terça-feira, 29 de maio de 2018

O Evangelho dominical - Corpus Christi

EUCARISTIA E CRISE
Todos os cristãos o sabemos. A eucaristia dominical pode-se converter facilmente num «refúgio religioso» que nos protege da vida conflitiva em que nos movemos ao longo da semana. É tentador ir à missa para partilhar uma experiência religiosa que nos permite descansar dos problemas, tensões e más notícias que nos pressionam por todas os lados.
Às vezes somos sensíveis ao que afeta a dignidade da celebração, mas preocupa-nos menos esquecermos as exigências que representa celebrar a ceia do Senhor. Incomoda-nos que um sacerdote não cumpra estritamente o normativo ritual, mas podemos continuar a celebrar rotineiramente a missa sem escutar as chamadas do Evangelho.
O risco sempre é o mesmo: comungar com Cristo no íntimo do coração sem nos preocuparmos de comungar com os irmãos que sofrem. Partilhar o pão da eucaristia e ignorar a fome de milhões de irmãos privados de pão, de justiça e de futuro.
E nos próximos anos pode-se ir agravando os efeitos da crise muito mais do que nós temíamos. A cascata de medidas que se ditam irão fazer crescer entre nós uma desigualdade injusta. Iremos ver como pessoas à nossa volta mais ou menos próximas vão ficando à mercê de um futuro incerto e imprevisível.
Conheceremos de perto, imigrantes privados de uma assistência sanitária adequada, doentes que não sabem como resolver os seus problemas de saúde ou medicação, famílias obrigadas a viver da caridade, pessoas ameaçadas pelo despejo, gente sem assistência, jovens sem um futuro claro… Não o podemos evitar. Ou endurecemos os nossos hábitos egoístas de sempre ou nos fazemos mais solidários.
A celebração da eucaristia no meio desta sociedade em crise pode ser um lugar de consciencialização. Necessitamos de nos liberar de uma cultura individualista que nos habituou a viver pensando só nos próprios interesses, para aprender simplesmente a ser mais humanos. Toda a eucaristia está orientada para criar fraternidade.
Não é normal escutar todos os domingos ao longo do ano o Evangelho de Jesus sem reagir ante as suas chamadas. Não podemos pedir ao Pai «o pão nosso de cada dia» sem pensar naqueles que têm dificuldades para o obter. Não podemos comungar com Jesus sem nos fazermos mais generosos e solidários. Não nos podemos dar a paz uns aos outros sem estar dispostos a estender uma mão a quem está mais só e indefenso ante a crise.

José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO B – NONO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 03.06.2018


Primeiro o Evangelho da dignidade humana, depois as leis!
Passadas sete semanas de um tempo marcado pelo júbilo pascal e as solenidades de Pentecostes, da Santíssima Trindade e do Corpo e Sangue de Jesus, voltamos ao tempo comum, que, no Brasil, continua sendo um período festivo: o tempo das alegres e envolventes festas juninas. Como a lei do sábado para os hebreus, as festas tem a força de romper com o cinzento calendário do trabalho e com a percepção da vida como um peso sem alívio e de lembrar que somos gente libertada e chamada à liberdade. Elas celebram uma dignidade conquistada no passado ou a certeza de “uma vitória que vai ter que acontecer”.
Mas nós sabemos também que as festas, assim como a memória e as leis que nasceram para garantir a liberdade e a fraternidade, podem ser capturadas pelas pessoas e instituições que desejam perpetuar seu poder dominador sobre as pessoas. Isso aconteceu com as leis que nasceram da aliança de Deus com o povo hebreu, no caminho para a terra prometida, e, infelizmente, aconteceu e acontece com o Evangelho vivido e anunciado por Jesus Cristo: ele continua sendo usado para oprimir gente já quebrada por tantas dores, para subjugar pessoas e povos aos tiranos, para distrair os oprimidos das necessárias lutas, para angariar votos, para arrancar dinheiro aos pobres e enriquecer pastores e igrejas.
Voltemos nosso olhar a Jesus de Nazaré e sintonizemos nossos ouvidos com o evangelho desse domingo. Há pouco, Jesus havia curado um paralítico mediante a declaração de que ele não era culpado de nada (cf. Mc 2,1-12) e partilhado uma refeição com pessoas consideradas indignas (cf. Mc 2,13-18). Animados pela dignidade e liberdade que Jesus, o esperado noivo da nova aliança, lhes conferia, os discípulos se permitiram desconsiderar a lei do jejum. Tanto as ações de Jesus como as dos seus discípulos irritaram profundamente o grupo dos fariseus, representantes do legalismo sem coração.
Para completar o escândalo, os discípulos de Jesus atravessam campos de trigo e recolhem sem cerimônia os grãos que necessitam para matar a fome, e isso no sacratíssimo dia de sábado... Se levamos a sério a resposta de Jesus ao questionamento dos defensores da lei, fazendo isso os discípulos afrontam duas leis: a lei que proíbe qualquer trabalho no dia de sábado e a lei que impede a violação da propriedade privada. É isso que transparece na referência de Jesus a Davi e seus companheiros, que, estando com fome, se apropriaram das oferendas que pertenciam exclusivamente aos sacerdotes.
No fundo, o que Jesus quer discutir e colocar em evidência, inclusive na cena seguinte, é o espírito e a finalidade das leis e instituições: elas proíbem, permitem e ordenam fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matá-la? Para Jesus, estômago febril de uma pessoa pobre e faminta é mais sagrada que todos os templos, leis e instituições. Para salvar uma pessoa ou um povo em situação de risco, o respeito à lei se torna secundário. Além disso, faz parte da maturidade e da liberdade cristã desmascarar corajosamente as leis, costumes e instituições que não fazem outra coisa que oprimir os pobres.
Os acontecimentos recentes da política e do judiciário brasileiros estão a demonstrar que a lei só é pesada e tem força quando se trata de punir os pobres e quem participa das suas lutas. A lei não é parâmetro absoluto para a justiça! Basta lembrar que a escravidão negra foi legal no Brasil; o apartheid foi legal na África do Sul; a mutilação sexual das mulheres ainda é legal em alguns países árabes; a prisão de Nelson Mandela, como a de Lula, não foram feitas ao arrepio da lei; o congelamento dos investimentos na saúde e na educação foram atos legais, assim como a desmantelamento dos direitos trabalhistas...
Afirmar isso não é anarquia ou rebeldia adolescente, mas Evangelho de Jesus Cristo! É claro que o Evangelho da liberdade é um tesouro que os cristãos e suas Igrejas carregamos em vasos de barro, com o risco de quebrá-lo ou trancafiá-lo em cofres invioláveis, longe da vida. Mas a luta para sermos libertária e responsavelmente fiéis a esse Evangelho nos insta até a morte! Como Paulo, no cumprimento dessa sagrada missão, somos atribulados, mas não desanimamos; enfrentamos dificuldades, mas nada tira nosso ânimo; somos perseguidos, mas encontramos consolo; caímos, mas levantamos e prosseguimos.
Jesus de Nazaré, peregrino nos santuários das dores e lutas dos humildes e dos humilhados! Ajuda teus discípulos e discípulas a não fazer do teu Evangelho uma lei, a não transformar teu vinho novo em vinagre azedo e tua liberdade em novas dominações. Faz ressoar sempre mais em nossos ouvidos a Boa Notícia que anunciavas com palavras e gestos nos caminhos e sinagogas da Galileia, e dá-nos coragem para permanecer fiéis e solidários nas lutas do povo e vigor para denunciar todas as armadilhas que, de forma sorrateira ou escancarada, os poderosos colocam nos seus caminhos. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Deuteronômio 5,12-15 * Salmo 81 (80) * 2ª. Carta de Paulo aos Coríntios 4,6-11* Evangelho de  São Marcos 2,23-3,6)

