quinta-feira, 7 de junho de 2012

10° Domingo do Tempo Comum


Pertence à família de Jesus quem faz a vontade de Deus.
(Gen 3,9-15; Sl 129/130; 2Cor 4,13-5,1; Mc 3,20-35)

Depois de quase três meses marcados por liturgias muito especiais, dinamizadas pelo espírito da quaresma e da páscoa, voltamos ao tempo comum, ao belo e exigente desafio da vida cotidiana. E a Igreja propõe que retomemos a escuta do Evangelho de Marcos mais ou menos no ponto em que o deixamos no 7° domingo comum (19 de fevereiro). Abramos a mente e o coração ao ensinamento de Jesus, mesmo que inicialmente nos choque e escandalize. Jesus não tem prazer em colocar pedras na estrada do nosso amadurecimento na fé, mas quer ajudar a perceber as lutas que este percurso exige e as amarras que precisamos desfazer, inclusive aquelas inconscientes ou que assumem a aparência de piedade. O caminho da libertação está longe de ser um passeio de fim-de-semana, e pede que tenhamos a coragem de repensar criticamente a própria imagem de família que elaboramos.
“Então comeste da árvore, de cujo fruto te proibi de comer?”
A narrativa do livro do Gênesis e o Salmo 129(130) que antecedem e preparam a escuta do evangelho podem confundir ou desviar nossa atenção do núcleo da Boa Nova proclamada neste domingo. Efetivamente, o capítulo 3 do livro do Gênesis é um dos mais teologizados do primeiro testamento, e é muito difícil ver nele outra coisa senão o mito do pecado original e originante de todos os demais pecados. E, com ele, a imagem de um Deus inimigo da nossa liberdade, irado e castigador.
Por sua vez, os versos do Salmo 129, recitados como meditação, em que pese o tom agradecido do refrão e a convicção de que em Deus encontramos misericórdia e perdão, enfatiza o profundo pesar e o sentimento de culpa que marca nossa condição humana. Juntos, estes dois textos da verdadeira Palavra de Deus correm o risco de focalizar nossa atenção nos pecados que Deus perdoa e no pecado imperdoável ao qual Jesus se refere de passagem no evangelho de hoje.
“Ele tem um espírito impuro!”
Mesmo se partirmos da leitura do texto do Evangelho, o atual inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo, acompanhadas de um indisfarçável desejo de amedrontar e dominar, podem nos levar a pensar que o núcleo temático seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na narração de Marcos é a radicalização e a explicitação do conflito entre a prática libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites religiosas, agarradas à defesa do seu poder de domínio.
Curando um paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e expulsando o expírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam, Jesus havia desmascarado a escravidão mantida pela ideologia do templo. Vendo que uma grande multidão aderia a Jesus, os escribas contra-atacam e tentam neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando-o com o protótipo dos inimigos do ser humano, o diabo.
Precisamos distinguir entre a realidade e a linguagem. A linguagem usada nessa passagem é apocalíptica, mas a realidade é um conflito político e social. Como os escribas e doutores da lei se apresentam como representantes de Deus, vêem um espírito diabólico em quem os desmascara. Jesus entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como a acentuação simbólica das experiências negativas da sociedade judaica. Jesus se defende atacando com as próprias armas dos adversários!
“Quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca será perdoado!”
Este trecho do Evangelho mostra Jesus cara-a-cara com seus adversários mais renhidos, numa luta de mitos, ou melhor, num confronto de interpretações sobre os dramas e aspirações humanas: Jesus e os pobres libertados interpretam sua ação como obra libertadora e regeneradora de Deus; os escribas e doutores da lei vêm nela a ruína da ordem estabelcida e o espírito diabólico. Não é por menos: com seu perdão indiscriminado Jesus cancelava os débitos do povo e, com isso, diminuía os lucros do templo.
É interessante perceber que Jesus entra no jogo linguístico dos seus opositores para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão atolados. Ironicamente, Jesus diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino de satanás estaria dividido e fadado à ruína. Seguindo nessa linguagem, Jesus compara sua missão com a ação de um criminoso:  um ladrão que queira roubar a casa de uma pessoa forte deve ser capaz de amarrá-la, deve ser mais poderoso que ela. Jesus é mais forte que a ideologia do templo!
Mas o clímax da disputa vem a seguir. Jesus afirma que os verdadeiros pecadores, aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios escribas e doutores da lei, o grupo que controla e dificulta o perdão aos pobres e doentes, a elite que desqualifica a ação divinamente libertadora de Jesus acusando-a de diabólica. Esse grupo é réu de um pecado eterno, está coberto de impureza e envolvido numa cegueira que não permite que veja um palmo à frente do nariz.
“Quando seus familiares souberam disso, vieram para detê-lo...”
O confronto que acabamos de comentar está no miolo da narrativa e vem inserido num quadro de discussão sobre os limites e possibilidades das relações familiares. Os familiares de Jesus haviam tomado conhecimento daquilo que ele fazia e dizia, sentiam-se importunados pela multidão que invadia sua casa até nas sagradas refeições e começaram a temer pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida impressão de que Jesus enloqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo.
O movimento dos familiares de Jesus é interrompido pela discussão com os escribas, mas é retomada em seguida. A mãe e os irmãos sequer ousam ultrapassar o círculo dos discípulos e chegar perto de Jesus: mandam chamá-lo. Eles parecem compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer Jesus interromper ou desistir da sua missão. Mas o distanciamento é mútuo: a família não aceita a vocação de Jesus, e ele não a reconhece como sua família. A ruptura parece radical e total.
Aqui Jesus dá mais um passo na superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo. A família patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de sangue, era um dos eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação. Ela determinava a identidade e a personalidade, controlava a vocação e facilitava a socialização. Mas era também a célula de reprodução de uma sociedade excludente e intolerante. Por isso, precisava ser criticada e superada.
“Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.”
Jesus não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos de relacionamento. Ao culto no templo ele antepõe a solidariedade com os que sofrem. Coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal. Substitui a estreiteza dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana compartilhada. Propõe uma nova família, caracterizada pela prática da vontade de Deus – que é sempre uma vontade de vida abundante para todos! – e não pela submissão a um chefe qualquer.
A célula humana fundamental, aquela que traça a linha que define nossa identidade, desenvolve nossa vocação e viabiliza nossa sociealização, é a comunidade dos discípulos e discípulas, uma comunidade de iguais ordenada à construção do Reino de Deus, ou seja, ao resgate do bem viver e conviver aberto a todas as criaturas. Do ponto de vista do Evangelho de Jesus, todas as demais instituições e autoridades são transitórias e relativas. Só Deus e o seu Reino são critérios absolutos.
Isso nos leva a recordar o Encontro Mundial das Famílias, realizado em Milão (Itália), no último fim-de-semana. Uma das mensagens mais repetidas foi que o mundo é uma grande família e a família é um pequeno mundo. Sim, mas com todas as contradições inerentes ao mundo. A família é, muitas vezes, o ecossistema no qual as células da indeferença e da exclusão encontram ambiente favorável para se multiplicar. Do ponto de vista do Evangelho, a família não é tudo. Ela deve se rever e refazer em Deus.
“Minha alma aguarda o Senhor mais que as sentinelas a aurora.”
A ti, Jesus de Nazaré, irmão de todos os homens e mulheres que se regeneram à luz do Reino, dirigimos nosso olhar e nossa prece. Fortalece nossa vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com os laços que nos amarram a nós mesmos/as e aos sistemas que oprimem. Amplia o círculo da nossa comunhão, para que inclua todos/as, começando pelas vítimas da seca de nordeste, passando pelos que pagam o preço das crises econômicas da Europa e pelos povos ribeirinhos atingidos pela cheia do rio Amazonas, chegando a todas as criaturas ameaçadas por um código florestal criminoso e anacrônico. E faz com que nossas comunidades sejam família de homens e mulheres iguais. Assin seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

terça-feira, 5 de junho de 2012

Corpus Christi


Corpus Christi:  oportunidade para repensar o mistério da Eucaristia

Na próxima quinta-feira, dia 7 de junho, a Igreja Católica celebrará a solenidade de Corpus Christi. Creio que tal celebração deveria ser revertida num momento para se repensar com toda seriedade possível o mistério da Eucaristia. Deveríamos sair das pompas, ostentações e luxo e nos voltarmos para o silêncio contemplativo e reflexivo.
O primeiro momento deste processo reflexivo deveria ser um repensar a própria solenidade de Corpus Christi. Sabemos que esta festa surgiu no auge de uma violenta crise pela qual passava a Igreja Católica. A liturgia havia se sofisticado e se distanciado do povo. Era celebrada em latim, língua não mais falada pelas comunidades. Além de serem celebradas numa língua incompreensível, as liturgias eram pomposas, luxuosas, uma verdadeira afronta aos pobres. Tinham se tornado uma coisa para o clero, pois o povo fora reduzido a mudo espectador. Neste contexto corria solta a simonia: a celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia, dependia de muito dinheiro. Assim, por exemplo, o preço da missa dependia do modo como o padre erguia a hóstia consagrada durante a anamnesis, chamada de “consagração”, e considerada o momento mais importante da missa.  Quanto mais alta a elevação, mais cara era a missa.
Por essa e outras razões a liturgia ficou reduzida a mero devocionalismo. As pessoas não mais participavam da Eucaristia e a tinham apenas como simples devoção. Iam às igrejas para adorar o Santíssimo Sacramento e não para participar da Ceia do Senhor. A situação ficou tão grave que a própria hierarquia determinou que se comungasse pelo menos uma vez por ano, durante o período da Páscoa. Foi neste contexto que o papa Urbano IV, em 1264, fixou a solenidade de Corpus Christi: uma festa para adorar pública e pomposamente a hóstia consagrada. Portanto, a festa de Corpus Christi, como veremos a seguir, é um desvirtuamento radical do significado litúrgico do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor. Ou, se preferirmos, uma traição do pedido do Mestre: “Tomai e comei, tomai e bebei”.
Considero a festa de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões. Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não tinha onde reclinar a cabeça.
Em segundo lugar porque o cerne da Eucaristia está não na adoração, mas na refeição, na comida, na ceia. Ou, se quisermos, o modo correto de adorar a Eucaristia é participar da ceia, é comer do pão e beber do cálice. De fato, Jesus não disse “tomem e adorem, mas tomem e comam, tomem e bebam”. A adoração eucarística surgiu por meio do costume de se levar um pedaço do pão eucarístico para os doentes impedidos de participar da celebração litúrgica dominical. E como se acreditava que aquele pedaço de pão era o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, enquanto ele não era levado e consumido pelo doente, era adorado como sacramento da real presença de Cristo no meio da comunidade cristã.
O hábito de consagrar hóstias apenas para trancá-las num “cofre dourado” e ser adorado pelas pessoas é um costume que nasce no contexto de crise antes mencionado, quando se havia perdido por completo a noção do mistério eucarístico. Portanto, é algo que destoa do significado da Eucaristia para a comunidade cristã. As normas para o culto à Eucaristia fora da missa, emanadas pelo próprio Vaticano, são muito claras a este respeito. Chegam inclusive a dizer que se deve evitar neste culto tudo aquilo que possa tirar da Eucaristia a sua natureza de alimento, de comida, de refeição. Por rigor de lógica as espécies eucarísticas, quando colocadas para a veneração dos fiéis, deveriam ser postas em pratos de comida e não em ostensórios luxuosos. Porém, as próprias autoridades eclesiásticas são as primeiras a não obedecer aquilo que escrevem para os outros.
Em consonância com o que acabou de ser dito, a festa de Corpus Christi deveria ser uma oportunidade para uma profunda catequese sobre o que é, de fato, a Eucaristia. Infelizmente a crise antes mencionada levou a se pensar na Eucaristia como o sacramento da “carne” do homem histórico Jesus de Nazaré. Assim a concepção comum presente na mente de bispos, padres e fiéis é que os termos “carne”, “corpo”, “sangue” se refiram exclusivamente ao corpo biológico de Jesus. A Eucaristia seria a transformação de algumas hóstias e de um pouco de vinho num amontoado de células e moléculas do corpo físico do Jesus histórico que viveu na Palestina há dois mil anos.
