processos, não há segurança
jurídica. E a verdadeira insegurança jurídica começa no Supremo Tribunal Federal. Assim será enquanto perdure, livre e irreparável, a arbitrariedade de
ministros em relação ao regimento e à destinação de processos.
Janio de Freitas
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