ANO B – SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO – 31.05.2018


O corpo de Cristo é a fraterna comunidade de irmãos e irmãs!
Cristo se faz sacramentalmente presente na comunidade dos irmãos e irmãs que se solidarizam na partilha do pão e no dom de si mesmos, que se reúnem para celebrar em torno da Palavra e do Pão e que fazem memória da doação maior de Jesus e da nuvem de testemunhas que o seguiram. Por isso, a Eucaristia não é algo a ser apenas adorado e exposto publicamente, mas memória do amor de Deus por nós, de um amor que chega ao seu ápice quando se torna comunhão e amor ao próximo em nós. A festa de Corpus Christi que hoje celebramos soleniza a beleza da nossa Eucaristia cotidiana ou dominical.
Voltemos nossa atenção para o Evangelho que nos é proposto para este dia. Pouco antes da cena evocada, Jesus havia convocado e enviado os Doze com “poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças” (Lc 9,1). Quando eles voltam desta espécie de estágio missionário, Jesus os leva para descansar fora do território judaico. Então, os apóstolos contam, animados, o sucesso que haviam experimentado. Mas, mesmo sendo o lugar deserto, as multidões necessitadas vão atrás de Jesus e dos discípulos. Sem se incomodar com isso, Jesus lhes fala do reino de Deus, e cura muitas pessoas doentes.
Mas parece que o repentino e recente sucesso pastoral havia subido à cabeça dos apóstolos. Fica a impressão de que eles se sentem uma elite especial e separada do resto do povo, um grupo que ocupa um lugar superior, uma agremiação fechada e dotada de poder recebido de Deus. No fim do dia, os Doze se aproximam de Jesus e ousam dar-lhe uma ordem: “Despede a multidão para que possam ir aos povoados e sítios vizinhos procurar hospedagem e comida...” Esqueceram eles que a comunidade cristã existe para dar uma resposta efetiva às angústias e esperanças das pessoas concretas...
Jesus reage sublinhando, sem meias-palavras, que são eles mesmos que devem cuidar do povo. Jesus não se importa se os discípulos têm provisões suficientes, e pede que organizem o povo em comunidades. Depois de se apropriar dos poucos pães e dos peixes dos apóstolos, como um pai de família, Jesus os eleva, abençoa, parte e dá aos discípulos para que distribuam. É possível que a multidão necessitada fosse gente excluída do judaísmo, que não era sequer considerada pelas autoridades religiosas. Essa gente recebe atenção prioritária da parte de Jesus, e o mesmo deve valer para a Igreja.
Com Jesus, termina o tempo do “cada um para si” e começa o tempo do convívio, da partilha e do serviço. Inaugura-se o tempo de comunhão. “Todos comeram e se saciaram.” Depois que os presentes são saciados, a sobra – 12 cestos, 12 tribos de Israel – vai para os demais! A atenção dos cristãos é inclusiva e universal, mas dá prioridade aos últimos ou excluídos, e viver a Eucaristia é entrar nesta lógica do dom, da prioridade dos últimos e mais frágeis. Diante deste sacramento não se deve dizer “se aproxime quem for digno e estiver preparado”, mas “Senhor, eu não sou digno de participar da tua mesa...”
Santo Tomás de Aquino diz que na Eucaristia temos o “documento do imenso amor de Cristo pela humanidade”, e “fazemos memória da altíssima caridade que Cristo demonstrou na sua paixão”. Quando Jesus ordena a seus discípulos “façam isso em memória de mim”, não está instituindo um rito a ser repetido com reverência e exatidão, mas propondo uma forma de vida a ser assumida com coerência. A Eucaristia é um sinal sacramental que aponta para algo mais profundo e transcendente: em Jesus, Deus se faz dom por nós, a fim de que a nossa vida adquira forma de dom solidário pelo próximo.
A questão central não é tanto a presença real de Jesus no pão quanto seu caminho de amor apaixonado e solidário pela humanidade. O mais importante não é a transformação das substâncias, mas a presença real e contínua de Cristo nos nossos gestos de partilha e solidariedade. “Vos sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros deste corpo”, diz Paulo (1Cor 12,27).  A nossa vocação é ser o corpo histórico de Cristo no mundo: um corpo que é dom e comunhão, no qual os membros são iguais, diferentes e reciprocamente solidários, e onde os membros mais frágeis são tratados com maior atenção.
Jesus de Nazaré, filho amado do Pai, Pão repartido para a vida do mundo! Também nós queremos hoje sair às ruas, movidos por tua sede de comunhão e agradecidos pelo teu amor-doação. Mas não cantaremos “hóstia branca, no altar consagrada...” ou “queremos Deus, homens ingratos”. Cantaremos com alegria, “entra na roda com a gente também! Você é muito importante! Vem!” E continuaremos com o convite: “Desempregados, pecadores, desprezados e os marginalizados... Venham todos se ajuntar à nossa marcha para a nova sociedade. Quem nos ama de verdade, pode vir que tem lugar!” Afinal, quiseste que teu corpo fosse o pão partilhado, a solidária comunidade de irmãos e irmãs! Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 14,18-20 * Salmo 109 (110) * 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios 11,23-26 * Evangelho de São Lucas 9,11-17)

