quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um indígena é ordenado sacerdote

 “Sei em quem coloquei a minha confiança...”  (2Tm 2,4)
Homilia de Dom Edson Tasquetto Damian na missa de ordenação presbiteral do Pe. Gaudêncio Gomes Campos, SDB
(São Gabriel da Cachoeira, AM, 9 de fevereiro de 2014)

Gaudêncio, teu nome contém um rico simbolismo e indica também uma importante missão. Gaudêncio vem de “gaudium”, alegria. Expressa a alegria que está sempre estampada no teu belo rosto indígena Desano. És um índio feliz porque manténs viva tua identidade e tua cultura e soubeste integrá-las com a Boa Nova de Jesus.
“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus”, assim inicia a Exortação Apostólica do Papa Francisco. Guadêncio, por tanto, tem tudo a ver com a Evangelii Gaudium, a profética carta programática do Papa Francisco. Até hoje nenhum papa tinha apresentado um programa de reformas tão profundas para a Igreja e para a Sociedade. E a partir de seus gestos, atitudes, testemunho e palavras, o Bispo de Roma está mostrando como deve ser a nossa vida e ação de discípulos missionários de Jesus de Nazaré em pleno século XXI, na periferia do Brasil, aqui no coração da Amazônia.
Neste tempo de nova e surpreendente primavera, o Papa nos convoca para construir uma Igreja pobre para os pobres, convertida a Jesus e vestida de Evangelho, misericordiosa e missionária, que vai às periferias geográficas e existenciais, descentralizada, aberta, servidora, Igreja da inclusão, do encontro, da ternura. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida, enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).
Mas, não basta que o Papa se converta. Precisamos nos converter com ele, arregaçar as mangas e partir para a ação. Gaudêncio, tua vida e ministério já tem um rumo bem traçado e comprometedor. És trabalhador da primeira hora para ajudar a concretizar as propostas renovadoras e exigentes de nosso amado Papa Francisco.
Voltemo-nos agora para a Palavra de Deus que escolheste para este dia. Assumes tua missão como o profeta Isaias: “Assim diz o Senhor. Aquele que te criou, que te formou desde o útero e te protege: “Não temas, meu servo, a quem escolhi. Derramarei água em terra seca, igarapés no terreno ressecado, derramarei meu Espírito sobre os teus descendentes. E eles crescerão como mato à beira d`água, como salgueiros ao longo dos córregos. Um dia dirás: pertenço ao Senhor” ( Is 4,2-3).
Como não perceber aqui saudosas recordações de tua infância às margens do Umari igarapé, em Pari Cachoeira, onde nasceste no dia 06 de outubro de 1986? Filho do casal Leonardo e Cecília, foste o primogênito entre nove irmãos. Depois, com tua família, navegaste as incontáveis curvas do rio Tiquié, entraste no Uaupés, passaste por Taraquá, por Yauaretê e foste morar em Taraquá do Alto Uaupés, perto da perigosa Caruru Cachoeira. Já falavas Tukano e brincando com as crianças Wanano aprendeste também a língua  Cótiria. E viste tua família aumentar. Depois de ti nasceram: Maria dos Anjos, Leomar, Leandro, Adelson, Leonísio, Reginaldo, Lucélia e Daiane. Cresceste “como mato à beira d`água, como salgueiro ao longo dos rios”, escutando a voz de Deus que te chamou deste o ventre materno e tinha escrito em tua mão: “Eu sou do Senhor”. Descobriste que pertences ao Senhor e não tiveste medo de lhe entregar a vida.
O Evangelho (Jo 21, 15-19) que escolheste revela a radicalidade de tua entrega. A caridade pastoral, marca registrada da espiritualidade do presbítero tem dupla face: amor apaixonado por Jesus, e misericórdia e serviço aos irmãos que o Bom Pastor confia ao teu ministério. A pergunta direta e, ao mesmo tempo, carinhosa de Jesus a Pedro indica que amar a ele é condição primeira para ser pastor de seu rebanho.
E por que Jesus lhe perguntou três vezes? Existe um evangelho apócrifo que nos ajuda a compreender este episódio. Quando Jesus fez o anúncio de sua morte, Pedro lhe disse que daria a vida para defendê-lo. “Darás a vida por mim? Perguntou-lhe Jesus. E continuou: “Antes que o galo cante, três vezes me negarás” (Jo 13, 38). Quando esta a previsão se realizou, Pedro saiu e pôs-se a chorar amargamente (Lc 22,62).  E desde aquela hora,  acompanhou Jesus de longe para não ser mais identificado por ninguém. Quando viu Jesus morrer na cruz, Pedro, caiu em profundo desespero e começou a perambular sem rumo pelas ruas desertas de Jerusalém. De repente viu ao longe alguém caminhando em sua direção. Tentou desviar-se seguindo outra rua. Mas aquele que vinha, reconheceu Pedro e correu ao seu encontro.
