"A
verdade vos tornará livres: Fake news e
jornalismo de paz
Mensagem do Papa Francisco para a
Jornada Mundial das Comunicações Sociais
No contexto duma comunicação cada vez mais rápida e dentro dum sistema
digital, assistimos ao fenômeno das «notícias falsas», as chamadas fake News. Isto convida-nos a refletir, sugerindo-me dedicar esta Mensagem
ao tema da verdade. Gostaria, assim, de contribuir para o esforço comum de
prevenir a difusão das notícias falsas e para redescobrir o valor da profissão
jornalística e a responsabilidade pessoal de cada um na comunicação da verdade.
1. Que há de falso nas «notícias
falsas»?
A expressão fake news é objeto de discussão e debate. Geralmente diz respeito à desinformação transmitida on-line ou nos mass-media tradicionais. Assim, a referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados
inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos prefixados, influenciar opções políticas e
favorecer lucros econômicos.
A eficácia das fake news se deve, em primeiro lugar, à sua natureza mimética, ou seja, à capacidade de se apresentar como plausíveis. Falsas
mas verosímeis, tais notícias são capciosas, no sentido que se mostram hábeis a
capturar a atenção dos destinatários, apoiando-se sobre estereótipos e
preconceitos generalizados no seio dum certo tecido social, explorando emoções
imediatas e fáceis de suscitar como a ansiedade, o desprezo, a ira e a frustração.
A sua difusão pode contar com um uso manipulador das redes sociais e das lógicas que subjazem ao seu
funcionamento. Assim os conteúdos, embora desprovidos de fundamento,
ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos categorizados
dificilmente conseguem circunscrever os seus danos.
A dificuldade em desvendar e erradicar as fake news é devida também ao fato de as pessoas interagirem muitas
vezes dentro de ambientes digitais homogêneos e impermeáveis a perspectivas e
opiniões divergentes. Esta lógica da desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um confronto sadio com outras
fontes de informação (que poderia colocar positivamente em discussão os preconceitos e abrir para um diálogo construtivo), corre-se o risco de
se tornar atores involuntários na difusão de opiniões tendenciosas e infundadas. O
drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como
inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo,
as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes
e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o
ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade.
2. Como podemos reconhecê-las?
Nenhum de nós se pode eximir da responsabilidade de enfrentar
estas falsidades. Não é tarefa fácil, porque a desinformação se baseia muitas
vezes em discursos variegados, deliberadamente evasivos e subtilmente
enganadores, valendo-se por vezes de mecanismos refinados. Por isso, são
louváveis as iniciativas educativas que permitem apreender como ler e avaliar o
contexto comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de
desinformação, mas atores do seu desvendamento. Igualmente louváveis são as
iniciativas institucionais e jurídicas empenhadas na definição de normativas
que visam circunscrever o fenômeno, e ainda iniciativas, como as empreendidas
pelas tech e media
company, idôneas para definir novos critérios
capazes de verificar as identidades pessoais que se escondem por detrás de
milhões de perfis digitais.
Mas a prevenção e identificação dos mecanismos da desinformação
requerem também um discernimento profundo e cuidadoso. Com efeito, é preciso
desmascarar uma lógica, que se poderia definir como a «lógica da serpente»,
capaz de se camuflar e morder em qualquer lugar. Trata-se da estratégia
utilizada pela serpente – «o mais astuto de todos os animais», como diz o livro
do Génesis (cf. 3, 1-15) – a qual se tornou, nos primórdios da humanidade, artífice da primeira fake news, que levou às trágicas consequências do pecado, concretizadas
depois no primeiro fratricídio (cf. Gn 4) e em inúmeras outras formas de mal contra Deus, o próximo, a sociedade e a criação.
A
estratégia deste habilidoso «pai da mentira» (Jo 8, 44) é precisamente a mimese, uma
rastejante e perigosa sedução que abre caminho no coração do homem com
argumentações falsas e aliciantes. De fato, na narração do pecado original, o
tentador aproxima-se da mulher, fingindo ser seu amigo e interessar-se pelo seu
bem. Começa o diálogo com uma afirmação verdadeira, mas só em parte: «É verdade
que Deus vos proibiu comer o fruto de qualquer árvore do jardim?» (Gn 3, 1). Na realidade, o que Deus dissera a Adão não foi que não comesse de nenhuma árvore, mas apenas de uma árvore: «Não comas o [fruto] da árvore do conhecimento do bem e
do mal» (Gn 2, 17). Retorquindo, a mulher explica
isso mesmo à serpente, mas deixa-se atrair pela sua provocação: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto
da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Nunca
o deveis comer nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”» (Gn3,
2-3).
Esta
resposta tem sabor a legalismo e pessimismo: dando crédito ao falsário e
deixando-se atrair pela sua apresentação dos fatos, a mulher extravia-se. Em primeiro
lugar, dá ouvidos à sua réplica tranquilizadora: «Não, não morrereis»(3, 4).
Depois a argumentação do tentador assume uma aparência credível: «Deus sabe
que, no dia em que comerdes [desse fruto], abrir-se-ão os vossos olhos e sereis
como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal»(3, 5).
Enfim,
ela chega a desconfiar da recomendação paterna de Deus, que tinha em vista o
seu bem, para seguir o aliciamento sedutor do inimigo: «Vendo a mulher que o
fruto devia ser bom para comer, pois era de atraente aspeto (…) agarrou do
fruto, comeu» (3, 6). Este episódio bíblico revela assim um fato essencial para
o nosso tema: nenhuma desinformação é inofensiva; antes pelo contrário, fiar-se
daquilo que é falso produz consequências nefastas. Mesmo uma distorção da verdade
aparentemente leve pode ter efeitos perigosos.