ANO B – SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – 27.05.2018


Deus é mistério de amor, e cria tudo no amor e na comunhão.
A solenidade de hoje nos convida a celebrar e refletir sobre o mistério do ser de Deus. Todos alimentamos um pretensioso desejo de conhecer Deus e de falar sobre ele, mas será que Deus estaria à nossa disposição, desprotegido frente à nossa ânsia de conhecer, manipular e dominar?  Conhecemos pregadores que falam de Deus como se soubessem tudo sobre ele, mas que, na verdade, falam sobre seus próprios conceitos. A fala compulsiva sobre Deus geralmente é uma defesa contra a verdadeira experiência de Deus, que é o único ponto de partida seguro para falar sobre o mistério divino...
Damos o nome arquétipos às imagens e valores que mexem com o ser humano em sua profundidade. Essas imagens são uma espécie de filtro mediante o qual olhamos tudo e vemos a nós mesmos. Elas ordenam ou confundem, escravizam ou libertam.  E Deus é um dos arquétipos mais profundos e influentes da nossa vida. Se nossa imagem de Deus é deformada ou doentia, acabamos deformando-nos e adoecendo. Se desconfiamos muito de nós mesmos, acabamos imaginando um Deus observador e desconfiado, pronto a pedir provas e julgar o ser humano...
A solenidade da Santíssima Trindade vem nos recordar que a imagem correta de Deus não é a de um sujeito solitário, absoluto, onipotente e onisciente, mas uma imagem de comunhão no amor, de ser-para-os-outros, de abertura e acolhida, de compaixão e dom de si. Deus é o arquétipo da perfeita comunhão, uma comunhão na qual cada sujeito recebe tudo do outro e se faz dom radical e incondicional ao outro. Esta comunhão na acolhida do outro e na doação amorosa de si é também a vocação ou DNA das criaturas. O Papa Francisco lembra que misericórdia é a palavra que melhor expressa o mistério da Santíssima Trindade, que do coração da Trindade flui uma grande e incessante torrente de misericórdia.
Nossa primeira atitude diante do Mistério de comunhão, que é a essência de Deus e das criaturas, mais que espanto reflexivo, é a adoração agradecida. “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém!”  Adoração é a resposta própria de quem se descobre pequeno e impotente e, ao mesmo, destinatário de um amor que o faz capaz, digno e grande. O divino mistério de Comunhão e de Bondade nos põe de joelhos e nos leva a exclamar “Glória!” É por isso que, diante de Jesus ressuscitado, os discípulos ajoelham-se reverentes e obedientes...
Glorificar significa honrar e fazer brilhar, e nós glorificamos a Deus porque ele mesmo nos glorifica, dando-nos a condição de filhos e filhas, conferindo-nos um esplendor que nos faz semelhantes a ele. Glorificamos a Deus quando desfazemos as imagens deformadas que o identificam com um ditador onipotente, um juiz implacável, um doutor onisciente ou um ser sem coração, e proclamamos, com a boca e com a vida, sua misericórdia, sua compaixão e seu amor pela justiça e pelo direito. “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a comunhão com Deus”, ensina Santo Irineu de Lyon.
A experiência mística do amor de Deus nos compromete necessariamente com a missão de em tudo amar e servir, de promover a vida plena das criaturas de Deus. “Vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês.” É uma missão que se abre a todos os povos e desconhece fronteiras e muros que dividem, uma missão enraizada e focalizada no amor. Fazer discípulos significa acolher e congregar no amor aqueles que são diferentes, fazer-se próximo daqueles que estão longe.
Jesus nos envia a batizar, pois o batismo sinaliza o discipulado e nele nos introduz, é a assinatura de uma nova lealdade, não mais aos doutores da lei e ao imperador, mas ao Deus Uno e Trino, à Divina Comunhão, da qual a Eucaristia é sacramento e celebração. No batismo expressamos nossa feliz condição: somos filhos e filhas do universo, irmãos e devedores às estrelas, à luz, ao ar e à terra, pois todos esses elementos habitam e cooperam em nós e tudo está interligado e relacionado, como ensina o Papa Francisco. Paulo sublinha essa realidade quando diz que somos filhos e herdeiros de Deus em Jesus Cristo. Não somos fragmentos isolados, mas filhos da comunhão que habita todas as coisas!
Deus amável, Mistério de Comunhão sem limites, regaço de onde partimos e para onde desejamos retornar: envia teu Espírito para que, em nós, ele grite e anuncie que és pai e mãe e nos ajude a proclamar que todas as criaturas são nossas irmãs. Amor paterno, materno e fraterno, abre o nosso ser à ação do teu Espírito de comunhão, a fim de que ele nos transforme em pessoas livres e solidárias, agentes da liberdade no mundo, anunciadoras e criadoras da comunhão que associa todas as criaturas. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf



(Livro do Deuteronômio 4,32-40 * Salmo 32 (33) * Carta de Paulo aos Romanos 8,14-17 * Evangelho de São Mateus 28,16-20)

quinta-feira, 17 de maio de 2018

O Evangelho dominical - 20.05.2018


RENOVA-NOS POR DENTRO

Pouco a pouco estamos aprendendo a viver sem interioridade. Já não necessitamos de estar em contato com o melhor que há dentro de nós mesmos. Basta-nos com viver entretidos. Contentamo-nos com funcionar sem alma e nos alimentarmos só de bem-estar. Não queremos expor-nos a procurar a verdade. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos do vazio interior!
Temos aprendido a viver sem raízes e sem metas. Basta deixarmo-nos programar de fora. Movemo-nos e agitamo-nos sem cessar, mas não sabemos o que queremos nem para onde vamos. Estamos cada vez melhor informados, mas sentimo-nos mais perdidos que nunca. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos da desorientação!
Já só nos interessam as grandes questões da existência. Não nos preocupa ficarmos sem luz para enfrentarmos a vida. Fizemo-nos mais céticos, mas também mais frágeis e inseguros. Queremos ser inteligentes e lúcidos, mas não encontramos sossego nem paz. Vem, Espírito Santo, e liberta-nos da obscuridade e da confusão interior!
Queremos viver mais, viver melhor, viver mais tempo, mas viver o quê? Queremos sentir-nos bem, sentir-nos melhor, mas sentir o quê? Procuramos desfrutar intensamente da vida, tirar o máximo dela, mas não nos contentamos só com passar bem. Fazemos o que nos apetece. Não há proibições nem terrenos vedados. Porque queremos algo diferente? Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a viver!
Queremos ser livres e independentes e nos encontramos cada vez mais sós. Necessitamos viver e nos encerramos no nosso pequeno mundo, por vezes tão aborrecido. Necessitamos nos sentir queridos e não sabemos criar contatos vivos e amistosos. Ao sexo chamamos «amor», e ao prazer, chamamos «felicidade», mas quem saciará a nossa sede? Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a amar!
Na nossa vida já não há lugar para Deus. A Sua presença ficou reprimida ou atrofiada dentro de nós. Cheios de ruídos por dentro, já não podemos escutar a Sua voz. Focados em mil desejos e sensações, não chegamos a perceber a sua proximidade. Sabemos falar com todos menos com Ele. Temos aprendido a viver de costas para o Mistério. Vem, Espírito Santo, e ensina-nos a acreditar!
Crentes e não crentes, pouco crentes e maus crentes, assim peregrinamos muitas vezes pela vida. Na festa cristã do Espírito Santo, a todos nos diz Jesus o que um dia disse aos Seus discípulos, soprando sobre eles o Seu alento: «Recebei o Espírito Santo». Esse Espírito que sustenta as nossas pobres vidas e alenta a nossa débil fé pode penetrar em nós e reavivar a nossa existência por caminhos que só Ele conhece.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 15 de maio de 2018

ANO B – SOLENIDADE DE PENTECOSTES – 20.05.2018


Envia-nos teu Espírito de indignação profética!
A festa de Pentecostes é a culminância da caminhada pascal.  Como a comunidade apostólica dos sagrados começos, pedimos que o Espírito realize em nós a obra do Pai e do Filho, nos dê respiro e vida, nos ensine a testemunhar e anunciar o Reino de Deus na língua das diversas culturas, derrube os muros que os medos e prepotências ergueram, desperte a imaginação e a indignação proféticas, abra as portas das Igrejas e as coloque em ritmo de saída. Pois é o Espírito de Deus quem cria os vínculos entre as criaturas, suscita e sustenta os processos de libertação e garante a liberdade e a criatividade.
Escrevendo à comunidade cristã de Corinto, Paulo sublinha: há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diferença de funções mas o Senhor é o mesmo; multiplicidade de ações, mas um só Deus. Por isso, não há como sustentar a supremacia do clero sobre os demais fiéis, dos católicos sobre os evangélicos, dos crentes sobre os ateus. No bojo da ventania que vem do Espírito de Jesus, caem também os muros que separam religiões pretensamente verdadeiras das assim chamadas simples crenças, como também as escadas que elevam as religiões que se auto definem verdadeiras e rotulam as demais como falsas. E são carimbadas como ultrapassadas as ideologias que separam os mundos espiritual e material.
Uma dos traços da experiência Espírito que ficou gravada na mente dos apóstolos é o ruído de um vento forte e a imagem de línguas de fogo repousando sobre a comunidade reunida. Vento forte e línguas de fogo remetem a um dinamismo incontrolável, a uma força que move e leva adiante, a uma palavra forte e mobilizadora. São imagens que lembram o furacão da profecia, a eloquência de homens e mulheres que falam, gritam e agem em nome de sonhos e ideais que pertencem a todos. Aquele punhado de gente reunida em Jerusalém passa a falar intrepidamente e a enfrentar autoridades e sistemas constituídos...
É claro que a vida no Espírito se expressa na oração, na adoração, no canto, na consolação e na alegria, mas é claro que não se resume nisso. Jesus Cristo é o homem do Espírito, e sua proposta não é a de um guru a serviço do bem-estar individual. Ele é modelo de uma vida descentrada de si, de uma atuação absolutamente voltada às necessidades e à dignidade dos outros, de uma inserção questionadora e transformadora no palco da história. A obra do Espírito Santo no mundo não se mostra nos templos monumentais ou nas instituições sólidas, mas em homens e mulheres novos, livres e solidários.
O Espírito é o sopro de Deus que faz novas todas as coisas, renova a face da terra. Mas ele costuma começar renovando radicalmente as pessoas que seguem Jesus Cristo, despindo-as da roupagem da indiferença, purificando-as da impureza da dominação, desautorizando aquela “velha opinião formada sobre tudo”, dispersando o pó que se acumulou sobre as doutrinas e leis, abrindo as janelas fechadas pelo medo, fazendo-as renascer no ventre da liberdade e da gratuidade. Assim aconteceu com Jesus, assim são chamados a ser aqueles que nele acreditam e receberam seu divino Sopro.
Por isso, o envio do Espírito Santo é também o lançamento missionário da comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. “Como o Pai me enviou, eu também envio vocês!” Ele nos envia com a missão de tirar o pecado do mundo e arcar com seu custo, como ele mesmo o fez, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Tirar o pecado do mundo (no singular!) significa, hoje, entre outras coisas, combater sem tréguas o vírus do ódio. Como não se preocupar com o fomento interesseiro do ódio a toda iniciativa que possa mudar minimamente a estrutura classista e excludente da sociedade brasileira?
Quem recebe o Espírito de Jesus e por ele se deixa guiar perde para sempre a tranquilidade daqueles que se escondem atrás dos muros dos condomínios fechados e dos ritos que anestesiam e aprisionam as consciências. O Espírito fere de morte todas as formas de indiferença e fechamento! Quem hospeda o Espírito e nele renasce acaba a quilômetros de distância do imobilismo omisso, pregado em cultos frequentados por multidões sedentas de prosperidade e de cura, e se engaja, com humildade e firmeza, no caminho ecumênico, respeitando as diferenças e sonhando com o dia em que todos seremos um.
A ti, Deus pai e mãe, voltamos nossos olhos e nossas mãos para pedir, com todas as forças do nosso ser: envia sobre nós e sobre a Igreja teu divino Sopro! Sem ele, a missão não passa de conquista; a igreja atua como mera sociedade de classes; o Evangelho se reduz a lei implacável; a moral infantiliza e aprisiona; o ministério se reveste de poder e tirania; a liturgia vira arqueologia e fuga do compromisso. Envia teu Espirito para revitalizar os ossos ressequidos, sacudir as democracias vazias e questionar governos ilegítimos e saqueadores, mesmo quando se apresentam com o selo da religião. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf

(Atos dos Apóstolos 2,1-11 * Salmo 103 (104) * 1ª Carta de Paulo aos Coríntios 12,3-13 * Evangelho de São João 20,19-23)

sexta-feira, 11 de maio de 2018

O Evangelho dominical - 13.05.2018


NOVO COMENÇO

Os evangelistas descrevem com diferentes linguagens a missão que Jesus confia aos Seus seguidores. Segundo Mateus devem «fazer discípulos» que aprendam a viver como Ele lhes ensinou. Segundo Lucas, hão de ser «testemunhas» do que viveram junto Dele. Marcos resume tudo dizendo que hão de «proclamar o Evangelho a toda a criação».
Quem se aproxima hoje de uma comunidade cristã não se encontra diretamente com o Evangelho. O que se apercebe é do funcionamento de uma religião envelhecida, com graves sinais de crise. Não pode identificar com clareza no interior dessa religião a Boa Nova proveniente do impacto provocado por Jesus há vinte séculos.
Por outro lado, muitos cristãos não conhecem diretamente o Evangelho. Tudo o que sabem de Jesus e da Sua mensagem é o que podem reconstruir de forma parcial e fragmentada, recordando o que escutaram de catequistas e pregadores. Vivem a sua religião privados do contato pessoal com o Evangelho.
Como o poderão proclamar se não o conhecem nas suas próprias comunidades? O Concilio Vaticano II recordou algo demasiado esquecido nestes momentos: «O Evangelho é, em todos os tempos, o princípio de toda a vida da Igreja». Chegou o momento de entender e configurar a comunidade cristã como um lugar onde o essencial é acolher o Evangelho de Jesus.
Nada pode regenerar o tecido em crise das nossas comunidades como a força do Evangelho. Só a experiência direta e imediata do Evangelho pode revitalizar a Igreja. Dentro de uns anos, quando a crise nos obrigue a centrar-nos só no essencial, veremos com clareza que nada é mais importante hoje para os cristãos que nos reunirmos para ler, escutar e partilhar juntos os relatos evangélicos.
O primeiro é acreditar na força regeneradora do Evangelho. Os relatos evangélicos ensinam a viver a fé não por obrigação, mas por atração. Fazem viver a vida cristã não como dever, mas como irradiação e contágio. É possível introduzir nas paróquias uma dinâmica nova. Reunidos em pequenos grupos, em contato com o Evangelho, iremos recuperando a nossa verdadeira identidade de seguidores de Jesus.
Havemos de voltar ao Evangelho como novo começo. Já não serve qualquer programa ou estratégia pastoral. Dentro de uns anos, escutar juntos o Evangelho de Jesus não será uma atividade mais entre outras, mas a matriz de onde começará a regeneração da fé cristã nas pequenas comunidades dispersas no meio de uma sociedade secularizada.
Tem razão o papa Francisco quando nos diz que o princípio e motor da renovação da Igreja nestes tempos temos de o encontrar voltando à fonte e recuperando a frescura original do Evangelho.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 9 de maio de 2018

