sábado, 4 de janeiro de 2025

A Esperança e suas irmãs (Charles Péguy)

A Esperança Menina e suas duas irmãs maiores (Charles Péguy)

Deus disse: A Caridade, não me espanta. Isso não é espantoso. Essas pobres criaturas são tão infelizes que a não ser que tivessem um coração de pedra, como não haveriam de ter Caridade umas para com as outras? Como não haveriam de ter Caridade para com seus irmãos? Como é que eles não haviam de tirar o pão da boca, o pão de cada dia, para dá-lo a desgraçadas crianças que passam? Meu filho teve para com eles uma tal caridade...

Mas a Esperança, diz Deus, a Esperança me espanta. Que essas pobres crianças vejam como tudo o que acontece e ainda acreditem que amanhã vai ser melhor, isso me espanta. Que vejam como isso acontece hoje e acreditem que vai ser melhor amanhã cedo, isso me impressiona. Isso é espantoso, e é a maior maravilha da minha graça.

E é preciso que de fato minha graça tenha uma força incrível, que ela escorra de uma fonte e como um rio inesgotável; desde aquela primeira vez que ela escorreu, e escorre sempre desde então; na minha criação natural e sobrenatural; na minha criação espiritual e carnal e ainda espiritual; na minha criação eterna e temporal e ainda eterna, mortal e imortal; desde aquela vez que ela escorreu como um rio de sangue, do flanco trespassado de meu filho.

Qual não deve ser a minha graça e a força da minha graça para que essa pequena Esperança, vacilante ao sopro do pecado, trêmula a todos os ventos, ansiosa ao menor sopro, seja tão invariável, mantenha-se tão fiel, tão reta, tão pura. E invencível, e imortal, e impossível de apagar-se, essa pequena flama do santuário que queima eternamente na lâmpada fiel; essa chama tiritante que atravessou a espessura dos mundos; essa chama vacilante atravessou a espessura dos tempos; essa chama ansiosa atravessou a espessura das noites. Desde aquela primeira vez que a minha graça escorreu para a criação do mundo, desde então a minha graça escorre sempre para a conservação do mundo. Uma chama impossível de se alcançar, impossível de se apagar ao sopro da morte.

O que me espanta, diz Deus, é a Esperança; ela me deixa pasmo, essa pequena Esperança que parece uma coisa de nada; essa pequena Esperança, imortal. Porque as minhas três virtudes, diz Deus, minhas criaturas, minhas filhas, minhas crianças, elas são como as minhas outras criaturas, da raça dos homens.

A Fé é como uma Esposa fiel. A Caridade é como uma Mãe, uma mãe ardente, cheia de coração; ou uma irmã mais velha, que é como uma mãe. A Esperança é uma menininha de nada que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado; que brinca ainda com o boneco de neve, com seus pinheirinhos de madeira da Alemanha, e com seu presépio cheio de palha que os animais não comem.

Entretanto é essa menininha que atravessará os mundos, essa menininha de nada. É ela só, levando os outros, que atravessará os mundos revolvidos. A pequena Esperança caminha, entre as suas irmãs mais velhas, e não recebe a devida atenção. No caminho da salvação, no caminho da carne, no caminho pedregoso da salvação, na estrada interminável. Nessa estrada, entre as suas duas irmãs, caminha a pequena Esperança. Entre as duas irmãs grandes.

Aquela que é casada, e a outra é mãe, e ninguém repara nesta. O povo cristão só repara nas duas irmãs grandes, a primeira e a última, que caminham com pressa, para o tempo presente, no instante momentâneo que passa. O povo cristão só vê as duas grandes irmãs, só olha para as duas irmãs grandes, a da direita e a da esquerda. E quase não repara na irmãzinha que caminha no meio.

Mas é ela, essa menininha, a que arrasta tudo consigo. Porque a Fé só vê aquilo que é, mas ela vê aquilo que será. A Caridade só ama aquilo que é, mas ela ama aquilo que será. A Fé vê o que é, no Tempo e na Eternidade, mas a Esperança vê o que será, no tempo e na eternidade.