De fato, está em jogo a nossa avidez. As fake news tornam-se frequentemente virais, ou seja, propagam-se com
grande rapidez e de forma dificilmente controlável, não tanto pela lógica de
partilha que caracteriza os meios de comunicação social como sobretudo pelo
fascínio que detêm sobre a avidez insaciável que facilmente se acende no ser
humano. As próprias motivações econômicas e oportunistas da desinformação têm a
sua raiz na sede de poder, ter e gozar, que, em última instância, nos torna
vítimas de um embuste muito mais trágico do que cada uma das suas
manifestações: o embuste do mal, que se move de falsidade em falsidade para nos
roubar a liberdade do coração. Por isso mesmo, educar para a verdade significa
ensinar a discernir, a avaliar e ponderar os desejos e as inclinações que se
movem dentro de nós, para não nos encontrarmos despojados do bem «mordendo a
isca» em cada tentação.
3. «A verdade vos tornará livres»
(Jo 8, 32)
De fato, a contaminação contínua por uma linguagem enganadora
acaba por ofuscar o íntimo da pessoa. Dostoevskij deixou escrito algo de
notável neste sentido: «Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras,
chega a pontos de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao
seu redor, e assim começa a deixar de ter estima de si mesmo e dos outros.
Depois, dado que já não tem estima de ninguém, cessa também de amar, e então na
falta de amor, para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos
prazeres triviais e, por culpa dos seus vícios, torna-se como uma besta; e tudo
isso deriva do mentir contínuo aos outros e a si mesmo» (Os irmãos Karamazov,
II, 2).
E então como defender-nos? O antídoto mais radical ao vírus da
falsidade é deixar-se purificar pela verdade. Na visão cristã, a verdade não é
uma realidade apenas conceptual, que diz respeito ao juízo sobre as coisas,
definindo-as verdadeiras ou falsas. A verdade não é apenas trazer à luz coisas
obscuras, «desvendar a realidade», como faz pensar o termo que a designa em
grego:aletheia, de a-lethès, «não escondido». A verdade tem a ver com a vida inteira.
Na Bíblia, reúne os significados de apoio, solidez, confiança, como sugere a
raiz ‘aman (daqui provém o próprio Amém litúrgico).
A
verdade é aquilo sobre o qual podemos nos apoiar para não cair. Neste sentido
relacional, o único verdadeiramente fiável e digno de confiança sobre o qual se
pode contar, ou seja, o único «verdadeiro» é o Deus vivo. Eis a afirmação de
Jesus: «Eu sou a verdade» (Jo 14, 6). Sendo assim, o homem descobre sempre mais a
verdade, quando a experimenta em si mesmo como fidelidade e fiabilidade de quem
o ama. Só isto liberta o homem: «A verdade vos tornará livres»(Jo 8, 32).
Libertação da falsidade e busca do relacionamento: eis aqui os
dois ingredientes que não podem faltar, para que as nossas palavras e os nossos
gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis. Para discernir a verdade, é
preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que,
ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por isso, a verdade não se
alcança autenticamente quando é imposta como algo de extrínseco e impessoal;
mas brota de relações livres entre as pessoas, na escuta recíproca. Além disso,
não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode
insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras.
De fato,
uma argumentação impecável pode basear-se em factos inegáveis, mas, se for
usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que
apareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a
verdade dos vários enunciados: se suscitam polémica, fomentam divisões,
infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e
madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade.
4. A paz é a verdadeira notícia
O melhor antídoto contra as falsidades não são as estratégias, mas
as pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da
fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas
pelo bem, se mostram responsáveis no uso da linguagem. Se a via de saída da
difusão da desinformação é a responsabilidade, particularmente envolvido está
quem, por profissão, é obrigado a ser responsável ao informar, ou seja, o
jornalista, guardião das notícias. No mundo atual, ele não desempenha apenas uma profissão, mas uma verdadeira e própria missão. No meio do frenesim das notícias e na voragem dos scoop, tem o
dever de lembrar que, no centro da notícia, não estão a velocidade em
comunicá-la nem o impacto sobre a audience, mas as pessoas. Informar é formar, é lidar com a vida das pessoas. Por isso, a precisão das fontes e a custódia da comunicação são verdadeiros e próprios processos de desenvolvimento do
bem, que geram confiança e abrem vias de comunhão e de paz.
Por isso desejo convidar a que se promova um jornalismo de paz, sem entender, com esta expressão, um jornalismo «bonzinho», que
negue a existência de problemas graves e assuma tons melífluos. Pelo contrário,
penso num jornalismo sem fingimentos, hostil às falsidades, a slogans sensacionais e a declarações bombásticas; um jornalismo feito por
pessoas para as pessoas e considerado como serviço a todas as pessoas, especialmente àquelas – e no mundo, são a maioria – que não têm voz; um jornalismo que não se limite a queimar notícias,
mas se comprometa na busca das causas reais dos conflitos, para favorecer a sua
compreensão das raízes e a sua superação através do aviamento de processos
virtuosos; um jornalismo empenhado a indicar soluções alternativas às escalation do clamor e da violência verbal.
Vaticano, 24 de janeiro – Memória de São Francisco de Sales – do
ano de 2018.
Franciscus