ANO B – ASCENSÃO DE JESUS CRISTO – 13.05.2018


Ascensão de Jesus: fuga, falsificação ou verdade que liberta?
A Igreja une à solenidade da ascensão de Jesus a Jornada Mundial das Comunicações Sociais, que neste ano tem como tema de reflexão as Fake News, as notícias falsas com aparência de verdade. Por isso, a pergunta provocadora: em que medida a boa notícia da ascensão de Jesus pode induzir à fuga da realidade, à falsificação da dureza da morte e do fim de Jesus, ou então abrir-nos a uma verdade libertadora e convocadora à ação? Qual é seu sentido? Com a ascensão, Jesus teria dado definitivamente as costas à humanidade e voltado à harmonia celeste de onde veio e pela qual suspiramos?
A palavra ascensão lembra subida, elevação, movimento de distanciamento. Mas expressa também a ideia e a experiência de ser destacado, promovido, reconhecido, reabilitado. É este segundo o sentido original da boa notícia pregada pelos cristãos a respeito de Jesus de Nazaré. Proclamar a ascensão de Jesus é um modo de proclamar sua ressurreição, de afirmar que a pedra rejeitada pelos construtores foi considerada pedra principal, que aquele que fora eliminado como subversivo e maldito é a mais plena expressão de Deus e do ser humano.  Ele se tornou um projeto, uma ideia que não pode ser aprisionada.
Na carta aos cristãos de Éfeso, Paulo manifesta o desejo de que o Espírito Santo lhes revele Deus em sua amável nudez e os ajude a conhecê-lo em profundidade. Conhecer Deus assim como se revelou em Jesus de Nazaré significa reconhecer e assimilar a esperança para a qual Ele nos chama e a herança gloriosa que ele nos concede: continuar na história sua vida de profeta e servidor; ser no mundo seu corpo vivo, corpo sob o qual tudo o mais foi colocado e acima do qual nada de significativo existe, fora o próprio mistério de Deus. E isso sem fugir do mundo, sem pensar que para seguir Jesus precisamos fugir dele.
Mas nunca é demais lembrar que a vida cristã é muito mais que desejo ou contemplação extática da plenitude divina. A pergunta que os anjos fazem aos apóstolos inertes ressoa hoje aos nossos ouvidos e espera uma resposta: “Por que vocês estão aí parados, olhando para o céu?” Os discípulos de Jesus Cristo não podemos permanecer na simples contemplação de alguém que subiu ao céu, mesmo que este alguém seja o próprio Jesus Cristo. A ascensão de Jesus não significa o fim da sua presença no meio de nós. Ao contrário, é o início da missão em seu nome, sob a guia do seu Espírito.
A Palavra de Deus deixa isso bastante claro. “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a boa para todas as pessoas”. A liturgia da ascensão focaliza esta responsabilidade intransferível da comunidade cristã. Convictos de que o Crucificado foi exaltado, vencemos o medo e tornamo-nos testemunhas de Jesus Cristo no coração do mundo e nos pulmões da história. E sabemos que testemunhar significa afirmar e trilhar o caminho do amor serviçal e solidário, trazer no corpo as marcas de Jesus Cristo: amar como Jesus amou, sonhar como Jesus sonhou, pensar como Jesus pensou, viver como Jesus viveu...
A Palavra de Deus atesta também que a ascensão de Jesus Cristo não é um distanciamento em relação aos seus discípulos e discípulas, uma fuga do mundo e dos seus desafios. Antes, é a identificação plena de Jesus com Deus, permanecendo plenamente inserido no mundo. E isso não é algo que tem a ver apenas com Jesus de Nazaré: ele é o primogênito de muitos irmãos e irmãs, a cabeça de um corpo de muitos e variados membros. À glorificação do primogênito segue-se a honra dos seus irmãos e irmãs. À elevação da cabeça segue-se o reconhecimento da dignidade daqueles que realizam sua vontade.
No Brasil, a ascensão de Jesus também abre Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que une fiéis católicos e evangélicos numa mesma e intensa prece. Para nós, cristãos católicos, já soou o tempo de deixar a lamentação e a negação das estatísticas que mostram a diminuição do percentual de católicos e o crescimento do índice de cristãos evangélicos. Do ponto de vista do Evangelho, não interessa o crescimento numérico deste ou daquele segmento cristão, mas que Jesus seja conhecido e seguido, que os cristãos deem testemunho de unidade e ajudem a construir uma sociedade fraterna e solidária.
Jesus de Nazaré, sacramento do abraço entre o céu e a terra, profeta de um mundo sem senhores e sem escravos: depois de termos acompanhado tua progressiva manifestação aos discípulos e a missão que confias a quem te segue, queremos hoje contemplar teu pleno reconhecimento pelo Pai. Ajuda-nos a entender que é porque abriste mão de todo e qualquer privilégio e te fizeste humano e igual ao mais humilde que teu nome é incomparável e diante de ti se dobram todos os joelhos. E ajuda-nos a compreender que é descendo, amando e servindo nossos irmãos que seremos tuas testemunhas. Disso, o dedicado, despojado e delicado amor das mães é sinal e sacramento. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf

(Atos dos Apóstolos 1,1-11 * Salmo 46 (47) * 1ª Carta de Paulo aos Efésios 1,17-23 * Evangelho de São Marcos 16,15-20)

Seminário sobre a vida consagrada (9)


A arte de tecer comunidades ecológicas e livres de fofocas
Durante o Seminário sobre a Vida Consagrada, realizado em Aparecida (SP), de 4 a 8 de maio, a Ir. Annette Havenne dirigiu uma oficina sobre a arte de tecer relações fraternas na comunidade. Começou lembrando que liderar é cuidar das relações. Sem isso, a liderança não vai a lugar nenhum. E as relações começam com a dedetização do ambiente, com o enfrentamento das fofocas.
Segundo a Ir. Annette, a fofoca é o fator mais destruidor das relações humanas de um grupo social. Ela nasce da falta de diálogo, de transparência ou de verdade, por medo, conveniência, ambição ou outros interesses escusos. Sem eliminar a toxina da fofoca, não é possível tecer relações humanas e humanizadora na vida consagrada.
Fofoca é uma troca de informações mais ou menos verdadeiros entre duas ou mais pessoas a respeito de outras pessoas ausentes. É uma fala de alguém, reativa, emocional. Contraditoriamente, o agente da fofoca perde o controle da situação desde o momento em que inicia, faz-se vulnerável.
A fofoca nasce do sentimento de insegurança, de inferioridade e rejeição, da dificuldade de lidar com tensões, medos, frustrações e problemas, das emoções negativas, como inveja, ciúme, medo, raiva, tristeza. O efeito da fofoca é um alívio imediato das tensões, mas depois, a médio e longo prazo, emergem estragos graves e incontáveis, tanto para a vítima como para o herói e o vilão.
Remédios para exorcizar a fofoca destruidora das nossas comunidades, são:
(a)    Cortar a fofoca, com elegância e firmeza: Por que você me fala disso agora? Há alguma relação com o tema que nos ocupa? Falar uns dos outros pode ajudar em algo?
(b)    Não somos donos das nossas emoções: Mas temos poder tomar consciência e de decidir o que fazemos com nossas emoções. Podemos agir de modo reativo ou de modo reflexivo e comedido.
(c)     Perguntar-se o que sentimos diante da fofoca e porque as fofocas sobre mim me tiram do sério.
Por fim, a Ir. Annette propôs que passemos nossos juízos, afirmações e discursos por três peneiras (“peneiras de Sócrates”):
(a)    A peneira da verdade: Há um fato, em que consiste ele realmente, que dimensões tem e em que circunstâncias ocorreu? Há algo de real na origem de determinada fofoca?
(b)    A peneira da intenção: Com que intenção a pessoa X teria feito isso? Se mal podemos conhecer nossas motivações e intenções, como podemos conhecer a intenção do outro? O diálogo com o autor da conversa é indispensável. Se a intenção é maldosa, a pessoa precisa de ajuda, e não de fofoca.
(c)     A peneira da necessidade: A fofoca é necessária para corrigir a pessoa ou resolver a situação?
A experiente Ir. Annette sublinhou que nossas comunidades religiosas unem o caráter primário e o caráter secundário: reunimo-nos por uma meta compartilhada. Não escolhemos os irmãos numa vitrine ou num shopping, mas os acolhemos porque compartilhamos uma missão.
Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Oração do Comunicador


Senhor, fazei de nós instrumentos da vossa paz.
Fazei-nos reconhecer o mal que se insinua em uma comunicação que não
cria comunhão.
Tornai-nos capazes de tirar o veneno dos nossos juízos.
Ajudai-nos a falar dos outros como de irmãos e irmãs.
Vós sois fiel e digno de confiança;
fazei que as nossas palavras sejam sementes de bem para o mundo:
onde houver rumor, fazei que pratiquemos a escuta;
onde houver confusão, fazei que inspiremos harmonia;
onde houver ambiguidade, fazei que levemos clareza;
onde houver exclusão, fazei que levemos partilha;
onde houver sensacionalismo, fazei que usemos sobriedade;
onde houver superficialidade, fazei que ponhamos interrogativos
verdadeiros;
onde houver preconceitos, fazei que despertemos confiança;
onde houver agressividade, fazei que levemos respeito;
onde houver falsidade, fazei que levemos verdade.
Amém.

Dia Mundial das Comunicações Sociais


"A verdade vos tornará livres: Fake news e jornalismo de paz
Mensagem do Papa Francisco para a Jornada Mundial das Comunicações Sociais
No contexto duma comunicação cada vez mais rápida e dentro dum sistema digital, assistimos ao fenômeno das «notícias falsas», as chamadas fake News. Isto convida-nos a refletir, sugerindo-me dedicar esta Mensagem ao tema da verdade. Gostaria, assim, de contribuir para o esforço comum de prevenir a difusão das notícias falsas e para redescobrir o valor da profissão jornalística e a responsabilidade pessoal de cada um na comunicação da verdade.
1. Que há de falso nas «notícias falsas»?
A expressão fake news é objeto de discussão e debate. Geralmente diz respeito à desinformação transmitida on-line ou nos mass-media tradicionais. Assim, a referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos prefixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros econômicos.
A eficácia das fake news se deve, em primeiro lugar, à sua natureza mimética, ou seja, à capacidade de se apresentar como plausíveis. Falsas mas verosímeis, tais notícias são capciosas, no sentido que se mostram hábeis a capturar a atenção dos destinatários, apoiando-se sobre estereótipos e preconceitos generalizados no seio dum certo tecido social, explorando emoções imediatas e fáceis de suscitar como a ansiedade, o desprezo, a ira e a frustração. A sua difusão pode contar com um uso manipulador das redes sociais e das lógicas que subjazem ao seu funcionamento. Assim os conteúdos, embora desprovidos de fundamento, ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos categorizados dificilmente conseguem circunscrever os seus danos.
A dificuldade em desvendar e erradicar as fake news é devida também ao fato de as pessoas interagirem muitas vezes dentro de ambientes digitais homogêneos e impermeáveis a perspectivas e opiniões divergentes. Esta lógica da desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um confronto sadio com outras fontes de informação (que poderia colocar positivamente em discussão os preconceitos e abrir para um diálogo construtivo), corre-se o risco de se tornar atores involuntários na difusão de opiniões tendenciosas e infundadas. O drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo, as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade.
2. Como podemos reconhecê-las?
Nenhum de nós se pode eximir da responsabilidade de enfrentar estas falsidades. Não é tarefa fácil, porque a desinformação se baseia muitas vezes em discursos variegados, deliberadamente evasivos e subtilmente enganadores, valendo-se por vezes de mecanismos refinados. Por isso, são louváveis as iniciativas educativas que permitem apreender como ler e avaliar o contexto comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de desinformação, mas atores do seu desvendamento. Igualmente louváveis são as iniciativas institucionais e jurídicas empenhadas na definição de normativas que visam circunscrever o fenômeno, e ainda iniciativas, como as empreendidas pelas tech e media company, idôneas para definir novos critérios capazes de verificar as identidades pessoais que se escondem por detrás de milhões de perfis digitais.
Mas a prevenção e identificação dos mecanismos da desinformação requerem também um discernimento profundo e cuidadoso. Com efeito, é preciso desmascarar uma lógica, que se poderia definir como a «lógica da serpente», capaz de se camuflar e morder em qualquer lugar. Trata-se da estratégia utilizada pela serpente – «o mais astuto de todos os animais», como diz o livro do Génesis (cf. 3, 1-15) a qual se tornou, nos primórdios da humanidade, artífice da primeira fake news, que levou às trágicas consequências do pecado, concretizadas depois no primeiro fratricídio (cf. Gn 4) e em inúmeras outras formas de mal contra Deus, o próximo, a sociedade e a criação.
A estratégia deste habilidoso «pai da mentira» (Jo 8, 44) é precisamente a mimese, uma rastejante e perigosa sedução que abre caminho no coração do homem com argumentações falsas e aliciantes. De fato, na narração do pecado original, o tentador aproxima-se da mulher, fingindo ser seu amigo e interessar-se pelo seu bem. Começa o diálogo com uma afirmação verdadeira, mas só em parte: «É verdade que Deus vos proibiu comer o fruto de qualquer árvore do jardim?» (Gn 3, 1). Na realidade, o que Deus dissera a Adão não foi que não comesse de nenhuma árvore, mas apenas de uma árvore: «Não comas o [fruto] da árvore do conhecimento do bem e do mal» (Gn 2, 17). Retorquindo, a mulher explica isso mesmo à serpente, mas deixa-se atrair pela sua provocação: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Nunca o deveis comer nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”» (Gn3, 2-3).
Esta resposta tem sabor a legalismo e pessimismo: dando crédito ao falsário e deixando-se atrair pela sua apresentação dos fatos, a mulher extravia-se. Em primeiro lugar, dá ouvidos à sua réplica tranquilizadora: «Não, não morrereis»(3, 4). Depois a argumentação do tentador assume uma aparência credível: «Deus sabe que, no dia em que comerdes [desse fruto], abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal»(3, 5).
