Contigo o deserto é fértil, a terra se abre em flor!
(Is 40,1-5-9-11; Sl 84/85; 2Pe 3,8-14; Mc 1,1-8)
Vivemos a primeira semana do Advento sob o signo da vigilância: alegre e inteligente expectativa de que algo de bom está sendo gerado; olhos abertos e coração desperto para perceber os sinais daquele que está sempre vindo e daquilo que está nascendo; abertura e disponibilidade para deixarmo-nos moldar como barro nas mãos do divino oleiro. A segunda semana se abre solicitando-nos conversão e engajamento: ações que tragam consolação aos desolados; abertura de estradas onde a vida é difícil como num deserto e boas estradas onde abundam buracos e barrancos; perseverança quando os novos céus e a nova terra demoram a aparecer; ternura como a do pastor que carrega no colo os cordeirinhos e guia mansamente as ovelhas que amamentam. Por Cristo, com Cristo e em Cristo “o deserto é fértil e a terra se abre em flor; da rocha brota água viva, da treva nasce o esplendor...”
“Consolai, consolai meu povo!”
Desde antes de iniciar o Advento martela nossos ouvidos o convite insistente a preparar o Natal comprando coisas. Em versões e ritmos vários, o refrão que gera cifras quer fazer-nos crer que a felicidade se deixa encontrar nas vitrines dos shopings e que não há ação mais graciosa e divina que consumir. E as pessoas que vivem objetivamente sem nada acabam acrescentando à sua congênita necessidade o sentimento subjetivo de carência e frustração.
A voz do profeta Isaías ressoa forte nesse deserto onde as pessoas descartadas vagam inconsoláveis e sem rumo, como que fogindo da própria culpa: “Consolem, consolem meu povo! Falem ao seu coração! Divorciem-se do consumo sedutor e desposem a consolação redentora. Ajudem meu povo a perceber que não há crimes que recaem sobre seus ombros. Mostrem que Deus está aqui e toma conta dele como um pastor. “Ele leva os cordeirinhos no colo e guia mansamente as ovelhas que amamentam...”
O Advento prepara o Natal do Senhor na medida em que nos ajuda a substituir a ansiedade de consumir pela decisão de consolar. Consolar é colocar-se ao lado para sustentar, não deixar o outro só, dar solidez a quem é vulnerável. E isso se faz com palavras, com gestos e, principalmente, com decisões sábias e com ações concretas. Não é por nada que na língua hebraica dâbar significa ao mesmo tempo palavra e ação. “No deserto, abrí um caminho para o Senhor!”
“No deserto abrí um caminho para o Senhor.”
Deserto é terra de ninguém, lugar de ‘vida severina’, periferia do mundo, espaço de resistência, refúgio dos perseguidos, reduto dos movimentos proféticos. Como abrir caminhos numa realidade humana e social tão complexa, sofrida e contraditória como esta que vivemos? Para a abertura de estradas e avenidas, centros urbanos decorados para o natal e as terras aparentemente férteis das pessoas e grupos bem-sucedidos nos parecem mais propícios que o deserto.
Com o salmista precisamos decidir: “Ouvirei o que diz o Senhor Deus...” E ele fala de paz para seu povo, de um Novo Céu e uma Nova Terra onde habitará a justiça. Fala do congraçamento entre o amor e a fidelidade e do abraço afetuoso e fecundo entre a Paz e a Justiça. Diz que na mesma medida em que a fidelidade germina e cresce entre nós a justiça se inclina do céu. Mas o poeta que escreve esses versos é também o militante que vai para as ruas, campos e arenas.
Foi assim que, depois da tragédia de uma guerra que encharcou de sangue a velha, prepotente e cansada Europa, as diversas vozes dos que sonharam a Paz e levantaram a bandeira da dignidade inalienável de cada criatura singular se uniram em coral e proclamaram os Direitos Humanos (10.12.1948). Os poetas se converteram em profetas e militantes, e passaram da academia às praças. Passados mais de 60 anos, é justo que se espere que também nós passemos das declarações à ação.
“Endireitem as veredas para ele...”
Os caminhos da justiça e da paz ainda são tortuosos e esburacados, especialmente para os países e as pessoas pobres. O obstáculo não está unicamente no terrorismo, como repetiu Bush, o decadente ‘imperador do mundo’, nos últimos anos, mas no cassino da rua do muro (Wall Street) onde se compra, vende e especula sobre a vida e a morte dos povos. E a solução não é encher a garganta insaciável dos bancos e financeiras mas estabelecer critérios éticos para a economia.
O evangelista Marcos diz que o povo que vivia no ‘centro do mundo’ (Jerusalém) se deslocou à periferia (deserto) para escutar o profeta João. E este é o caminho que precisamos seguir se quisermos que a humanidade tenha futuro. As soluções impostas de cima costumam ignorar e aumentar o nada dos sem-nada. A Palavra de Deus teima em afirmar que é do deserto e da periferia que vêm as notícias alegres (Boa Nova) que dizem que o Humano está nascendo e um Outro Mundo está sendo criado.
“Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu...”
Mas isso pede inversão de perspectivas e conversão das mentalidades. A novidade que vem do deserto é peregrina e vulnerável. O centro se desloca para a margem. O agente de Deus (Messias) nasce migrante e se hospeda na estrabaria. Seus pés não conhecem o ruído das botas dos soldados mas somente a ágil simplicidade das sandálias. O amor só tem a força do dom e do martírio. O/a discípulo/a só tem segurança na voz do Mestre e o/a missionário/a só pode contar com o poder da Palavra.
É isso que realmente esperamos? É com isso que queremos realmente contar? É essa a estrada que estamos dispostos a abrir e trilhar? João Batista tinha consciência de que era apenas o precursor, que o chamado à conversão seria seguido pelo anúncio de uma boa notícia e que o retiro no deserto seria substituído pela estrada que leva aos povoados. “Depois de mim vai chegar alguém mais forte que eu. Eu não sou digno sequer de me abaixar para desamarrar as suas sandálias...”
Sandálias lembram caminho, e caminho sugere discipulado. A estrada a ser aberta no deserto é a estrada do seguimento de Jesus na pobreza, no dom de si e na solidariedade. É a estrada que leva a Belém e Nazaré e termina (aparenetemente) no calvário. E que ninguém queira substituir as sandálias do carpinteiro pelas botas dos soldados arrogantes ou do gordo papai-noel. Seguimento de Jesus não rima com guerra ou shoping. Conservemos as sandálias... E abramos caminhos.
“Para o Senhor, um dia é como mil anos...”
Até quando conseguiremos manter viva essa convicção e essa esperança? A realidade parece desmentir o que acreditamos, e a história parece não considerar nossas utopias. São Pedro nos diz que “para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos é como um dia”. Deus tem paciência, mas durante este tempo de espera é necessário empenho para que o Novo Céu e a Nova Terra nos encontrem em paz, sem mancha e sem culpa. Precisamos nos manter firmes e ativos/as na esperança.
O calendário que faz memória das grandes testemunhas nos oferece, nestes dias, dois magníficos exemplos de espera ativa. São Francisco Xavier (+03.12.1552), tocado pelas palavras de Jesus, deixou os amados companheiros de Jesus na Europa e empreendeu uma viagem sem retorno ao Oriente, confiante que este se abriria ao Evangelho. Charles de Foucault (+01.12.1916) gastou sua vida como discreta chama acesa em meio aos muçulmanos e foi morto por um daqueles que amou e respeitou.
Jesus, Maria e José também viveram pacientemente a aparante demora da manifestação de Deus. A espera se converteu em preparação para discernir e acolher a ‘hora’ de Deus. Enquanto esperavam, lançaram raízes na periferia, mergulharam fundo na Palavra de Deus, exercitaram generosamente o cuidado com os cordeiros fracos e com as ovelhas gestantes. E fabricaram sandálias, muitas sandálias: sandálias para pés masculinos, femininos, infantis e jovens...
“Sua glória habitará em nossa terra...”
Deus pai e mãe, pastor terno e dedicado: fecunda nossos ouvidos com tua Palavra criadora e abre nossos lábios para que proclamemos sem medo que estás vindo à casa nossa e tua, que trazes nos braços teus filhos e filhas mais queridos. Converte nosso coração e abre nossos olhos para que sejamos capazes de contemplar a delicada coreografia cósmica que acompanha tua chegada aos desertos do mundo: a verdade brotando da terra e a justiça se inclinando do céu; a misericórdia e a verdade dançando ao som do vento e a justiça e a paz se abraçando para sempre. E põe nos nossos pés as sandálias do teu Filho!
Pe. Itacir Brassiani msf
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