Deus se manifesta como salvação para todos

Deus oferece sua salvação a todos os homens de boa vontade | 583 | 05.01.2025 | Mateus 2,1-12

Muito cedo, as comunidades cristãs chegaram a uma convicção bem segura: em Jesus, na sua vida e nas suas palavras, Deus revela sua mais límpida vontade, e ela consiste na afirmação de que todos os povos e nações que não pertencem ao judaísmo são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, e são associados à mesma promessa revelada anteriormente apenas ao povo judeu.

Ainda hoje somos tentados a dividir a humanidade em judeus e pagãos, cidadãos e não cidadãos, santos e pecadores, cristãos e hereges, nós e eles, etc. E aqueles que proclamam e sustentam essa divisão se incluem sempre no primeiro grupo, entre as pessoas as “pessoas de bem”, aquelas que agradariam a Deus! Não conseguem entender que Jesus tenha vindo para contestar e desmascarar essa ideologia.

A manifestação de Deus na estrebaria e na cruz, nas estradas e no templo, se confronta também com outra piedosa tentação: a ideologia do poder, que imagina que Deus é uma entidade todo-poderosa que age mediante as pessoas que se destacam pelo poder, pelo saber ou pela riqueza. Ao perguntarem onde está o rei dos Judeus que acabara de nascer, orientados pelos homens religiosos, os magos do Evangelho nos remetem a um Menino, sem poder e sem sinais de realeza.

Com a solenidade da epifania, a manifestação do filho de Deus a todas as nações, povos e culturas, a Igreja quer suscitar nos cristãos a alegria e o discernimento, mas aquela depende deste. As pretensões de superioridade não podem nos levar a esquecer que os primeiros a reconhecer a manifestação de Deus em Jesus Cristo são os pastores e os pagãos, os pecadores e as prostitutas. Enquanto os magos deixam a comodidade, buscam e perguntam, Herodes cede ao medo e os sacerdotes, mesmo sabendo tudo, permanecem inertes.

Em Jesus, Deus vem ao encontro de quem está longe, de quem é tratado como último, que nada merece e nada pode. E se revela aos utópicos e sonhadores, aos buscadores de terras sem males, aos construtores da paz solidária, aos tecedores da fraternidade sem fronteiras, aos reconstrutores das terras e cidades devastadas. Aprendamos com os magos a vencer todo resquício de colaboração com a ideologia dos poderosos. Encontrando Jesus, trilhemos outros e novos caminhos!

 

Meditação:

§   Releia o texto lentamente, detendo-se nos personagens, naquilo que falam e fazem, nas atitudes que revelam

§   Mesmo que a tradição diga que estes personagens como magos ou reis, eles são pagãos sábios e desprezados que buscam a Deus

§   O que leva Herodes e temer o nascimento do Messias, e os sacerdotes a não fazer nada, mesmo conhecendo as escrituras?

§   O que significa para você e sua comunidade mudar de caminho depois de encontrar Jesus?

Próspero ano novo?

A prosperidade, por si mesma, não engendra a paz

Há poucos dias iniciamos festivamente o ano 2025. Repetimos e ouvimos à exaustão os votos de “feliz e próspero ano novo”, mesmo sabendo que, nas relações que vivemos e na história que fazemos, nada acontece automaticamente, como efeito de uma simples mudança de calendário ou um desejo, por mais ardente que este seja. Mas, como peregrinos de esperança, não cansamos de desejar e de expressar este e outros votos.

O réveillon da praia de Copacabana, que propagandeamos como o mais belo do mundo, é realmente bonito e envolvente. Mas a beleza dos fogos, os brindes efusivos e as roupas na cor do momento, assim como a impressionante multidão que se reúne, não são suficientes para dinamizar um percurso de paz e assegurar a prosperidade desejada.

