Viver bem é doar a própria vida na luta pela vida dos outros.
(Jr 31,31-34; Sl 50/51; Hb 5,7-9; Jo 12,20-33)
Estamos entrando na última etapa da nossa caminhada de preparação para a grande festa da vitória da paz sobre a violência, da saúde sobre a doença, da solidariedade sobre a indiferença. Como aquele grupo de gregos, nas quatro semanas que passaram ouvimos falar de Jesus, e agora pedimos com insistência: “Queremos ver Jesus!” Estejamos pois muito atentos/as, sintonizemos bem nossos ouvidos e centremos nosso olhar no mistério profundo que se desvelará progressivamente na semna-santa. Na mesa da Palavra deste domingo já temos uma pequena amostra, um breve flash daquilo que nos será revalado mais adiante. O segredo de Deus se assemelha ao dinamismo da semente. O verdadeiro rosto de Deus é o que se revela no alto da cruz: um Deus transpassado que nos atrai irresistivelmente a si e nos transforma em dom para a vida do mundo. Dom Romero, cujo martírio recordamos ontem (+24/03/1980) entendeu, viveu e anuncio isso de modo exemplar.
“Queremos ver Jesus!”
Jesus recém havia realizado um sinal impressionante devolvendo a vida ao amigo Lázaro. Quando voltou a Betânia, Marta, Maria e o próprio Lázaro ofereceram-lhe um jantar de acolhida, e Maria ungiu seus pés com um perfume precioso, sob o olhar reprovador de Judas e dos fariseus. Depois Jesus foi a Jerusalém e entrou na cidade montado num jumentinho, acompanhado de uma multidão que o aclamava como Messias libertador. “Todo mundo vai atrás de Jesus”, constatavam contrariados os fariseus. De fato, as autoridades religiosas estavam preocupadas com a crescente fama de Jesus.
É nesse contexto que alguns crentes pagãos, excluídos da plena cidadania de Israel, chegando a Jerusalém para a festa da páscoa, afastam-se do templo e manifestam a Filipe o desejo de ver Jesus. Filipe não se sente em condições de dizer “vem e vê” (cf. Jo 1,46) e procura André. Juntos, Filipe e André comunicam a Jesus o desejo daquele grupo de estrangeiros. Enquanto as autoridades religiosas, que se consideravam os verdadeiros adoradores de Deus, procuram um jeito de prender Jesus (cf. Jo 11,57), os pagãos, tratados como crentes de segunda classe, manifestam o desejo de conhecê-lo.
“Chegou a hora em que o Filho do Homem será glorificado”
É interessante notar a reação de Jesus frente ao pedido daqueles que desejam conhecê-lo. Ele poderia aproveitar a oportunidade para aumentar sua fama. Mas, ao contrário, aproveita a oportunidade e desenvolve uma catequese profunda e exigente sobre o messianismo que assume. Jesus responde declarando que sua Hora está próxima e que logo mais sua Glória será plenamente conhecida. Essa Hora é a meta da sua vida, mas está envolta em mistério e provoca medo. A assinatura da nova aliança visualizada por Jeremias tem um custo que assusta o próprio Jesus.
A glória do Filho do Homem – assim como a glória dos filhos e filhas de Deus – está muito longe de se identificar com a simples fama. O brilho e a grandeza de Deus se assemelham ao mistério da semente. “Eu garanto a vocês: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto.” A conquista da fama e de uma vida longa e sauável, em vez de ser portadora de glória, é caminho para a estirilidade e a solidão. Só o dinamismo de um amor que leva à doação de si mesmo/a a fundo perdido tem futuro e é digna de louvor. Mas este nunca foi e não é um caminho fácil.
“Cristo fez orações e súplicas a Deus, em alta voz e com lágrimas...”
O que impressiona é que, no exato momento em que sua fama ultrapassa os estreitos limites do judaísmo, Jesus nos abre seu coração e revela sua vulnerabilidade. “Agora estou muito perturbado. E o que vou dizer? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, manifesta a glória do teu nome.” A possibilidade do martírio desestabiliza o próprio Filho de Deus, mas esse é o testemunho inequívoco de amor e o ápice da vida cristã.
Geralmente evitamos revelar nossas fraquezas. Preferimos apresentarmo-nos em público com as máscaras da competência e com maquiagens que passam a idéia de eficiência, estabilidade e saúde. A debilidade e a incompletude nos envergonham como se fossem pecados ou feridas culpáveis, e não a nossa mais profunda verdade como criaturas. Preferimos a mentira das máscaras à verdade da carência, do vazio e da necessidade, parte do nosso DNA de criaturas.
