As pessoas doentes são um templo de Deus!
(Ex 20,1-17; Sl 18/19; 1Cor 1,22-25; Jo 2,13-25)
Via de regra, a experiência religiosa está relacionada com lugares, tempos, normas e gestos que a tornam palpável e ajudam a expressá-la. O povo hebreu suspirava nos seus salmos: “Como são desejáveis as tuas moradas, Javé dos Exércitos! Minha alma suspira e desfalece pelos átrios de Javé... Felizes os que habitam em tua casa: eles te louvam sem cessar... Mais vale um dia em teus átrios do que mil em minha casa” (Sl 84/83). Mas a ambiguidade pode penetrar até mesmo nestes símbolos intimamente relacionados com a experiência de fé, como o templo. Assim, a Quaresma se oferece um percurso pedagógico e espiritual que nos ajuda a purificar o olhar, o pensar e o agir. E o ponto de partida dessa mudança radical é a consciência de que o que caracteriza Deus é ação de amar, e não há lei, lugar ou coisa que possa ser anteposta ou sobreposta ao mandamento de reconhecer o outro como outro e servi-lo em suas necessidades. Não seria exatamente esta a missão da Pastoral da Saúde: assegurar a importância do amor e do serviço concreto aos doentes para a fé em Jesus Cristo?
“A lei do Senhor é perfeita...”
Na travessia do deserto, deixando para trás o Egito e suas leis excludentes e opressoras, as tribos que fugiam da opressão do Egito se constituíram em assembléia constituinte. As leis que Deus promulgou e entregou a Moisés em vista do povo foram o resultado final de um processo de discernimento que envolveu as tribos e suas lideranças. E todas as leis, proibições ou mandamentos, têm um alvo fundamental: garantir a paz, a fraternidade e a justiça na sociedade que construirão assim que entrarem na terra prometida.
Afirmando que sua lei deriva da aliança com Deus, as tribos de Israel sublinham seu caráter transcendente e inegociável: ela é muito mais que um contrato social, um equilíbrio de forças ou a prevalência do mais forte. Essa lei é louvada e celebrada pelos frutos de igualdade e de liberdade que produz. “A lei do Senhor é perfeita, um descanso para a alma. O testemunho do Senhor é firme, instrução para o ignorante. Os preceitos do Senhor são retos, alegria para o coração. O mandamento do Senhor é transparente, luz para os olhos” (Sl 18/19).
Entretanto, com o passar do tempo, a lei que o povo considerava mais preciosa que o ouro e mais doce que o mel tornou-se um fardo pesado nas costas de um povo já cansado e encruvado. Como sempre, quando cai nas mãos das elites religiosas e políticas, a lei deixa de servir à liberdade e à vida do povo e passa a garantir os privilégios de uns poucos; deixa de ser árvore e caminho de vida e se torna algema que aprisiona, princípio que exclui e veneno que mata. Vira um entulho autoritário e opressivo.
“Não tenha outros deuses diante de mim.”
A imponência amedrontadora dos deuses dos faraós não saía da cabeça dos hebreus. Eram deuses que sustentavam e legitimavam os que detinham o poder, os fortes, os vencedores. Aquele punhado de escravos e escravas havia protestado contra a opressão, mentido às autoridades e iniciado a travessia em nome de um outro Deus, a único Vivo e Verdadeiro: o Deus que ouve os clamores dos oprimidos, conhece seus sofrimentos, desce para fazer subir e acompanha na dificil e longa travessia (cf. Ex 3,7-10).
“Eu sou Javé,s eu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não tenha outros deuses diante de mim.” No coração dos mandamentos está a fé agradecida e responsável no Deus dos pobres, no Deus que abre caminhos de liberdade e de vida para os oprimidos. Aceitar um deus diferente seria entrar no perigoso caminho da desigualdade, dos privilégios, da indiferença. E usar o nome de Deus para sustentar sistemas e práticas opressivas e excludentes é algo que provoca sua indignação.
Entrando no templo e expulsando os comerciantes e cambistas, Jesus denuncia o uso do nome de Deus para fins de exploração e diz que, na prática, aquela gente cultuava outros deuses. E hoje não é diferente, pois muitas são as pessoas que fazem de tudo para defender e aumentar seus bens; que excluem e violentam em nome da própria honra; que invocam o nome de Deus para justificar sua prosperidade e refutar as lutas dos pobres; que só têm olhos para si mesmas e seus interesses...
“No templo, Jesus encontrou os vendedores...”