Aliás, o que significa realmente “prosperidade” e “felicidade”? Geralmente, quando dizemos “felicidade” nos referimos a experiências de exclusividade: frequentar lugares, relacionar-se com pessoas e consumir bens inacessíveis à maioria dos mortais comuns. Quanto mais exclusiva for uma experiência, mais prazer e felicidade traria.

E, dentro do conceito de “prosperidade” colocamos em geral pouco mais que sucesso no trabalho, na carreira ou nos negócios. Talvez cheguemos àquele refrão, tão ingênuo quanto apelativo: “Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”. Isso seria tudo, ou o indispensável? Certamente, este não é o caminho e o conteúdo da felicidade próprios dos cristãos. Onde ficam a qualidade de vida, a vida e a convivência plenas de sentido?

A Organização das Nações Unidas estabelece o primeiro dia do ano como Dia da Fraternidade Universal, ou da paz entre os povos, nações, etnias e religiões. A comunidade católica também é convidada a entrar nesse mutirão. Por isso, embora celebremos o 1º dia do ano como festa de Santa Maria, Mãe de Deus, o Papa sempre nos brinda com uma carta que nos convida ao engajamento pela paz e pela fraternidade universal.

Em 2025, no espírito do Ano Santo, o Papa Francisco nos convida a arregaçar as mangas e enfrentar as situações de injustiça e desigualdade que ferem os pobres e a terra, sem esquecer das estruturas que a mantêm e reproduzem. E sublinha que “os bens da terra não se destinam apenas a alguns privilegiados, mas a todos”. Precisamos abrir os ouvidos ao “desesperado grito de ajuda que se eleva de muitas partes da terra”.

Na referida mensagem, o Papa pede que nos unamos às vozes que denunciam “tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo’, que se enraízam na cultura e contam com uma cumplicidade generalizada. Por isso, com São João Paulo II, as denomina “estruturas de pecado”. A paz que tanto desejamos não vem como milagre, mas depende de nós, da justiça nas relações interpessoais, sociais e internacionais.

Para concluir, faço minhas as palavras do Papa: “Dirijo os meus votos de paz a cada mulher e a cada homem, especialmente àqueles que se sentem prostrados pela sua condição existencial, condenados pelos seus próprios erros, esmagados pelo julgamento dos outros, e já não veem qualquer perspectiva para a sua própria vida. A todos vocês, esperança e paz, porque este é um Ano de Graça, que vem do Redentor”.

+ Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul

Manifestação do Senhor

SIGAMOS A ESTRELA

Estamos muito habituados à história dos reis magos. Por outro lado, hoje dificilmente temos tempo para parar e contemplar lentamente as estrelas. Provavelmente não é apenas uma questão de tempo. Pertencemos a uma época em que é mais fácil ver a escuridão da noite do que os pontos luminosos que brilham no meio de qualquer escuridão.

No entanto, não deixa de ser comovedor pensar naquele escritor cristão que, ao escrever a história dos reis magos, os imaginou no meio da noite, seguindo a pequena luz de uma estrela. A narrativa respira a convicção profunda dos primeiros crentes após a ressurreição. Em Jesus cumpriram-se as palavras do profeta Isaías: «O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz” (Isaías 9,1). Viviam numa terra de sombras, e uma luz brilhou diante dos seus olhos.

Seria ingênuo pensar que vivemos uma hora particularmente escura, trágica e angustiante. Não será precisamente esta escuridão, frustração e desamparo que captamos nestes momentos um dos traços que acompanham quase sempre o percurso do ser humano ao longo dos séculos?

Basta abrir as páginas da história. Sem dúvida encontramos momentos de luz em que se anunciam grandes libertações, se vislumbram mundos novos, abrem-se horizontes mais humanos. E então o que vem a seguir? Revoluções que criam novas escravidões, conquistas que provocam novos problemas, ideais que terminam em meias soluções, nobres lutas que terminam em pactos medíocres. De novo a escuridão.

