Que o SUS garanta saúde e vida ao povo brasileiro!
(2Cr 36,14-16.19-23; Sl 136/137; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)
Um juíz implacável, impassível, sem coração, sempre pronto a defender a universalidade da lei e a pronunciar sentenças irreversíveis: essa é a imagem de Deus que muitos cristãos têm e divulgam. Mas, no Evangelho, Jesus diz claramente que Deus enviou seu Filho ao mundo para salvá-lo, para conduzi-lo à vida, e não para condená-lo. A gratuidade do amor de Deus é que nos salva. Como experimentar e testemunhar a Boa Notícia da gratuidade e da benevolência de Deus no contexto da luta por uma saúde pública e de qualidade a serviço de todo o povo brasileiro? Um dos objetivos da Campanha da Fraternidade é exatamente este: despertar nas comunidades cristãs a reflexão sobre a realidade da saúde pública em vista da defesa do SUS e da reinvindicação do seu adequado funcionamento...
“Deus enviou seu Filho não para condenar o mundo...”
Pessoas doentes e dobradas pelo sofrimento as vemos por toda a parte. Umas condenadas à miséria presente e a um futuro incerto; outras condenadas a um presente vazio e a um futuro que assusta. Umas forçadas a viver em casa como se estivessem numa prisão e outras condenadas à prisão por qualquer coisa. Umas condenadas por sua cor ou orientação sexual e outras pela falta de chances de estudo, por pensar diferente ou por querer desmascarar a hipocrisia.
A tentação é grande, e se não formos eternamente vigilantes acabamos dividindo o mundo entre culpados e inocentes, merecedores e indignos. E é fácil encontrar na Bíblia versículos isolados que se prestam a fundamentar nossas sentenças inapeláveis. E, via de regra, culpadas são as pessoas diferentes, as que tentam caminhos novos, as que questionam nossos interesses e privilégios, as que amargam derrotas e se curvam sob dores as mais diversas, as pessoas disfuncionais de toda sorte.
Como nos custa entender que Deus se rege por uma gramática diferente! É incrível a facilidade com que os homens (sim, no masculino!) que dirigem as igrejas e se apresentam como procuradores de Deus sentam na cadeira de juiz, cadeira que o próprio Jesus recusou. Com que frequência nos escondemos por trás de máscaras de benfeitores e imparciais e estamos prontos a denunciar o cisco no olho dos outros sem darmo-nos conta do nosso próprio lixo. Não, esse não é o jeito de Jesus Cristo!
“É preciso que o Filho do Homem seja levantado...”
O rosto do Messias é outro, a prática de Jesus é diversa. Ele recusa a cadeira de juiz e senta-se ao lado dos acusados, como aliado e defensor. Isso é evidente desde a estrebaria, onde os proscritos o visitaram, até a cruz, quando foi moeda de troca por condenado e compartilhou o calvário com outros dois. O Filho de Deus desceu todos os degraus para alcançar o ser humano no nível mais baixo, no lugar de culpado e de devedor. E não o fez insensível ou com o dedo em riste, mas de braços abertos.
O que deve nos impressionar não é o fato de que Jesus tenha subido ao céu, mas de que Deus tenha descido definitivamente à terra. E ele desceu tanto que, mais que assumir a frágil e contraditória condição humana, assumiu a carne dos/as condenados/as para declará-los/as justificados/as. Deus desceu tanto, que adentrou solidariamente no inferno vivido pelos/as condenados/as à morte ou a uma vida que tem mais a ver com um lento processo de morte. Desceu tanto que o levantaram numa cruz!
É para esse homem levantado na cruz dos malditos e entre dois condenados que somos chamados/as a voltar nosso olhar. Eis aqui o Messias, aquele que sola a língua aos mudos, abre o ouvido aos surdos, resgata a vida dos condenados à morte, anuncia boas notícias aos pobres, cura os doentes, proclama o ano da graça de Deus! Mudo, ela pronuncia palavras incomparáveis. Imóvel, abraça e acolhe os/as condenados/as de todos os tempos e rincões. Eis o ser humano! Eis o corpo de Deus!
“Deus amou de tal forma o mundo que entregou o seu Filho único...”