Era José de Arimatéia e lhe disse: “Pedro, obtive uma permissão de Pôncio Pilatos e preciso de tua ajuda para tirar Jesus da cruz e sepultá-lo antes que o sol se ponha”. Pedro teria respondido: “Nem me fale mais a respeito deste homem. Sou culpado pela morte dele. Disse que daria a vida para defendê-lo e fui um traidor, negando três vezes que nem o conhecia. Tudo acabou. Estou perdido para sempre”. Mas, José de Arimatéia lhe disse: “Pedro, não importa o que fizeste com Jesus. Tu és testemunha da coisa mais linda deste mundo: do amor de Jesus por ti, da confiança que depositou em ti. E isto tu deves anunciar ao mundo inteiro”.
Não sabemos se isto realmente aconteceu. O que importa é tirarmos uma lição para nunca mais esquecer. Apesar de nossas covardias, traições e infidelidades, o amor de Jesus por nós é irrevogável, irreversível, sem arrependimento. O Papa Francisco confirma: “Como faz bem voltar para o Senhor quando nos perdemos! Insisto mais uma vez: Deus nunca se cansa de nos perdoar, somos não que nos cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar “setenta vezes sete” dá-nos o exemplo: ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez ou outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que esse amor infinito e inabalável nos confere” ( EG 3). E conclui: “O verdadeiro missionário, que nunca deixa de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo de sua entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão” (EG 266).
Por fim, escolheste da carta aos Colossenses a passagem que tem tudo a ver com a “força revolucionária da ternura e do afeto” (EG 88 e 288) na qual insiste o Papa Francisco. “Como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos com sentimentos de compaixão, com bondade, humildade, mansidão, paciência: suportai-vos uns aos outros e, se um tiver motivo de queixa contra o outro, perdoai-vos mutuamente como o Senhor vos perdoou. Sobretudo, revesti-vos do amor, que une a todos na perfeição” (Cl 3,12-14).
Ao escolheres esta carta de Paulo para orientar tuas relações e atividades percebeste que ela ilumina o carisma salesiano de Dom Bosco e dos seus missionários e missionárias que há 100 anos evangelizam os Povos Indígenas do Rio Negro. Na festa de Dom Bosco, 31 de janeiro, recebi a mensagem de um amigo com uma carta escrita por este santo: 
Sempre trabalhei com amor. Quantas vezes, meus filhinhos, no decurso de toda a minha vida, tive de me convencer desta grande verdade! É mais fácil encolerizar-se do que ter paciência, ameaçar um jovem do que persuadi-lo. Direi mesmo que é mais cômodo, para nossa impaciência e nossa soberba, castigar os que resistem do que corrigi-los, suportando-os com firmeza e suavidade... Consideremos como nossos filhos aqueles sobre os quais exercemos certo poder. Coloquemo-nos a seu serviço, assim como Jesus, que veio para obedecer e não para dar ordens; envergonhemo-nos de tudo o que nos possa dar aparência de dominadores; e se algum domínio exercemos sobre eles, é para melhor servirmos... Assim procedia Jesus com seus apóstolos; tolerava-os na sua ignorância e rudeza, e até mesmo na sua pouca fidelidade. A afeição e a familiaridade com que tratava os pecadores eram tais que em alguns causava espanto, em outros escândalo, mas em muitos infundia a esperança de receber o perdão de Deus. Por isso nos ordenou que aprendêssemos dele a ser mansos e humildes de coração.”

Querido irmão Gaudêncio, dentro de instantes receberás o Sacramento da Ordem e a força do Espírito Santo para exerceres este ministério com o amor e a misericórdia de nosso divino e adorável Bom Pastor.  Não tenhas medo.  A Mãe de Deus e nossa, a Auxiliadora, juntamente com os santos e santos que invocaremos na ladainha te acompanharão a vida inteira. E para manifestar-te nossa solidariedade fraterna e a certeza de nossa oração vamos repetir contigo o teu lema sacerdotal: “Sei em quem coloquei a minha confiança” (2Tm 2,4). O que se seguirá em tua vida, a partir de hoje, será amadurecimento e colheita de tua entrega definitiva, amorosa, confiante e fiel nas mãos do Senhor. E serás um índio Desano presbítero feliz na vida e missão neste chão!

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