Não é estranho que nos digam que ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração. Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos os fracassos e frustrações, o ser humano volta a recompor-se, volta a esperar, volta a pôr-se em marcha em direção a algo. Há no ser humano algo que o chama uma e outra vez à vida e à esperança. Há sempre uma estrela que volta a brilhar.

Para os crentes, essa estrela conduz sempre a Jesus. O cristão não acredita em nenhum messianismo. E é por isso que também não cai em nenhum desencanto. O mundo não é um caso perdido. Não está em completa escuridão. O mundo está orientado para a sua salvação. Deus será um dia o fim do exílio e das trevas. Luz total. Hoje só o vemos numa humilde estrela que nos guia até Belém.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Quem segue os passos de Jesus chegará a conhecê-lo

Somente quem segue os passos de Jesus chegará a conhecê-lo | 582 | 04.01.2025 | João 1,35-42

Vendo Jesus caminhando nos arredores de Betânia, João chamou a atenção dos próprios discípulos: “É dele que eu falei. Eis o Cordeiro de Deus!” João não faz uma longa e completa apresentação de Jesus, nem diz que ele é o Messias, o Rei de Israel, o Filho de Deus ou o Senhor. Apresenta-o como “Cordeiro”, aquele com o qual foram marcadas as portas das casas dos hebreus na noite do êxodo. Para ele, o Messias esperado é mais amigo que juiz, mais irmão que acusador, mais companheiro que chefe.

Ouvindo João, dois dos discípulos que o acompanhavam deixam-no e se põem a caminho, seguindo os passos de Jesus. Aproximam-se dele sem dizer nada. Entram no caminho de Jesus acatando a indicação do antigo mestre e dão por encerradas as lições dele. Não terá sido fácil deixar um mestre já conhecido e sua pregação clara e interpeladora para seguir um jovem até então desconhecido, inclusive suspeito, como todos os líderes galileus.

Percebendo que André e o outro discípulo anônimo seguiam-no já há algum tempo, Jesus volta-se a eles e pergunta o que procuram. Não os interroga sobre o que pensam dele, mas sobre os interesses e expectativas que os movem. A resposta dos dois discípulos é curta e objetiva: Desejam passar ao seu campo de influência, aprender a partir da convivência, participar da sua vida e missão. Jesus não responde; em vez disso, os convida a ir e ver, a descobrir como a Palavra de Deus se torna carne. E eles vão, começam a viver com Jesus, para sempre membros do seu corpo.

Impressionados com aquilo que viram e experimentaram, os novos discípulos espalham a notícia. André vai ao encontro do seu irmão Pedro, que como ele, tinha vindo de Betsaida para escutar e seguir João Batista, e anuncia-lhe a boa notícia: “Encontramos o Cristo!” E o leva a Jesus, que dirige um olhar amoroso e profundo, mesmo que Pedro permaneça rígido como uma pedra. Pedro havia rompido com o status quo e esperava o Messias, mas terá que mudar sua expectativa de um Messias guerreiro e assimilar a imagem de um Messias Cordeiro. Será um processo difícil e exigente, que levará mais de três anos.

 

Meditação:

§ Releia o texto, acompanhando a cena: João e seus discípulos; a apresentação de Jesus por João; a despedida e o seguimento do novo mestre; a pergunta e a resposta de Jesus...

§ Uma breve experiência na companhia de Jesus mudou a vida de André e seu companheiro, e eles anunciam a descoberta

§ Deixe Jesus olhar você de frente e questionar o que você está procurando nessa fase da sua vida, procure responder a ele

§ O que lhe parece a reação passiva e silenciosa de Pedro? E a palavra que Jesus dirige a ele?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Jesus é o Cordeiro que tira o pecado do mundo

Jesus é o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo | 581 | 03.01.2025 | João 1,29-34

Na cena de ontem, João dizia que não era Elias, nem o Profeta, nem o Messias, mas alguém enviado a preparar o caminho para a vinda do Messias, diante do qual reconhecia sua própria pequenez e transitoriedade (cf. Jo 1,19-28). Na cena de hoje, vendo Jesus que passa, João, declara: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo.” E os papeis se invertem: quem era discípulo passa a ser mestre; quem estava atrás, passa à frente.

Esta imagem de Jesus Cristo como Cordeiro de Deus adquiriu um lugar importante na tradição cristã, e é recordada em cada celebração eucarística. No livro do Apocalipse, a imagem do Cordeiro é aplicada a Jesus, e aparece frequentemente. Ele é o Cordeiro ferido, ferido, mas vitorioso e glorioso. Quase que espontaneamente, nesta imagem vemos a mansidão e a docilidade.

João nos apresenta Jesus como o Cordeiro pascal da tradição judaica, o sinal de comunhão do povo na memória, no sonho e na luta pela liberdade. Com ele, o povo hebreu celebrava a história e a utopia libertária, que, com o passar do tempo, acabou sendo ligada de modo quase exclusivo a uma etnia, uma nação e uma cultura. Ultimamente, com a privatização da experiência religiosa, a imagem do cordeiro acabou também refém de uma espiritualidade desencarnada.

Para João, Jesus é o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Este ‘pecado do mundo’ se condensa na recusa do projeto de Deus e na submissão aos sistemas fechados nos interesses privados e às violências e mentiras que sua manutenção exige. Somente o dom Espírito pode fazer do ser humano uma realidade nova, renascida e capaz de amar e dar a vida, como o próprio Jesus.

O Espírito de Deus desce e resposa sobre Jesus, e ele começa sua missão indo ao encontro das ‘ovelhas perdidas’ do povo de Israel. Mas abre as portas do Reino de Deus a todas as pessoas, classes, povos, etnias e crenças. O mundo não está dividido em “pessoas de bem” e pessoas indesejaveis. Os últimos são os primeiros.

 

Meditação:

§ Releia o texto lentamente, detendo-se em cada palavra e em cada gesto, interagindo com os personagens

§ Observe com atenção o impacto que esta apresentação de Jesus tem sobre os discípulos de João

§ Que ressonâncias a imagem do cordeiro de Deus, ferido e de pé, tem para você e para as comunidades cristãs de hoje?

§ Qual a imagem ou a metáfora mais adequada e fiel ao Evangelho para apresentar Jesus aos homens e mulheres de hoje?

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

João é a voz que pede que os caminhos do Senhor sejam aplainados

João é a voz que pede que os caminhos do Senhor sejam aplainados | 580 | 02.01.2025 | João 1,19-28

Estamos no ciclo litúrgico do Natal, mas hoje somos convidados a meditar uma cena que envolve Jesus já adulto (embora, logo mais, na festa da epifania, voltaremos a uma cena de Jesus recém-nascido). A cena de hoje envolve a pessoa de João Batista, precursor do Reino de Deus, profeta e testemunha de Jesus.

João desenvolve sua missão profética num tempo de múltiplas e duras opressões, mas também de intensa expectativa em relação ao surgimento de uma novidade benéfica para os oprimidos. Ele se afastou do templo, que era o centro religioso e político daquilo que restava de Israel, e escolheu o deserto como lugar para viver, discernir o querer de Deus e orientar o povo.

João batizava, e o batismo era um rito suspeito. Batizar e perdoar os pecados significava contestar a autoridade do templo e dos sacerdotes, roubar os “clientes” que os sustentavam com suas ofertas. Ao mesmo tempo, sinalizava uma mudança de senhorio, de lealdade ou de submissão. Algumas tradições ligavam essa mudança com o aparecimento do Messias enviado de Deus, também chamado Profeta, às vezes identificado com o retorno de Elias.

Inquietos com a pregação e o batismo de João, os homens que controlam e dirigem o templo enviam um grupo de fariseus para se informar com detalhes sobre as ações de João. Diante deles, João assume sua identidade de testemunha e precursor: ele sabe que não é o esperado, que o Messias está vindo logo depois dele, e já está presente, e que sua missão é ser voz que grita pedindo que os líderes religiosos não dificultem os caminhos do povo.

João não se coloca no centro, nem acima de ninguém. Ele prepara as pessoas não para serem seus discípulos, mas para se tornarem discípulos de Jesus. João diz que ninguém desamarra as sandálias de Jesus. Quando morria um membro da família casado e sem filhos, um irmão deveria casar com a viúva e dar-lhe descendência. Se não assumisse esse papel substitutivo, alguém desamarrava publicamente suas sandálias. João não faz isso, pois Jesus cumpre sua missão.

 

Meditação:

§ Releia o texto lentamente, detendo-se em cada palavra e em cada gesto, interagindo com os personagens

§ Note quem são os enviados, quem os envia, e quais são as perguntas que eles fazem a João

§ Observe a resposta de João, assim como as imagens que ele usa para falar de si mesmo e sua missão, e para falar de Jesus

§ Será que algumas lideranças cristãs não estão caindo na tentação de aparecer mais do que Jesus, que dizem anunciar?

§ Quais seriam hoje as palavras e gestos mais eloquentes para falar de Jesus e da nossa condição de cristãos?

Dia Mundial da Paz (04)

A meta da paz

Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próximo a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando “a verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão” (Sal 85,11). Quando me despojo da arma do crédito e devolvo o caminho da esperança a uma irmã ou a um irmão, contribuo para a restauração da justiça de Deus nesta terra e caminhamos juntos para a meta da paz. Como dizia São João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra.

Que 2025 seja um ano em que a paz cresça! Aquela paz verdadeira e duradoura, que não se detém nas querelas dos contratos ou nas mesas dos compromissos humanos. Procuremos a verdadeira paz, que é dada por Deus a um coração desarmado: um coração que não se esforça por calcular o que é meu e o que é teu; um coração que dissolve o egoísmo para se dispor a ir ao encontro dos outros; um coração que não hesita em reconhecer-se devedor de Deus e que, por isso, está pronto para perdoar as dívidas que oprimem o próximo; um coração que supera o desânimo em relação ao futuro com a esperança de que cada pessoa é um bem para este mundo.

Desarmar o coração é um gesto que compromete a todos, do primeiro ao último, do pequeno ao grande, do rico ao pobre. Por vezes, é suficiente algo simples como um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito. Com estes pequenos-grandes gestos, aproximamo-nos da meta da paz, e lá chegaremos mais depressa quanto mais, ao longo do caminho, ao lado dos nossos irmãos e irmãs reencontrados, descobrirmos que já mudámos em relação ao nosso ponto de partida. Com efeito, a paz não vem apenas com o fim da guerra, mas com o início de um mundo novo, um mundo no qual nos descobrimos diferentes, mais unidos e mais irmãos do que poderíamos imaginar.

Concede-nos, Senhor, a tua paz! Esta é a oração que elevo a Deus ao dirigir as minhas saudações de Ano Novo aos Chefes de Estado e de Governo, aos Chefes das Organizações Internacionais, aos líderes das diferentes religiões e a todas as pessoas de boa vontade.

Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só tu podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.

Vaticano, 8 de dezembro de 2024.

FRANCISCO

Santa Maria, Mãe de Deus

Para que haja paz verdadeira e duradoura

É muito expressiva a bênção com a qual iniciamos o Ano Novo: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar a sua face sobre ti, e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz!” Proteção, compaixão e paz que vêm de Deus. Compaixão, proximidade e paz em todas as nossas relações.

Dispensemos os costumes pouco cristãos nos ditaram. A paz e o desenvolvimento humano e social não nos veem da roupa branca, do espocar do espumante, do número de pipocas ou uvas que comemos, da lentilha ou cabeça de porco servidos no jantar. Eles não são capazes de fecundar de paz o ano que se inicia.