Porém, quando nos voltamos para os textos bíblicos não é essa a compreensão que temos. O termo “corpo” (em hebraico “basar” e em grego “soma”) não significa apenas o aspecto biológico, mas a pessoa inteira na sua condição de corporalidade. Trata-se da pessoa na sua totalidade revelada em sua forma visível e em comunicação com os outros. Jesus, segundo Marcos (14,22-24), o mais antigo dos evangelhos, ao dizer na última ceia “éstin tò somá mon” (“isto é o meu corpo”) e “éstin tò haîmá mon” (“isto é o meu sangue”), não está se referindo apenas ao seu corpo biológico, às células do seu corpo físico, mas à totalidade da sua pessoa de Filho de Deus encarnado. E quando convida os discípulos a comerem do seu “corpo” e a beberem do seu “sangue” Jesus não está pensando num ritual antropofágico ou canibal, mas num gesto de comunhão e de adesão plena à sua pessoa.  
O biblista italiano Settimio Cipriani, que estudou profundamente esta questão, afirma que as palavras de Jesus poderiam ser traduzidas da seguinte maneira: “O que estou fazendo (partindo o pão e distribuindo-o) significa a oferta da minha pessoa por vocês”. De fato, nas culturas antigas, especialmente na cultura judaica, o ato de comer e de comer juntos não tem apenas o significado biológico de ingerir substâncias para saciar a fome e manter-se vivo. Comer e comer juntos tem um significado simbólico, sacramental: significa que os comensais participam da mesma sorte, estão unidos pelo mesmo destino, estão em comunhão entre si. Assim sendo, a participação na Eucaristia, na Ceia do Senhor, é um gesto sacramental através do qual o cristão e a cristã manifestam a sua adesão total à pessoa de Jesus e se dispõem a participar da mesma sorte do Mestre. Portanto, reduzir a Eucaristia a um significado meramente biológico, a um pedaço da carne biológica de Cristo (como se tem feito em alguns casos de supostos milagres eucarísticos) é desvirtuá-la completamente do seu verdadeiro significado sacramental.
Isso pode ser confirmado pelo texto eucarístico do Evangelho de João (6,51-56). Mesmo não narrando a instituição da Eucaristia, João apresenta Jesus convidando seus ouvintes a comerem a sua carne e a beberem o seu sangue. Sabemos que na Bíblia o termo “carne” (em hebraico “basar” e em grego “sárx”) não significa apenas o elemento físico, biológico, mas a pessoa humana, na sua totalidade, existindo como ser frágil e mortal. É o ser humano total na sua condição de caducidade. Por sua vez o “sangue” (em hebraico “dam” e em grego “haîma”) não significa apenas o líquido vermelho que escorre nas veias do ser humano, mas a sua vida, o seu existir pleno. O convite de Jesus feito a seus ouvintes significa um convite a entrar em plena sintonia com a sua pessoa e o seu projeto de vida. Participar da Eucaristia é aderir ao mistério do Filho de Deus que “se fez carne” (Jo 1,14), ou seja, que abriu mão da sua condição divina para viver entre nós como “simples homem” (Fl 2,7-8). Participar da Eucaristia não é participar de um rito antropofágico, no qual se come um pedaço da carne biológica do Jesus histórico, mas comungar da sua fragilidade, da sua fraqueza, da sua encarnação. Se entendêssemos isso causaríamos uma verdadeira revolução no cristianismo e contribuiríamos para o advento de uma nova humanidade.
Por fim, a festa de Corpus Christi deveria ser um momento para se pensar numa solução definitiva para o problema daquelas milhares de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e que são privadas da celebração eucarística dominical, por falta de um ministro ordenado que a presida. Se a Eucaristia é o centro e o cerne da vida cristã, deixar uma comunidade sem celebração eucarística dominical é impedi-la de viver a sua verdadeira identidade. Soluções já existem como já tive oportunidade de mostrar, mas a hierarquia resiste e não quer adotá-las. Se a hierarquia não resolve, cabe às comunidades cristãs abandonadas encontrarem uma solução. E Tertuliano, um escritor cristão do final do II e início do III século, propôs uma solução muito simples. Mesmo reconhecendo que em circunstância normais cabe ao bispo e seu conselho presbiteral presidir a Eucaristia, Tertuliano afirmava: “Onde não há um colégio de ministros inseridos, tu, leigo, deves celebrar a Eucaristia e batizar; tu és, então, o teu próprio sacerdote, pois, onde dois ou três estão reunidos, aí está a Igreja, mesmo que os três sejam leigos”. 
José Lisboa Moreira de Oliveira

Solenidade de Corpus Christi

A Eucaristia nos chama à liberdade e à fraternidade.
(Ex 24,3-8; Sl 115/116; Hb 9,11-15;  Mc 14,12-16.22-26)
Quem é católico não duvida: a Eucaristia faz a Igreja e é um mistério que ocupa um lugar central na sua prática de fé e na sua espiritualidade. Mas nunca é demais lembrar também que quem faz a Eucaristia é a Igreja: é ela que, partindo do evento Jesus Cristo, definiu seu sentido teológico, estabeleceu regras e barreiras, colocou-a sob o controle dos ministros ordenados. Ao celebrarmos a festa popular do Corpus Christi não podemos esquecer que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, remete a Jesus Cristo, mediador da Aliança entre Deus e a Humanidade, horizonte no qual se realiza totalmente nossa vocação à liberdade e a um mundo sem exclusões. Portanto, nada de triunfalismos e espiritualismos.
“Este é o sangue da Aliança que o Senhor fez conosco.”
Depois de séculos de teologização e de um perigoso processo de distanciamento do Reino de Deus, é difícil libertar a Eucaristia da terrível noção de sacrifício da qual se tornou refém. Com o passar do tempo e com o desenvolvimento da ideologia sacrificial, a noção de Aliança, anterior e mais fundamental que a de Sacrifício, foi sendo diminuída e quase eliminada. Hoje nos parece quase impossível ver a bela pintura do sacramento da Eucaristia fora do pesado quadro do sacrifício.
Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Na tradição judaica, mesmo o sangue dos animais sacrificados espargido sobre o povo, como nos lembra hoje o livro do Deuteronômio, era uma espécie de sacramento da Aliança estabelecida entre Javé e o povo de Israel. O centro do rito não é o sacrifício de animais para aplacar uma suposta ira divina, mas a Aliança selada por um Deus que elege um grupo humano escravizado e o conduz pelos exigentes caminhos que levam à sonhada liberdade.
“Faremos tudo o que o Senhor nos disse.”
A Aliança compromete duas partes e as faz parceiras, mesmo quando seu peso histórico e sua relevância é desigual. E sempre tem em vista uma causa, um projeto. No caso das tribos de Israel, o objetivo da Aliança que compromete reciprocamente Deus e as tribos de Israel é a superação da escravidão e a perseverança num projeto relacional baseado na liberdade e na solidariedade. Evidentemente, o focus da Aliança não é o passado – mesmo quando o tem presente – mas o futuro.
Javé já demonstrara seu apreço e fidelidade às tribos de Israel escutando seus clamores, enviando Moisés como líder e conduzindo o povo através do deserto. Faltava apenas a explicitação dos termos da Aliança e o compromisso público e solene do povo às cláusulas essenciais que garantiriam a liberdade como base e dinamismo das relações interpessoais e institucionais. E o povo responde, em uníssono: “Faremos tudo o que o Senhor falou e eobedeceremos!” Esta era a parte do povo, é a nossa parte.
“Onde queres que façamos os preparativos para comer a páscoa?”
Damos por descontado que a última ceia de Jesus, base narrativa e simbólica sobre a qual se construirá a Eucaristia, foi uma celebração pascal no horizonte da tradição judaica, memória do êxodo e da Aliança que constituiu um povo. Como filha do judaísmo, a comunidade dos discípulos, Jesus à frente, teria seguido o costume judaico e teria repetido o memorial de um evento fundador, de uma aventura histórica e religiosa de caráter libertário e revolucionário. Mas sempre um evento passado.
Um olhar atento aos relatos do evangelista Marcos nos revelará que Jesus e seus discípulos não celebraram a páscoa conforme as prescrições do judaísmo. Em primeiro lugar, não aparece o cordeiro, símbolo absolutamente central na ceia pascal judaica, nem se diz que ele fora sacrificado no templo. E ao invés de descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve (nos versículos 17-21, omitidos na leitura oferecida pela Igreja) o clima de tristeza e apreensão frente às traições que se insinuavam.
É verdade que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de tomar o alimento e a bebida, proferir a oração de bênção e agradecimento e servi-los aos comensais. Mas ele introduz duas novidades que divergem das prescrições rituais: não faz serve o cordeiro (que, ao que parece, não está presente na ceia) e não relaciona o pão e o vinho com o evento do êxodo. Antes, vincula o gesto de repartir o pão e o vinho com sua história pessoal, com os passos que estava para dar.
“Não beberei mais do fruto da vinha até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus.”
Sabemos de cor as palavras e gestos que Jesus realizou durante sua ceia derradeira. Mas quero ressaltar que, repartindo o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e, passando o cálice de vinho, anuncia “este é o meu sangue da nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus não vincula a ceia pascal com Moisés e com o uma Aliança feita no passado, mas consigo mesmo e com uma Aliança nova. E resta ainda o surpreendente silêncio em relação ao indispensável cordeiro. Marcos insinua que este cordeiro é o próprio Jesus!
Há ainda três outros detalhes, talvez mais que simples detalhes. O primeiro é que a comunidade dos discípulos se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos. O segundo é a senha que Jesus dá para que os discípulos encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa: um homem carregando uma bilha de água. Ora, quem habitualmente carregava água eram as mulheres, o que pode estar acenando para uma comunidade na qual a presença de mulheres era determinante.
O terceiro detalhe ou indício me parece mais importante e fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de Jesus com os discípulos não termina em festa, mas em jejum! Jesus diz que não beberá mais vinho até que chegue o vinho novo do reino de Deus. Encontro aqui o vínculo indissociável e essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia presente e o advento do reino de Deus. Mais que memorial ligado ao passado, a Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do futuro, do Reino.
“Tomai, isto é o meu corpo!”
A liberdade efetiva não é memória de um passado glorioso, mas vocação, tarefa empenhativa que engendra o futuro. É Aliança nova e irreversível mediante a qual Deus avalisa nossos mais profundos anelos de liberdade e de vida plena. E disso que a Eucaristia é sacramento. Jesus liberta a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o que foi e, mediante sua ceia, nos engaja na construção daquilo que será. Mesmo que isso exija que renunciemos ao aparente gozo e às atrações dos velhos vinhos.
Este futuro que nos é dado como tarefa é sonho que passa pelo corpo e o habita, o corpo de Cristo e o corpo dos irmãos e irmãs de Jesus Cristo. Uma alma que despreza e submete os corpos não engendra novidades. Um corpo que não vê outra coisa que sua forma estética se torna estéril. Mas um corpo que tece e sustenta teias de comunhão, que se faz dom sem reservas e se arrisca nas lutas mais ousadas, torna-se eucarístico, cheio de graça e gerador de graça. Como foi E é o corpo de Jesus Cristo.
“Enquanto estavam comendo...”
A festa de hoje recorda este corpo de Cristo, o corpo de Deus. Lembra e afirma que Deus não se guarda, cioso de sua superioridade e nobreza, mas se dá como comida e bebida. E nos põe nas ruas e estradas, pedindo que não esqueçamos que a liberdade está na frente e no futuro, e não atrás, num passado idealizado. Pede que levemos a sério o fato de que a Ceia não é mera memória, mas também antecipação simbólica do Reino de Deus, que construiremos jejuando de mancomunações e saciedades.
Por mais nobre que seja o ostensório que protege o Pão e por mais belos que senjam os desenhos e ornamentos que enfeitam as ruas, é preciso lembrar também que a Eucaristia não é para ser adorada e incensada, mas para ser tomada como comida e bebida. O pão e o vinho transformados pelo Espírito são elo da nossa comunhão com Deus e das mil relações de comunhão com as criaturas de Deus. Eles estão aí para serem comidos e se tornarem corpo no nosso corpo, sangue no nosso sangue.
“Vou cumprir minhas promessas ao Senhor diante de todo o seu povo.”
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e Espírito feito carne, pão que se oferece como alimento e vinho que se doa como gozo: transforma nossa vida em Eucaristia e dá-nos uma insaciável fome de comunhão. Na festa de hoje, tanto no acolhedor ambiente dos nossos templos como no espaço aberto das ruas e avenidas, dá-nos um coração grande para amar e forte para lutar. Não permite que reduzamos tua ceia a uma simples memória e tranformemos o pão em amuleto. E não nos deixes cair na tentação de fugir da eucarístico compromisso de celebrar a ceia com os pés prontos caminhar e os olhos fixos no Reino que ainda está vindo. Assem seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Passos missionários na periferia de Manaus


“Tire as sandálias, pois este lugar é santo!”
“Passo a passo, pouco a pouco, o caminho se faz.” Nossa presença azul (somos conhecidas como Irmãs Azuis) no Amazonas segue experimentando realidades e fazendo experiência de um Deus que nos chama a cada dia, como aos apóstolos após a ressurreição, que lembramos no tempo forte que ainda pouco vivemos com tanta intensidade.
No  sábado, dia 19 de maio, conhecemos mais uma comunidade: São Francisco,  no Tabocal. Várias casa das lideranças estão abandonada por causa das áagus. É impressionante ver isso de perto. As pessoas nos dão exemplo de uma enorme serenidade ! Passividade? Ou convivência com as cheias, das quais muitos de nós não fazemos nem idéia?
A comunidade de São Francisco é muito viva. Um detalhe que só vimos nela: na chegada, fomos convidadas a deixar os calçados na porta. Claro que nem todos fazem isso, mas a grande maioria sim. Revela um sentido profundo de respeito pelo lugar sagrado. Para nós foi muito forte.
Sempre vamos de tênis, por causa dos morros e escadarias que temos que subir. Como nesta comunidade estas dificuldades pareciam ser menores, fomos de sandálias. Mas a subida foi muito íngreme. Para a Ir. Joaninha, deixar as sandálias na porta foi um convite ao pojamento, à inculturação, ao respeito pelo espaço sagrado, um convite à liberdade. Que coisa linda uma igrejinha no meio da floresta e com este sinal claro de respeito ao sagrado!
Esta comunidade  nos acolheu com carinho. Aliás todas as comunidades são muito acolhedoras! A Igrejinha fica bem no meio da mata, às margens do Rio Amazonas, o qual tem visitado e entrado em muitas casas dos irmãos ribeirinhos.
Ir. Joaninha "caminhando sobre as aguas"...
No dia 20 de maio fomos ao Ramal Serafim. Participamos do encontro de formação com os catequistas. Ramais são as comunidades que ficam na terra firme, às margem da rodovia que vai ao centro de Manaus. Gente pobre  que tem sede de Deus e se reúne todos os domingos . Uma vez ao mês têm a celebração Eucarística.
Com nossa presença nos círculos bíblicos e celebrações nas ruas, nas chamadas “comunidades da vila”, todas já escolheram seu santo padroeiro: São Sebastião, São João Batista, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro... Nas quartas ou segundas-feiras, uma vez por mês, tem celebração com padre ou diácono. Esta decisão de celebrar nas ruas e ou nas casas tem dado resultados.
Aproveitamos o material do Dia Internacional da Família (roteiro de celebração), disponível no site cic-castres, e celebramos com o grupo de jovens na família. Foi um momento muito lindo. Os jovens têm sede de Deus. Ainda antes de findar o mês de maio, visitamos a última comunidade do Beiradão: a comunidade de São Lázaro, que fica  bem dentro da mata, às margens do grande Rio Amazonas. Esta comunidade ainda não tem sua capelinha. Reunimo-noss na escola. O povo é sempre muito acolhedor e nos recebe com alegria.
No domingo de Pentecostes, participamos no meio de uma multidão.  Mais de 100.000 pessoas lotaram o sambódromo de Manaus. Foi uma experiência única. O povo tem muita fé. Dom Luiz, na sua simplicidade de pai e Pastor, se despediu do povo deixando, como sempre, suas recomendações“Amem muita a Igreja Católica. Vivam a unidade entre vocês, amem muito a Mãezinha do Céu, tenham orgulho de ser católico. Não deixem de celebrar Pentecostes!”  
Foram momentos de grande vibração. O povo sente um carinho enorme pelo seu pastor. E é plenamente correspondido. Todos os setores com suas fixas agradeciam a Dom Luiz pelo fecundo pastoreio como Arcebispo da Igreja de Manaus. A festa de Pentecostes  foi fechada com o show de Pe. Zezinho, unindo “silêncio e Palavra”.
Nem precisamos dizer que vocês estiveram presentes  conosco neste evento de nossa fé. Maior festa de nossa Igreja Católica, este momento foi precedido pela primeira vigília celebrada nas paróquias. Nós, Irmãs, preparamos e celebramos  com a equipe de liturgia. A celebração foi muito linda. Foi bom receber os dons do Espírito e se comprometer em vivenciá-los ao longo deste tempo até, o próximo pentecostes.
O rio Amazonas invade (ou visita?) a cidade.
Dia 31 de maio, dia da coração de Nossa Senhora, como é costume em várias regiões de nosso país. Aqui não foi diferente. O povo simples, com sua fé iluminada pela mãe de Deus e dos pobres, veio prestar sua homenagem a Maria. Os jovens surpreenderam: enfeitaram a Igreja com uma beleza sem par. Maria  foi muito bem coroada.
Concluindo este mês tão especial para nós, Irmãs Azuis, peçamos a Nossa Senhora Mãe dos pobres de vir ao nosso encontro nas decisões e  encaminhamentos,  neste tempo de preparação de nossos capítulos. Ela passará  à  frente e nos conduzirá nos caminhos de seu filho. Sigamos em comunhão com as mais de  trezentas  e cinquenta mil pessoas atingidas pelas cheias do estado do Amazonas.
Com carinho suas irmãs em missão no Amazonas, Edith e Joaninha.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (5)


A missão em terras equatoriais

Nas terras equatoriais, o barco é sempre indispensavel.
Continuamos realizando nossa visita aos coirmãos que vivem e trabalham na diocese de Palangka Raia. Na verdade, uma das comunidade à qual pertencem os coirmãos que vivem na sede da diocese tem sede em Sampit, cidade portuária situada às margens do rio do mesmo nome, a 4 horas (ou 230 km) de Palangka Raya. (A outra, está na região de Ampah, que conheceremos em seguida). Foi nessa região que a Congregação celebrou seu debut na missio ad gentes em sentido estrito, lá no longínquo 1926. Daqui os missionários provindos da Holanda, da Alemanha e, mais tarde e em menor número, da Polônia, se espalharam pelos territórios de Kalimantan e de Java.
Além do bispo Dom Aloísio Sutrisnaatmaka, vários outros coirmãos das Províncias de Kalimantan e de Java vivem e trabalham nessa região. Entre eles, dois estão diretamente a serviço da diocese e do bispo: Pe. Timóteo I Ketut Adi Hardana, da Província de Kalimantan, que nos acompanha como tradutor e motorista, trabalha como secretário geral da diocese; Pe. Andreas Tri Adi Kumiawan, membro da Província de Java, atua como ecônomo diocesano. Ambos também contribuem, juntamente como o Pe. Garinsingan, do qual falarei mais tarde, como professores na Escola Superior de Formação Cristã mantida pela diocese.
Igreja-matriz de Sampit
 
A poucos passos do centro diocesano de pastoral, a Província de Kalimantan tem uma pequena casa onde residem dois coirmãos: o Ir. Marceltus Mardarman Hasan, natural de Flores, que frequenta o curso superior de formação cristã e, mesmo tendo sido forçado a se tornar irmão por falta de capacidade intelectual, ainda sonha com a ordenação; o Pe. Robertus Belarminus Bethras Reksotomo, que, depois de ter atuado como pároco e conselheiro provincial, hoje se dedica com entusiasmo a um grande seringal que a Província cultiva na região, com a expectativa de um relevante retorno econômico num futuro próximo. O que me parece interessante é que esse coirmão, que já atuou também como missionário em Papua-Nova Guiné, pensa em desenvolver algo como uma pastoral da terra ou dos agricultores, numa perspectiva associativista e ecológica. Iniciativas como essa devem ser apoiadas e estimuladas, especialmente nessa região, onde são raridade.
Nossa visita se desenvolveu num ritmo pouco saudável. Depois de apenas um dia em Palangka Raya, partimos para a visita aos coirmãos que vivem e trabalham nas paróquias de Parenggean e Sampit. Em Parenggean, depois de 5 horas de viagem, parte da qual numa estrada absolutamente intransitável, encontramos nosso coirmão Pe. Aloisius Darmakusuma, que vive e trabalha sozinho nessa pequena cidade cercada de imensas plantações de babaçu. Como tantos, ele vem de família mussulmana, e sua mãe só se tornou cristã alguns anos após sua ordenação.
Como ser verdadeira imagem do Bom Bastor?
Depois de ouvir algo sobre sua vida e seu trabalho, o sentimento é concomitantemente de alegria e de compaixão: alegria por sua dedicação incansável às 32 comunidades dispersas que compõem a paróquia, que distam até 120 km da sede e exigem até 6 horas de viagem, por causa das péssimas estradas; pena e compaixão pelo desgaste físico e emocional que isso significa. Menos mal que ele conta com a presença e a colaboração de algumas religiosas e muitos leigos/as, como o presidente do Conselho de Pastoral, que esteve todo o tempo conosco. Este é um jovem descendente de chineses, cujo pai era confucionista e cuja mãe era evangélica...
Saímos de Parenggean às 17:00, fazendo de novo o trecho precário da estrada que havíamos percorrido, e viajamos em direção a Sampit, onde chegamos às 20:00. Lembro de passagem estávamps pouco abaixo da linha do equador – o que significa que o clima, a umidade e o calor, os rios e a terra arrenosa, a vegetação e os insetos – se assemelham àquilo que encontramos na conhecida Amazônia, particularmente na nossa missão de Carauari e Itamarati. Mas existem algumas diferenças: aqui a mata original já foi destruída há várias décadas pelas madeireiras; a região é bastante populosa; existem estradas surpreendentemente transitáveis.
Em Sampit nos esperava ansioso o Pe. Franciscus Salianus Hendysaputra. Este jovem e simpático coirmão trabalha aqui há menos de dois anos, ajudado por um coirmão da província de Java (Pe. Yosef Prasetya Tjoek) e, a partir da nossa chegada, por um diácono em estágio pastoral. Nasceu nas proximidades de Sampit, que hoje tem mais ou menos 60.000 habitantes, e sua família foi a primeira da vila a receber o batismo. Hoje Pe. Hendy anima uma paróquia com 27 comunidades e aproximadamente 4.500 católicos.
Estudantes da Escola Paroquial de Sampit
O Pe. Hendy recebeu como herança do coirmão Pe. Willibal Pfeuffer, missionário alemão que por aqui fez história e faleceu em dezembro último, uma paróquia bem organizada e com uma grande infra-estrutura. Além de uma ampla e confortável casa paroquial, a paróquia é proprietária de um ambulatório médico que atende mais de 60 pessoas por dia, de uma escola profissional de mecânica e marcenaria e de uma enorme e bela escola de ensino fundamental e secundário, inclusive com internato para os alunos que necessitam. É um sinal vivo do empreendedorismo de uma certa leva de missionários, assim como da antiga e cultivada “devoção a são marcos”. Tudo isso acabou passando às mãos das diocese e agora, com a morte do idealizador desse imenso projeto e com a diminuição das fontes exteriores, o desafio é como mantê-lo.
Fui a primeira pessoa a dormir no quarto ocupado durante décadas e deixado recentemente pelo falecido missionário. O pároco resistia até a entrar nele... De fato, tanto no quarto quanto no gabinete de trabalho, tudo está como ele deixou antes de ser hospitalizado em setembro passado. De todos os modos, dormi muito bem e espero que desta estadia eu possa levar um pouco da coragem e dedicação de um homem que, conservando os limites e ambiguidades que todos compartilhamos como pessoas e cristãos, deixou sua terra majoritariamente cristã e economicamente desenvolvida para se embrenhar neste mundão de maioria mussulmana, construir desde o alicerce a comunidade e as estruturas católicas e, finalmente, entregar a esta gente também seu último suspiro.
Itacir Brassiani msf

sábado, 2 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (4)


Esta é a quarta parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do primeiro capítulo do ensaio, que trata dos fundamentos bíblico-teológicos da mariologia.


1.3  Etapa joanina

Se o conjunto dos testemunhos de Mateus e de Lucas sobre Miriam de Nazaré, especialmente os extraídos dos Evangelhos da Infância, se caracteriza mais por sua densidade teológica e simbólica do quer por seu rigor histórico, o evangelho de João nos apresenta um perfil mariano ainda mais denso e teologicamente elaborado. Fruto de antiga tradição oral e de sucessivas redações preliminares, o quarto evangelho, em sua elaboração final, deve ser fixado na transição do I para o II século dC[i].