Não desperdicemos esta quarta e insuperável lição na escola da caminhada pascal. Começamos acompanhando Jesus no deserto para aprender a vencer as tentações. Subimos com ele no Tabor para apreder a lição da humildade e do serviço. Fomos com ele ao templo para que ele tirasse da nossa vida toda superficialidade, falsidade e autoritarismo. Neste domingo ele nos ensina que lamentar débitos ou exigir créditos não faz o menor sentido. “Vocês foram salvos pela graça”, insiste São Paulo, e isso para que ninguém se encha de orgulho. Deus é misericórdia e nos ama sem medida.
É Jesus quem diz que “Deus amou de tal forma o mundo que entregou seu Filho único...” Trata-se do mundo em sua globalidade, sem distinções entre culpados ou inocentes, homens ou mulheres, devedores ou merecedores. Em Jesus Cristo se manifesta de forma clara a glória de Deus, e essa glória não é outra coisa que o amor que se faz dom e acolhida sem nenhum tipo de condição ou exigência. Ele nos deu a vida “quando estávamos mortos por causa de nossas faltas”, sublinha Paulo.
“Todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna”
Este rio de graça, este sol de justiça que nos vem de Deus em Jesus Cristo começa por desmascarar nossos pretensos merecimentos, avança revelando nossa verdade mais profunda e termina capacitando-nos a agir como homens e mulheres novos. “Fomos criados para as boas obras” diz São Paulo, e precisamos nos ocupar delas. Crer é aderir à proposta de Jesus, e aderir é agir. Quem não decide somar sua ação à ação libertadora de Deus acaba desperdiçando a própria vida.
O amor de Deus feito carne no alto da cruz não tolhe a liberdade do ser humano. Ele apenas toma o lugar ocupado pela lei e se torna luz que orienta as nossas ações e opções. Nada está definido de ante-mão e tudo deve ser discernido. Nossas ações são guiadas e julgadas por essa luz, a única capaz de revelar a bondade ou a maldade das nossas ações. Aderir a Jesus Cristo significa crer na dignidade inerente a cada pessoa humana e nas suas possibilidades positivas, e esse é o caminho da vida.
“A luz veio ao mundo mas os homens preferiram as trevas à luz”
Temos sempre a tentação de identificar a lei com a luz. “A lei é clara”, repetimos com frequência. Todas as leis são frutos dos consensos políticos e do equilíbrio de forças num determinado momento. Em última instância, são regras impostas pelo grupo mais forte, aquele que tem mais recursos para convencer os demais. Mais que luz, a lei é fogo, ela queima. A luz verdadeira, aquela da qual precisamos nos aproximar para que nossa bondade radical seja confirmada, é aquela afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou melhor, é a prática amorosa de Jesus Cristo.
Não temos outra lei que possa ser caminho seguro de vida e de liberdade. Não há outra norma que possa conduzir à nova sociedade. Mas há aqueles/as que, para disfarçar a malícia dos seus projetos e a estreiteza dos seus interesses, fecham os ouvidos a essa Palavra e odeiam essa luz, mesmo que queiram demonstrar o contrário. Estas pessoas acabam produzindo frutos amargos que enchem a mesa dos outros: dominação, desigualdade, exclusão, violência, insegurança.
O Messias que acolhemos como caminho é aquele que desceu do céu aos infernos e, permanecendo fiel ao seu amor pelo mundo, foi elevado entre os condenados. Esse dinamismo de descida e esvaziamento solidário é nossa única lei, uma lei que não vem imposta de fora pois está no próprio coração da vida. Essa é a luz a partir da qual a verdade dos nossos projetos e práticas vêm à tona. Outros caminhos são máscaras, trevas e disfarces que escondem nossa verdade, violentam as pessoas e conduzem à morte.
“Tinha compaixão do seu povo e da sua morada...”
Deus pai e mãe, rico em misericórdia: é imenso o amor com que nos amas! Enviaste teu filho amado para nele todos/as tenhamos vida e saúde sem limites! Dá-nos um amor assim intenso e lúcido, a fim de que sejamos capazes de dar continuidade a este dinamismo que salva e renova mundo, lutando por um sistema de saúde público e de qualidade. Não permitas que sentemos e choremos passivamente nosso desterro, mas coloca-nos a caminho para reconstruir o mundo na força do teu amor. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário