Para que haja paz verdadeira e duradoura
É muito expressiva a bênção com a
qual iniciamos o Ano Novo: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça
brilhar a sua face sobre ti, e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu
rosto e te dê a paz!” Proteção, compaixão e paz que vêm de Deus. Compaixão,
proximidade e paz em todas as nossas relações.
Dispensemos os costumes pouco
cristãos nos ditaram. A paz e o desenvolvimento humano e social não nos veem da
roupa branca, do espocar do espumante, do número de pipocas ou uvas que
comemos, da lentilha ou cabeça de porco servidos no jantar. Eles não são
capazes de fecundar de paz o ano que se inicia.
Outras são as fontes da paz e da boa
convivência. Com o povo hebreu, alimentamos a esperança de que, no melhor dos
mundos que sonhamos e que é possível, a paz e a justiça se abraçam e se beijam;
descem do céu e, ao mesmo tempo, brotam da terra (cf. Sl 85,11-12). E isso
acontece na medida em que as espadas são transformadas em arados e as lanças são
refundidas em foices; na medida em ninguém mais se exercita para o confronto, e
todos caminhamos à luz do Senhor (cf. Is 2,1-5).
Esta luz do Senhor, que ainda brilha
no presépio, na Palavra do bom Deus que se faz carne na fragilidade de um bebê,
pede e suscita em nós a ternura e a compaixão em cujo ventre a paz é engendrada
lentamente. Como Santa Maria, Mãe de Deus, cuja solenidade celebramos hoje,
precisamos aprender a contemplar e meditar interiormente os sutis sinais e
ensaios de paz que pessoas e organizações iluminadas pelo Espírito semeiam
teimosamente.
Como os pastores, testemunhas da
glória de Deus que brilha nas alturas e da paz que germina entre os homens e
mulheres de boa vontade, precisamos partilhar aquilo que sonhamos e
experienciamos e glorificar a Deus por tudo o que temos visto e ouvido. Quem
peregrina na esperança é agraciado com um olhar penetrante, capaz de ver aquilo
que está pedindo para nascer, e braços generosos para preparar e acolher este
nascimento.
Por Jesus, Deus nosso Pai, nos
presenteia com o Espírito Santo. Nele e por ele somos libertados da escravidão
que o medo da morte e do futuro, e a falsa necessidade de competir, nos impõem
desde o ventre materno. Por pura graça, e sem méritos, somos adotados como
filhos e filhas, constituídos como irmãos e irmãs, herdeiros da divina promessa
de novos céus e nova terra, nas quais a justiça e a paz floresçam e
frutifiquem.
Na reflexão que escreve para o ano
novo, o Papa Francisco nos propõe a ousadia de criar as condições para que o
perdão fecunde todas as nossas relações, projetos e instituições. “Perdoai-nos
as nossas ofensas, e dai-nos a vossa paz”, é o título da sua reflexão.
O Papa começa dizendo enfaticamente
que “cada um de nós deve sentir-se, de alguma
forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a
começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que
assolam a humanidade”. E precisamos tomar consciência de que “alguns atos
esporádicos de filantropia não serão suficientes”, que, para que possa haver
uma paz duradoura “são necessárias transformações culturais e estruturais”.
Partindo do princípio de que, diante de Deus e
diante da humanidade, todos somos, de alguma forma, devedores e não credores, o
Papa não se cansa de repetir que “a dívida externa se tornou um instrumento de
controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas
dos países mais ricos não hesitam em explorar indiscriminadamente os recursos
humanos e naturais dos países mais pobres para satisfazer as necessidades dos
seus próprios mercados”.
Acrescenta ainda que “várias populações, já sobrecarregadas
pela dívida internacional, são obrigadas a suportar também o peso da dívida
ecológica dos países mais desenvolvidos. A dívida ecológica e a dívida externa
são dois lados da mesma moeda, da lógica de exploração”. E lança um apelo à
comunidade internacional, um apelo à solidariedade e à justiça.
Que a comunidade internacional “atue no sentido
de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica
entre o Norte e o Sul do mundo”. E vai
mais além, pedindo que os países usem “uma percentagem fixa do dinheiro gasto
em armamento para a criação de um fundo mundial que elimine definitivamente a
fome e facilite a realização de atividades educativas nos países mais pobres
que promovam o desenvolvimento sustentável, lutando contra as alterações
climáticas”
Não nos apressemos nem nos defendamos colando no
Papa Francisco o rótulo de comunista. Ele age e fala no Espírito que guiou
Jesus em sua vida e sua missão. O Espírito concede aos cristãos o dom da
inteligência lúcida e perspicaz, e, por ela, sabemos que a paz não depende
apenas da fé interior e das práticas de piedade. Ela precisa passar pela
justiça nas relações sociais, internacionais e ambientais, inclusive mediante
uma concreta conversão ecológica, uma mudança dos nossos hábitos de produção e
consumo.
Façamos nossa a oração do Papa, ao concluir sua mensagem: “Concede-nos, Senhor, a tua paz!
Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só u
podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que,
com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que
confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos
ao grito dos mais pobres. Amém!”
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