Sendo uma construção teológica acuradamente elaborada, é evidente que na análise do conteúdo joanino em geral e, especificamente, referente ao itinerário da redescoberta do perfil histórico de Miriam de Nazaré sejamos levados pela cautela hermenêutica, a fim de não sobrepor o sentido literal histórico ao sentido tipológico e simbólico dos textos joaninos seguramente mais teológicos do que históricos. É o que se deduz do ensinamento do reconhecido exegeta bíblico La Potterie (1991, p. 154-5), ao afirmar que:

João gosta de apresentar certas pessoas como tipos, quer dizer, como modelos, figuras ou símbolos de uma particular maneira de reagir ante Jesus e sua mensagem. Nestes casos, o nome concreto tem uma importância secundária, o que realmente importa é a atitude característica que elas representam e da qual se fazem modelos. Interessa sobretudo a João o valor tipológico e simbólico destas figuras”.

O que o autor afirma da tipologia de pessoas aplica-se também à tipologia e simbolização teológica de eventos, sinais e ensinamentos. Procuremos aplicar esta regra hermenêutica aos dois textos do evangelho de João já acenados: as bodas de Caná (Jo 2,1-12) e a cena ao pé da cruz (Jo 19,25-27), em que a figura de Miriam de Nazaré recebe um tratamento destacado, embora seu nome nunca seja ali mencionado explicitamente, ao passo que a expressão “mãe de Jesus” é encontradiça seis vezes (cf. Jo 2,1.3.5.12; 6,41; 19,25). As demais referências à mãe de Jesus no quarto evangelho são escassas e problemáticas (cf. Jo 1,13; 6,42).

 O relato das bodas de Caná se encontra no início do “Livro dos Sinais” do evangelho de João, que vai de Jo 1,19 a 12,50, precedido do testemunho de João Batista (cf. Jo 1,19-31) e do chamamento dos primeiros discípulos (cf. Jo 1,35-51). O texto apresenta uma riqueza simbólica incomum, cuja análise exaustiva extrapola os fins do presente ensaio. Cabe ressaltar, porém, que a linguagem simbólica, embora mais vaga e imprecisa do que a linguagem analítica, é mais sugestiva, rica e profunda, pois a profundidade do mistério da vida se faz perceptível através do símbolo, no qual transparece o inefável e o nível oculto da existência humana.

A interpretação simbólica da perícope das bodas de Caná é atestada quando a mudança da água em vinho é denominada “sinal” pelo evangelista: “Esse princípio dos sinais Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele” (Jo 2,11). Os “sinais” (em grego: sèmeía) revelam realidades ocultas. Objetivam dizer algo sobre Jesus. Não se classificam necessariamente como milagres, mas como atos simbólicos, mediante os quais Jesus é revelado como Messias e Filho de Deus. Por isso, estamos no âmbito da fé e da teologia. Se os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc) falam em “gestos de poder” (em grego: dýnameis) ou em ações taumatúrgicas que tematizam a irrupção do Reino de Deus mediante a luta contra o mal, o evangelho de João apresenta a ambivalência dos “sinais”, com seu poder de interpretação radical: crer ou descrer em Jesus.

O significado simbólico do “sinal” de Caná se evidencia pela expressão “no terceiro dia” (Jo 2,1), recordando tanto a revelação do Sinai (Estejam prontos para o terceiro dia, porque no terceiro dia o Senhor descerá aos olhos de todo o povo sobre a montanha do Sinai” (Ex 19,11), como o acontecimento da ressurreição de Jesus (Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei... falava do templo do seu corpo” (Jo2,19-21).

As núpcias de Caná antecipam no sinal o acontecimento pascal como acontecimento da aliança nupcial, que é cumprimento e superação da aliança do Sinai. No fundo simbólico veterotestamentário do esponsal entre o Senhor e o seu povo (...), o sinal de Caná revela Jesus como o esposo divino do novo povo de Deus, com o qual ele fez a aliança nova e definitiva em seu mistério pascal” (FORTE, 1991, p. 86).

Outras expressões prenhes de sentido simbólico utilizadas na perícope são “glória” (em hebraico: kabôd e em grego: dóxa) e “hora” (em grego: hôra). No sentido próprio, o termo hebraico kabôd implica o conceito de peso. Em sentido translato e simbólico, define o valor, a importância e a natureza de um ser: a “glória” de Deus (seu poder e essência) se revela em Jesus, e o primeiro “sinal” dá aos discípulos uma amostra da “glória” de Jesus. É uma revelação do mistério da sua pessoa. Antes da Páscoa, Miriam e os discípulos, evidentemente, não puderam penetrar no segredo profundo da identidade de Jesus. A “glória” de Jesus resplandecerá na Paixão, na “hora” de Jesus e a partir da Ressurreição. O tema da “hora” é recorrente no quarto evangelho e designa a hora da sua glorificação, a hora da grande manifestação messiânica e escatológica. O “sinal” de Caná será desvelado na Páscoa e se tornará nova realidade na Igreja, no novo Povo de Deus da nova Aliança escatológica.

Neste contexto simbólico das bodas[ii] de Caná, “a mãe de Jesus estava lá” (Jo 2,1) e constatou: “Eles não têm mais vinho” (Jo2,3). Não se afirma expressamente que Miriam fora convidada, como se diz de Jesus e dos discípulos (cf. Jo 2,2). A intervenção solicitada por Miriam a Jesus não corresponde certamente a um pedido de realização de um milagre ou de uma intervenção sobrenatural. Ela expõe tão-somente e com simplicidade um problema a seu filho, esperando dele alguma atitude. Se não aguardasse nada de Jesus, que sentido teriam as palavras que adiante endereçou aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). O evangelista coloca alegoricamente nos lábios de Miriam um pedido no plano natural de uma necessidade humana: falta de vinho numa festa. O pedido sinaliza, na ótica do autor  do evangelho, para um plano mais elevado, o plano do mistério, o da revelação da “glória” de Deus.

Esta diferença de planos ou de perspectivas está expressa na resposta enigmática de Jesus à sua mãe: “Que queres de mim, mulher[iii]?” (Jo 2,4). A expressão grega “ti emoì kaì soí” pode ser traduzida literalmente de diferentes maneiras: “Que há entre mim e ti”, “que importa a mim e a ti”, “que temos eu e tu com isso”? O semitismo da frase indica desacordo entre duas pessoas, divergência, falta de compreensão e um certo distanciamento entre os interlocutores. Estamos diante de uma maneira redacional típica do estilo literário do quarto evangelho para fazer progredir a narrativa. Não se trata de um conflito pessoal, de vida e diferença de mentalidade entre Jesus e sua mãe, mas uma disparidade de ótica e de plano: enquanto sua mãe fala da falta de vinho material, Jesus eleva o diálogo ao plano de sua missão messiânica e fala do vinho espiritual do dom salvífico, cuja “hora” de doação ainda não chegara. Na ótica do evangelista, o vinho material, para Jesus, não era mais que um símbolo, um “sinal” do seu futuro e verdadeiro dom. O sentido misterioso e arcado nas bodas de Caná somente se revelou para os discípulos  e para Miriam no acontecimento da Ressurreição.