Mas também nisso Jesus Cristo é um caminho que nos conduz à liberdade. O Messias é vulnerável, e assumindo essa condição comum aos seres humanos, nos salva. A carta aos Hebreus diz sem titubeios: “Durante sua vida na terra, Cristo fez orações e súplicas a Deus em alta voz e com lágrimas ao Deus que o podia salvar da morte.” Sim, sofrendo, gritando e soluçando como uma pessoa esmagada e desesperada! A assunção dessa condição humana foi sua obediência e sua perfeição. E é assim que ele se torna fonte na qual também nós podemos beber liberdade, salvação e vida plena.
“Quem tem apego à sua vida var perdê-la.”
Jesus Cristo é o Messias de Deus que, inspirado no mistério da semente, mergulha fundo na debilidade humana e a assume como caminho de humanização. Esse é o percurso no qual nos guia o amor. Não sabe o que é o amor e não é capaz de amar quem, com medo de seu próprio vazio, procura desesperadamente fazer dos outros objetos para preenchê-lo. Não há faísca de amor nas pessoas que não conseguem reconhecer a dignidade do outro como outro, não pela utilidade que tem.
O grande ensinamento do Messias humanizado é que ganhamos a vida investindo-a em favor dos irmãos e irmãs, sem contabilizar perdas ou ganhos. Quem só age depois de fazer as contas dos dividendos que terá converte-se em negociante, perde o sentido da vida e acaba solitário e desesperado, afogado/a nos seus próprios créditos. A vida é fruto do amor, e não consegue germinar se esse amor não for pleno e incondicional. Dom Oscar Romero que o diga!
Dar a própria vida é a máxima expressão do amor. E isso não é perda, mas ganho exponencial, não é frustração de uma existência mas seu êxito completo. Suscitar e universalizar o medo, da doença e da morte é a grande arma das estruturas injustas, e superar o medo de perder a própria vida é o caminho para desarmar os poderes estabelecidos. Quem confia a Deus sua vulnerabilidade vence o medo e é soberanamente livre para amar radicalmente. Alcança a imortalidade.
“Se alguém quer servir a mim, que me siga.”
Na pessoa de Jesus descobrimos que o amor não é da ordem dos sentimentos, mas algo que tem a ver com vontade e com ação. Ama verdadeiramente quem reconhece e afirma a dignidade de quem é diferente, mesmo que não seja agradável à proópria sensibilidade. Amar é colocar-se a serviço das reais necessidades do outro. O amor leal consiste em esquecer os interesses e seguranças pessoais e engajar-se no trabalho pela vida, pela dignidade e pela liberdade dos homens e mulheres no meio e apesar dos sistemas de morte. Amar é dar vida, da própria vida e a até a própria vida, dizia Romero.
Por isso, alcançamos a vida plena quando seguimos os passos de Jesus Cristo e estabelecemos nossa morada nas tendas nas quais ele se abriga. Nosso amor e nosso serviço a Jesus Cristo se mostram no prosseguimento criativo da sua ação, na entrega de nós mesmos/as como semente. Jesus é o novo templo no qual encontramos Deus, a nova lei que nos conduz à vida, e a sua morte não é outra coisa que a culminância desse processo de doação de si. A semente é uma parábola que revela o modo como Jesus e seus discípulos/as vivem, convivem e realizam a missão.
“Quando eu for levantado, atrairei todos a mim”
Jesus de Nazaré: também nós desejamos te ver de perto, ouvir tua palavra, seguir teus passos. Sabemos que não és um filósofo estóico que se compraz em viver e ensinar o desapego dos prazeres da vida, mas um profeta que se entrega sem reservas ao sonho de mudar o mundo e, assim, revelar um novo rosto de um Deus que é pai e mãe. Para isso, assumes a vulnerabilidade e a conflitividade, desces ao fundo da condição humana e aceitas ser elevado na cruz entre criminosos desprezados. Fazes tudo isso para, em nome de Deus, afirmar a dignidade dos sem-dignidade, vencer ‘os principais’ desse mundo e nos atrair irresistivelmente para ti. Imprime tua força no nosso coração, renova tua aliança conosco e juda-nos a ser semente que se doa generosamente e aceita corajosamente a morte para frutificar abundantemente. Ensina-nos o que significa ser obediente, como foste tu. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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