O Evangelho é muito mais importante que os costumes e tradições!
A fidelidade de Deus à
sua misericórdia e compaixão pela humanidade nos interpela a assumir nossa
responsabilidade pelos males que a ferem e a reverter nossas prioridades, quase
sempre muito estreitas ou egoístas. E um dos primeiros passos é romper com
algumas práticas que adquiriram força de tradição e de verdade: a ilusão de que
a fé pode ser vivida sem ligação com a vida concreta; a mania de pedir que Deus
mude o mundo sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar publicamente uma
retidão que não vai além da própria pele; o mito de que a única saída para os
problemas sociais é cada um cuidar de si mesmo.
O amor solidário e
compassivo de Deus, manifestado e atestado definitivamente em Jesus Cristo, não
muda jamais. E não muda também o amor como único caminho possível para construir
outro mundo. O apóstolo Tiago insiste: “Ele nos gerou por meio da Palavra da
verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas criaturas”. E
acrescenta: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta:
socorrer os órfãos e as viúvas em aflição e manter-se livre da corrupção do
mundo.” Nosso batismo expressa esta vocação dos cristãos: ser os primeiros a
viver o amor como princípio, meio e fim.
Quando falamos em amor
não estamos nos referindo a um vago sentimento
interior, mas a um dinamismo
envolvente, que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se
de reconhecer os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender
suas necessidades. E isso comporta decisões
e ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, que nos
envolvem em lutas, que nos levam a compartilhar os sofrimentos e humilhações
que decorrem disso. É isso que significa
manter-se livre da corrupção, socorrer os órfãos e as viúvas, como diz o
apóstolo Tiago.
É lamentável observar
que inda hoje alguns cristãos, inclusive consagrados e ordenados, estejam mais
preocupados com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se
aproximam da eucaristia que com as fraturas, divisões e injustiças que ferem o
corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados e excluídos da mesa
da vida. Eles priorizam a limpeza das toalhas, patenas e cálices, dão a máxima
importância a panos e hábitos vistosos, mas pouco se importam com as atitudes
verdadeiramente anti-evangélicas que precisam ser combatidas e mudadas.
É esta a “lei” que os
legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos seus
discípulos. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão sem lavar as mãos?” A eles
não interessa a partilha dos pães e peixes que alimentara uma multidão, mas o
fato de que os discípulos e todo o povo haviam comido sem lavar as mãos! E o
pior é que eles têm seguidores/as hoje, inclusive fora do âmbito religioso:
pessoas que querem salvar as leis do mercado à custa da fome que mata milhões.
O caminho trilhado e proposto por Jesus de Nazaré é bem outra coisa!
A verdade é que alguns
costumes irrelevantes e hábitos perniciosos vão conquistando uma importância
cada vez maior, e acabam aparecendo à nossa consciência como expressões da
vontade de Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão
ou não, e quanta polêmica em torno da prática de chamar leigos e leigas a
proclamar o Evangelho numa celebração eucarística! E sem falar na comunhão aos
casais separados ou recasados. Tradições humanas que ocupam o lugar da vontade
de Deus!
Jesus estabelece um
princípio que “crava” o discernimento de cada dia, e em todos os casos: “O que
vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da
pessoa é que a tornam impura”. O que nos torna dignos ou indignos não é nossa
condição social, nosso grau de estudo, nossos recursos e bens, nossa orientação
sexual ou nossa pertença religiosa, mas as ações e decisões que tomamos, as
relações que estabelecemos. “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem
as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultério, ambições sem
limites, maldades...”, esclarece Jesus.
Jesus, Palavra viva e libertadora do Pai, tu nos pedes
que não confundamos a Boa Notícia que liberta com nossas doutrinas, medos e
interesses. Tu nos ensinas que não são os aspectos externos que nos fazem bons
ou ruins aos olhos do teu Pai. Abre nossos olhos, nossos ouvidos e nosso
coração à tua Boa Notícia. Ajuda-nos a reinventar evangelicamente tua Igreja,
tão devedora de tradições fossilizadas. E ajuda-nos a distinguir, entre nossas
lideranças, os trapaceiros daqueles que tem compromisso com o povo. Assim seja!
Amém!
Itacir
Brassiani msf
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