segunda-feira, 14 de novembro de 2011

AVANÇAR É PRECISO!

Há alguns anos ressoa nos ouvidos das/os consagradas/os do Brasil a Palavra viva de Deus que pede às suas lideranças: “Diga a esta geração, avance!” É uma palavra estimuladora, provocadora, mobilizadora. Uma Palavra dirigida a uma vida consagrada que caminha, mas se sente um pouco encurralada por ameaças e perigos que a circundam por todos os lados. Uma Palavra dirigida a esta geração. Uma Palavra que sugere não descansar nos louros do passado, nem transferir os desafios do presente às gerações futuras. “Diga a esta geração, avance!” Parafraseando os navegadores portugueses, poderíamos dizer: Avançar é preciso, repousar não.
Não se trata de um apelo pré-cristão, restrito ao primeiro testamento. É uma convocação que está presente, com pequenas variações, também no segundo testamento. Às/os consagradas/os que imaginam seguir Jesus Cristo sem romper com velhas opiniões e estruturas, ele declara que “quem põe a mão no arado e olha para trás, não serve para o reino de Deus” (Mt 9,62). Às/os religiosas/os que alimentam o desejo de conhecer seu caminho e sua proposta, Jesus não pede que entrem na escola rabínica que ensina “antigas lições de morrer pela pátria e viver sem razões”, mas convida a caminhar com ele: “Venham, e vocês verão” (Jo 1,39). A uma vida consagrada vazia e cansada de tantas atividades, ele pede: “Avance para águas mais profundas, e lancem as redes para a pesca” (Lc 5,4).
Avançar é preciso. Como sabiam os hebreus acampados no deserto, diante do mar, atrás sempre fica alguma coisa boa. O Egito havia sido uma terra de salvação, onde eles haviam sido acolhidos num tempo de penúria e crescido como povo. É verdade que temos atrás de nós tempos e lugares que possibilitaram que vida consagrada se tornasse uma instituição forte e respeitada na Igreja e na sociedade, é verdade que marcamos com uma multidão de mulheres e homens maduros e generosos. Mas temos na nossa retaguarda também algumas ameaças. Ronda-nos um elitismo anti-evangélico que se mostra no indisfarçável sentimento de superioridade em relação aos demais cristãos. Perdemos a fecundidade porque nos divorciamos do povo de Deus, este povo que desborda as fronteiras eclesiásticas. Somos corroídos por um clericalismo crasso que infelizmente não atinge apenas o setor masculino da vida consagrada. A superficialidade e a formalidade da relação com Jesus Cristo gera um sentimento de vazio que imobiliza. A burocratização protege as obras do vento renovador do Espírito. E o individualismo arruína as comunidades religiosas a partir de dentro.
Retornar ao Egito não é mais possível, ou melhor, não é aceitável. Não adianta dar nomes mais neutros a estes vírus que nos ameaçam, nem fazer aliança com eles. O próprio refúgio numa espiritualidade passiva e soft não é um caminho viável. A saída é para a frente. Do céu temos o direito de esperar uma Nuvem que nos protege do sol escaldante e uma Palavra que nos faz mais fortes que o medo e nos põe a caminho, mas nenhuma solução mágica. A saída começa pelos ouvidos atentos e pelos pés incansáveis.
Abrir caminhos é preciso, tanto no meio das águas quanto no deserto inóspito. Num mundo que se mostra informe, líquido e ameaçador, a vida consagrada precisa discernir passagens possíveis e alianças necessárias. E o farol que orienta esta travessia é a mística da Palavra que se fez carne, a compaixão que se fez pão, o pão que se fez comunhão. É uma Palavra que pede para avançar, para não fazer concessões ao medo, para acreditar na semente, para cantar enquanto se caminha. Para avançar e fazer a travessia sem perder a dignidade precisamos, acima de tudo, enraizar nossa vida pessoal e nossas obras coletivas no seguimento de Jesus Cristo, o Verbo de Deus.
Seguimento radical de Jesus Cristo ‘acima’ de tudo. ‘Acima’ e não necessariamente ‘antes’, no sentido cronológico. Pois pode acontecer que, cronologicamente, antes ou junto venha a também indispensável proximidade solidária com os últimos e suas lutas. E isso não mais apenas de fora, nos fins-de-semana ou como uma simples atividade ao lado de outras que ocupam quase totalmente nossas energias, mas como uma perspectiva fundamental e unificadora de todo nosso ser e fazer pessoal e insitucional. A tragédia que pode se abater sobre a vida consagrada de hoje não é tanto a diminuição numérica dos membros quanto a perda das raízes evangélicas, o distanciamento e até a traição das esperanças dos oprimidos. Aqui é preciso avançar, mesmo que seja mar adentro.
Avançar é preciso porque a modernidade líquida e fluída, apesar de sua aparência e sua potência ameaçadora, esconde possibilidades que precisam ser exploradas. Os hebreus entraram no mar e ele se abriu em forma de estrada. As/os consagradas/os precisamos redescobrir ou abrir o sempre frágil e inegociável caminho da liberdade, que também pode ser batizado com o nome de “dignidade humana”. Não se trata de uma avenida pavimentada ou de uma auto-estrada, mas da trilha frágil da primazia da consciência individual sobre as metas e estratégias institucionais e eclesiásticas. É no seio dos indivíduos livres que a criatividade costuma fazer seu ninho. Comunidades e instituições ‘super-mães’ que sufocam com sua providência quase divina, ou ‘super-pais’ que limitam com seus aparelhos legais precisam ser superadas.
Avançar é preciso também no terreno do diálogo ecumênico e inter-religioso. A identidade e a missão da vida consagrada não emerge apenas do confronto com a hierarquia ou com a sociedade. A vida consagrada é um fenômeno presente em muitas religiões, e cumpre o papel dos grupos liminares, das minorias que antecipam em sua forma de vida os arquétipos e ideais humanos mais significativos. É na aproximação e na interface com as camadas populares que a vida consagrada encontra seu lugar. A partir da participação deste mesmo e único sopro do Espírito, a vida consagrada católica precisa avançar no diálogo, na escuta e na parceria com as demais tradições cristãs e com as diversas religiões, articulando sempre a montanha da contemplação com o oceano da compaixão.
À atual geração de consagradas/os cabe também avançar no caminho da simplificação. Quem não sente o peso quase insuportável das instituições, tradições, regras, hábitos, processos? Quem não sente uma sede insaciável de simplificação, desregulamentação, recuperação do essencial? As demandas oriundas da prudência e da urgência não podem abafar os reclamos da essência. É preciso avançar corajosamente rumo ao desenho de uma vida consagrada com poucos e indispensáveis traços, com cores e sabores definidos e emancipadores. Comunidades de amigos e amigas apaixonados por Deus e pela humanidade, enamorados de um processo de exigente conversão ao Evangelho: seria este o núcleo em relação ao qual tudo o mais é relativo e secundário?
Diga a esta geração, avance! Como no caso dos hebreus, também para a vida consagrada a ordem é avançar. Mas o avanço deve ser feito sem traçados pré-definidos. Não há ferramentas adequadas para abrir o caminho no meio das águas. Só o Seonho e a Utopia, que na tradição cristã foram batizadas com o nome Esperança, podem visualizar uma terra livre e avançar corajosamente na sua direção. Somente a certeza de que o Senhor nos ama e nos chama pode nos jogar no caminho da refundação ou regeneração daquilo que intuíram Antão, Bento, Francisco, Teresa, Inácio e tantas/os outras/os.
Pe. Itacir Brassiani msf

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