Outras são as fontes da paz e da boa convivência. Com o povo hebreu, alimentamos a esperança de que, no melhor dos mundos que sonhamos e que é possível, a paz e a justiça se abraçam e se beijam; descem do céu e, ao mesmo tempo, brotam da terra (cf. Sl 85,11-12). E isso acontece na medida em que as espadas são transformadas em arados e as lanças são refundidas em foices; na medida em ninguém mais se exercita para o confronto, e todos caminhamos à luz do Senhor (cf. Is 2,1-5).

Esta luz do Senhor, que ainda brilha no presépio, na Palavra do bom Deus que se faz carne na fragilidade de um bebê, pede e suscita em nós a ternura e a compaixão em cujo ventre a paz é engendrada lentamente. Como Santa Maria, Mãe de Deus, cuja solenidade celebramos hoje, precisamos aprender a contemplar e meditar interiormente os sutis sinais e ensaios de paz que pessoas e organizações iluminadas pelo Espírito semeiam teimosamente.

Como os pastores, testemunhas da glória de Deus que brilha nas alturas e da paz que germina entre os homens e mulheres de boa vontade, precisamos partilhar aquilo que sonhamos e experienciamos e glorificar a Deus por tudo o que temos visto e ouvido. Quem peregrina na esperança é agraciado com um olhar penetrante, capaz de ver aquilo que está pedindo para nascer, e braços generosos para preparar e acolher este nascimento.

Por Jesus, Deus nosso Pai, nos presenteia com o Espírito Santo. Nele e por ele somos libertados da escravidão que o medo da morte e do futuro, e a falsa necessidade de competir, nos impõem desde o ventre materno. Por pura graça, e sem méritos, somos adotados como filhos e filhas, constituídos como irmãos e irmãs, herdeiros da divina promessa de novos céus e nova terra, nas quais a justiça e a paz floresçam e frutifiquem.

Na reflexão que escreve para o ano novo, o Papa Francisco nos propõe a ousadia de criar as condições para que o perdão fecunde todas as nossas relações, projetos e instituições. “Perdoai-nos as nossas ofensas, e dai-nos a vossa paz”, é o título da sua reflexão.

O Papa começa dizendo enfaticamente que “cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade”. E precisamos tomar consciência de que “alguns atos esporádicos de filantropia não serão suficientes”, que, para que possa haver uma paz duradoura “são necessárias transformações culturais e estruturais”. 

Partindo do princípio de que, diante de Deus e diante da humanidade, todos somos, de alguma forma, devedores e não credores, o Papa não se cansa de repetir que “a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar indiscriminadamente os recursos humanos e naturais dos países mais pobres para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados”.

Acrescenta ainda que “várias populações, já sobrecarregadas pela dívida internacional, são obrigadas a suportar também o peso da dívida ecológica dos países mais desenvolvidos. A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda, da lógica de exploração”. E lança um apelo à comunidade internacional, um apelo à solidariedade e à justiça.

Que a comunidade internacional “atue no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo”.  E vai mais além, pedindo que os países usem “uma percentagem fixa do dinheiro gasto em armamento para a criação de um fundo mundial que elimine definitivamente a fome e facilite a realização de atividades educativas nos países mais pobres que promovam o desenvolvimento sustentável, lutando contra as alterações climáticas”

Não nos apressemos nem nos defendamos colando no Papa Francisco o rótulo de comunista. Ele age e fala no Espírito que guiou Jesus em sua vida e sua missão. O Espírito concede aos cristãos o dom da inteligência lúcida e perspicaz, e, por ela, sabemos que a paz não depende apenas da fé interior e das práticas de piedade. Ela precisa passar pela justiça nas relações sociais, internacionais e ambientais, inclusive mediante uma concreta conversão ecológica, uma mudança dos nossos hábitos de produção e consumo.

Façamos nossa a oração do Papa, ao concluir sua mensagem: Concede-nos, Senhor, a tua paz! Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só u podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres. Amém!”