Jesus vai a Jerusalém e entra no templo num momento festivo e forte. Na festa da páscoa a cidade ficava entulhada de peregrinos e o comércio fervia e faturava. Estima-se que, por ocasião das festas pascais, no templo de Jerusalém eram sacrificados mais ou menos 18000 animais! E os vendedores de animais e cambistas estavam lá para facilitar os ‘negócios de Deus’. O povo chegava de todos os lados para oferecer os sacrifício e precisava comprar os animais. Como a lei proibia o uso de moedas com imagens, lá estavam os cambistas.
Jesus fica simplesmente indignado com tudo isso. O zelo pelo bem-estar do seu povo o inflama e consome. As próprias autoridades religiosas, em nome da fé, usando o nome de Deus em vão, haviam transformado o templo em espaço e instrumento de exploração. Jesus expulsa os comerciantes, derruba as mesas dos cambistas e pede aos vendedores de pombas que levem suas gaiolas embora. “Tirem isso daqui!” Jesus mostra-se mais indignado com estes últimos, pois exploram a fé dos mais pobres, daqueles que, por sua miséria, só podiam comprar e oferecer pombas (cf. Lv 5,7; 14,30).
“Que sinal mostras para agir assim?”
Não esqueçamos que essa é a primeira ação propriamente pública de Jesus relatada por João. Por isso, os dirigentes do templo regem solicitando as credenciais de Jesus, perguntando com que direito ele faz isso. “Que sinal nos mostras para agir assim?” Os dirigentes pouco se importam com a exploração dos pobres. Estão interessados nas credencias de Jesus. Eles não querem saber apenas se Jesus se apresenta como profeta, já que fazer um chicote e ‘botar ordem’ no templo era um gesto ligado à chegada do Messias. Querem uma demonstração de que ele é mesmo o messias esperado.
Lembremos aqui o que diz Paulo, ilustrando aquilo que é visto como importante até hoje: “Os judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria.” Traduzindo numa linguagem atual: uns procuram e valorizam gestos grandiosos, demonstrações de poder; outros confiam no conhecimento e no saber bem organizado. Infelizmente temos até Igrejas e movimentos que não fazem outra coisa senão promover cultos e ‘milagres’ espetaculares e se amoldar à ideologia do sucesso e da prosperidade...
“O templo de que Jesus falava era o seu corpo.”
Com esta desconcertante ação simbólica, Jesus faz mais que purificar o templo ou corrigir suas práticas. Ele declara que o templo não é mais mediação de Deus, que os sacrifícios são inúteis e nulos. A partir de Jesus, Deus se deixa encontrar na humanidade das pessoas que amam e na comunidade que serve. O templo permanece unicamente como espaço de encontro e lugar para fazer memória e cultivar a esperança. A verdadeira sacralidade migra do templo para os corpos e para as ações concretas.
A resposta de Jesus ao desafio dos dirigentes do templo é um pouco desconcertante. “Destruam esse templo e em três dias eu o levantarei.” E o evangelista observa que ele se referia ao seu corpo. A realidade visível e humana de Jesus com suas possibilidades e vulnerabilidades, o corpo que traz as marcas e cores do povo, o corpo que ele compartilha com todos os humanos e que, mesmo sob tortura, é doado livremente, esse é templo no qual a glória de Deus brilha, age e liberta.
É por isso que possibilitar alimento a quem está com fome e abrigo a quem é peregrino, solidarizar-se com quem está doente e vestir os desabrigados, enfim, cuidar dos corpos desfigurados, abre a porta para o encontro com Deus. O corpo é o templo no qual Deus habita. Socorrê-lo e servi-lo com amor – missão própria da Pastoral da Saúde – é a única lei que deve ser cumprida. E o tempo favorável à nossa salvação é agora. A divindade habita a corporeidade. “Isto é meu corpo e meu sangue dados por vós...”
“A loucura de Deus é mais sábia que os homens...”
Senhor Jesus, para muita gente, teu ensinamento e tuas atitudes parecem exageradas e loucas. Pensam que uma religião que prioriza o corpo seja coisa destinada ao fracasso. Estão habituados/as a decorar leis, frequentar cultos, oferecer sacrifícios e ouvir condenações. Mas Paulo diz que loucura de Deus é mais sábia que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens. Vem e limpa as Igrejas do entulho moralista e autoritário. Que nossas comunidades sejam teu corpo, constituído de membros igualmente dignos e solidários, continuadores do teu cuidado pelos doentes. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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