Enfim, ela chega a desconfiar da recomendação paterna de Deus, que tinha em vista o seu bem, para seguir o aliciamento sedutor do inimigo: «Vendo a mulher que o fruto devia ser bom para comer, pois era de atraente aspeto (…) agarrou do fruto, comeu» (3, 6). Este episódio bíblico revela assim um fato essencial para o nosso tema: nenhuma desinformação é inofensiva; antes pelo contrário, fiar-se daquilo que é falso produz consequências nefastas. Mesmo uma distorção da verdade aparentemente leve pode ter efeitos perigosos.
De fato, está em jogo a nossa avidez. As fake news tornam-se frequentemente virais, ou seja, propagam-se com grande rapidez e de forma dificilmente controlável, não tanto pela lógica de partilha que caracteriza os meios de comunicação social como sobretudo pelo fascínio que detêm sobre a avidez insaciável que facilmente se acende no ser humano. As próprias motivações econômicas e oportunistas da desinformação têm a sua raiz na sede de poder, ter e gozar, que, em última instância, nos torna vítimas de um embuste muito mais trágico do que cada uma das suas manifestações: o embuste do mal, que se move de falsidade em falsidade para nos roubar a liberdade do coração. Por isso mesmo, educar para a verdade significa ensinar a discernir, a avaliar e ponderar os desejos e as inclinações que se movem dentro de nós, para não nos encontrarmos despojados do bem «mordendo a isca» em cada tentação.
3. «A verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)
De fato, a contaminação contínua por uma linguagem enganadora acaba por ofuscar o íntimo da pessoa. Dostoevskij deixou escrito algo de notável neste sentido: «Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega a pontos de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao seu redor, e assim começa a deixar de ter estima de si mesmo e dos outros. Depois, dado que já não tem estima de ninguém, cessa também de amar, e então na falta de amor, para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos prazeres triviais e, por culpa dos seus vícios, torna-se como uma besta; e tudo isso deriva do mentir contínuo aos outros e a si mesmo» (Os irmãos Karamazov, II, 2).
E então como defender-nos? O antídoto mais radical ao vírus da falsidade é deixar-se purificar pela verdade. Na visão cristã, a verdade não é uma realidade apenas conceptual, que diz respeito ao juízo sobre as coisas, definindo-as verdadeiras ou falsas. A verdade não é apenas trazer à luz coisas obscuras, «desvendar a realidade», como faz pensar o termo que a designa em grego:aletheia, de a-lethès, «não escondido». A verdade tem a ver com a vida inteira. Na Bíblia, reúne os significados de apoio, solidez, confiança, como sugere a raiz ‘aman (daqui provém o próprio Amém litúrgico).
A verdade é aquilo sobre o qual podemos nos apoiar para não cair. Neste sentido relacional, o único verdadeiramente fiável e digno de confiança sobre o qual se pode contar, ou seja, o único «verdadeiro» é o Deus vivo. Eis a afirmação de Jesus: «Eu sou a verdade» (Jo 14, 6). Sendo assim, o homem descobre sempre mais a verdade, quando a experimenta em si mesmo como fidelidade e fiabilidade de quem o ama. Só isto liberta o homem: «A verdade vos tornará livres»(Jo 8, 32).
Libertação da falsidade e busca do relacionamento: eis aqui os dois ingredientes que não podem faltar, para que as nossas palavras e os nossos gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis. Para discernir a verdade, é preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que, ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por isso, a verdade não se alcança autenticamente quando é imposta como algo de extrínseco e impessoal; mas brota de relações livres entre as pessoas, na escuta recíproca. Além disso, não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras.
De fato, uma argumentação impecável pode basear-se em factos inegáveis, mas, se for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que apareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a verdade dos vários enunciados: se suscitam polémica, fomentam divisões, infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade.
4. A paz é a verdadeira notícia
O melhor antídoto contra as falsidades não são as estratégias, mas as pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas pelo bem, se mostram responsáveis no uso da linguagem. Se a via de saída da difusão da desinformação é a responsabilidade, particularmente envolvido está quem, por profissão, é obrigado a ser responsável ao informar, ou seja, o jornalista, guardião das notícias. No mundo atual, ele não desempenha apenas uma profissão, mas uma verdadeira e própria missão. No meio do frenesim das notícias e na voragem dos scoop, tem o dever de lembrar que, no centro da notícia, não estão a velocidade em comunicá-la nem o impacto sobre a audience, mas as pessoas. Informar é formar, é lidar com a vida das pessoas. Por isso, a precisão das fontes e a custódia da comunicação são verdadeiros e próprios processos de desenvolvimento do bem, que geram confiança e abrem vias de comunhão e de paz.
Por isso desejo convidar a que se promova um jornalismo de paz, sem entender, com esta expressão, um jornalismo «bonzinho», que negue a existência de problemas graves e assuma tons melífluos. Pelo contrário, penso num jornalismo sem fingimentos, hostil às falsidades, a slogans sensacionais e a declarações bombásticas; um jornalismo feito por pessoas para as pessoas e considerado como serviço a todas as pessoas, especialmente àquelas e no mundo, são a maioria que não têm voz; um jornalismo que não se limite a queimar notícias, mas se comprometa na busca das causas reais dos conflitos, para favorecer a sua compreensão das raízes e a sua superação através do aviamento de processos virtuosos; um jornalismo empenhado a indicar soluções alternativas às escalation do clamor e da violência verbal.
Vaticano, 24 de janeiro – Memória de São Francisco de Sales – do ano de 2018.
Franciscus