A discriminação é incompatível com o Evangelho de Jesus!
Iniciando o mês da
Bíblia, somos interpelados a abrir nossos ouvidos a um Deus que continua
falando, despertando e conduzindo à verdadeira Sabedoria. Não se trata de dar
atenção a simples textos, por mais belos e profundos que sejam. O essencial é
manter uma relação dialogal com Deus. Mais que adoração e louvor, ele espera de
nós escuta e resposta. Que o Senhor abra nossos ouvidos e solte nossa língua,
como Jesus faz no evangelho de hoje. Não sejamos como os discípulos que, tendo
olhos e ouvidos perfeitos, não conseguem ver nem ouvir a novidade inaugurada
por Jesus Cristo (cf. Mc 8,18).
A Palavra de Deus nos
revela os elementos irrenunciáveis à fé. E um deles é união da fé com a vida. A
salvação é a transformação de uma situação de carência em abundância. Quando
uma religião se perverte em doutrina ou moral inflexível, torna-se uma faca
amolada, que ameaça e fere. Quando uma Igreja esconde ou nega suas próprias
contradições, corre o risco de se tornar intolerante, e quando se refugia em
intimismos e formalismos, atraiçoa sua vocação humanizadora e acaba
transformando a indiferença em virtude.
A presença de Deus em
nossa vida é dinamismo de mudança, e a sua Palavra testemunha que ele ouve clamores,
conhece sofrimentos, abre nossos olhos e os ouvidos, desce para fazer subir,
congrega os dispersos, acolhe os desprezados, ressuscita os mortos. O
cristianismo não é formol que conserva corpos mortos, mas sementeira na qual
germina a vida. Também hoje Jesus quer tocar com sua mão a língua daqueles que
falam com dificuldade e curar o ouvido de quem não consegue ouvir os outros.
Marcos nos apresenta
Jesus percorrendo caminhos que, para algumas pessoas, parecem estranhos. A
região de Tiro, Sidônia e da Decápole era habitada por pagãos, gente
desprezada. Com a presença de Jesus, brilham novas possibilidades de vida para
a filha de uma mulher nascida na Fenícia e para um surdo-mudo sem nome. Não
teria Jesus o que fazer entre os seus conterrâneos? Em sua peregrinação no
santuário das dores humanas, Jesus sempre dá prioridade absoluta aos últimos da escala social, aos pobres e
desprezados.
Não falta gente que
desejaria excluir da bíblia textos como a carta de São Tiago, que pede que, em
nossas igrejas, não façamos distinção de pessoas em favor dos ricos e nobres.
“Não foi Deus que escolheu os que são pobres aos olhos do mundo para torná-los
ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu àqueles que o amam?” Este é um
princípio fundamental e uma bela experiência dos primeiros cristãos: a fé em
Jesus não admite distinção de pessoas em benefício dos mais fortes ou
considerados nobres. Os critérios do Evangelho são outros, e nos interpelam
fortemente.
Acolhendo um pagão
doente e necessitado e tocando seus ouvidos e sua língua, Jesus despreza as
prescrições religiosas e sanitárias do seu tempo. Ele rompe a distância, toca o
doente, o contágio é revertido e o surdo-mudo é curado. Mas Jesus faz questão
de não agir sob os refletores e câmaras. Faz o contrário de muitos que hoje,
“em nome de Jesus”, transformam a fé em espetáculo e inventam curas ao vivo e a
cores, escarnecendo dos doentes, manipulando a fé do povo humilde e extorquindo
deles os poucos recursos que lhes restam. Por isso, a multidão ficou
entusiasmada diante da compaixão de Jesus.
Estamos como aquele
homem que falava com dificuldade. Nossos ouvidos parecem surdos às Palavras que
escapam da nossa lógica e questionam nossos interesses. Nossa língua parece
presa, especialmente quando se trata de defender os direitos humanos e recriar
o Evangelho da liberdade e da solidariedade. Um nacionalismo anacrônico e nada
evangélico, ao lado de uma mentalidade escravagista, ativados especialmente na
semana da pátria, nos induz a imaginar perigosamente que ser humano significa
ser superior e melhor que outros. Precisamos que Jesus Cristo toque nossos
ouvidos, coloque sua saliva em nossa língua, converta a nossa mente e libere a
nossa comunicação e nossa ação.
Jesus, tu és compassivo em tudo o que fazes e
verdadeiro em tudo o que dizes. Não podemos calar esta Boa Notícia, mesmo
quando seu anúncio traz riscos, pois ela é nossa Sabedoria. Abre nossos ouvidos
à tua santa Palavra, para que não desistamos de crer e de esperar o belo e
santo dia em que os estropiados dançarão alegremente, a língua dos mudos se
soltará numa solene e alegre melodia e o duro chão das instituições será regado
e amolecido pela água benfazeja da tua Sabedoria. Que teu corpo e sangue nos
alimentem e ajudem a transformar em lavoura e jardim a terra hoje ocupada pelos
chacais. Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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