A frase “Fazei tudo o que ele vos disser”,  colocada pelo evangelista na boca da mãe de Jesus, comporta diferentes interpretações. Coerente com nossa interpretação simbólico-teológica de toda a perícope joanina, somos de parecer que nestas palavras se encerra o eco daquelas pronunciadas por todo o povo de Israel no Sinai: “Tudo o que o Javé disser, nós o faremos” (Ex 19,8). Nos lábios de Miriam, o evangelista coloca a profissão de fé da aliança do povo de Deus. Existe um horizonte comum de aliança e de compromisso com a proposta do Senhor que se revela e de resposta do povo que assente e se sintoniza com o projeto divino.

O sinal arquetípico das bodas de Caná mostra a irrupção do novo tempo, da “hora” por vir no gesto da intercessão, onde a “mãe de Jesus” (Jo 2,1) é co-protagonista, como “mãe” e “mulher”, sobressaindo sua adesão pessoal e confiança radical em seu filho, mesmo se esta adesão passou por fases que vão da incompreensão inicial à função pedagógica e estimuladora que orienta os “serventes” a conformar sua existência com o projeto salvífico de Deus.

Em síntese, o relato joanino das bodas de Caná, independente da sua concretude histórica ou não, é fundamentalmente cristológico, isto é, centrado na “hora” escatológica de Jesus, o “sinal” manifestativo e auto-revelador da sua messianidade, evocando, em clima nupcial, a epifania da sua “glória”, prefigurada na aliança esponsal do Sinai e transformando a antiga economia da lei de Moisés na nova economia do Espírito, simbolizada no “vinho” novo da graça e da verdade. Em Caná, o filho de Miriam de Nazaré começou a manifestar a sua glória, isto é, sua divindade, sua filiação divina.

Na perspectiva joanina, porém, o texto confere à “mãe de Jesus” um papel relevante na economia da nova aliança. Compadecida da indigência humana “Eles não têm mais vinho”, ensina o coração dos homens, os “serventes” a aderir à verdade dos ensinamentos e dos gestos salvíficos do seu filho. Os exegetas, tanto católicos como protestantes, elaboraram diferentes interpretações da “intervenção” de Miriam em prol dos esposos de Caná, ora enfatizando o caráter da intercessão, ora vendo na sua atitude de mediadora da ação divina. Quanto a nós, preferimos identificar na presença de Miriam de Nazaré nas bodas de Caná e nas palavras a ela atribuídas pelo evangelista uma função tipicamente educativa e pedagógica: à mãe de Jesus da perícope de Caná é cometida a função de conduzir o novo povo de Deus, simbolizado nos discípulos “serventes”, à escola do discipulado de Jesus, num itinerário de contínuo amadurecimento na fé da nova e eterna aliança de Deus com a humanidade, a nova comunidade messiânica, da qual Miriam de Nazaré é pedagoga consumada, pois, além de passar pela experiência subjetiva de peregrina na fé, orienta e ensina a todos: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

O segundo texto joanino de profunda densidade simbólico-teológica relata a cena da mãe de Jesus no Calvário ao lado da cruz e as palavras dirigidas pelo filho agonizante a ela e ao discípulo predileto (cf. Jo 19,25-27). Existem evidências claras, do ponto de vista literário, que esta narrativa alude ao sinal arquetípico de Caná, comprovadas redacionalmente pela presença da mesma expressão “mãe de Jesus” (cf. Jo 2,1 e 19,25), chamada também aqui de “mulher” (Jo 2,4 e 19,26) e mediante a recordação da “hora” (Jo 2,4 e 19,27). O que, em Jo 2,1-12, bodas de Caná é prefigurado antecipadamente, em Jo 19,25-27, cena da cruz,  é apresentado em seu cumprimento. Esta densidade reveladora e simbólica parece depor contra a historicidade factual da cena, com base no fato que todo o quarto evangelho é fruto da inventiva teológica do autor, isto é, seu objetivo central foi elaborar uma teologia em torno de Jesus e não relatar uma biografia cronológica e histórica de fatos e ensinamentos. Além disso, sabemos que os discípulos haviam fugido (cf. Mc 14,50: Mt 26,56; Jo 16,32) e, pelo testemunho dos sinóticos, as mulheres não estavam próximas, mas se mantinham a certa distância.

O diálogo do filho com a mãe e o discípulo, construído dentro do clássico “esquema de revelação”, mediante a sucessão típica “ver-dizer-indicar” (cf. Jo 1,29.36.47), sela o cumprimento do “tudo está consumado” (cf. Jo 19,30) da obra a ele confiada pelo Pai. Mesmo admitindo-se a não historicidade da cena, seu significado profundo emerge da densidade simbólica da narração. A partir da “hora” da cruz, o discípulo, figura-tipo de todos os outros discípulos de Jesus, acolhe “entre as suas coisas próprias” (em grego: eis tá ídia: Jo 19,27) a mãe de Jesus, figura-tipo de Israel e da Igreja. Não se trata de acolhida material, “em sua casa”, como muitas traduções incorretamente referem, mas, a partir do vocabulário joanino, a expressão tem o sentido de “ambiente vital, mundo existencial”, significando que “a mãe entra no mais profundo da vida do discípulo e passa a ser parte inseparável dele como bem e valor irrenunciáveis” (FORTE, loc. cit., p. 91).

Do simbolismo teológico da perícope da cena da cruz se deduz que, enquanto a mãe-“mulher” é figura do antigo Israel e o discípulo amado o é do novo Israel, aquela passa a fazer parte deste de modo vital. Polemizando com a sinagoga, o evangelista teologiza que a Igreja é o novo povo de Deus, reconhecendo em Israel a antiga mãe. Em segundo lugar, enquanto a mãe-“mulher” representa o novo povo da era messiânica e o discípulo é a figura-tipo de todos os que crêem, a sua pertença recíproca simboliza a pertença recíproca entre Igreja-mãe e seus respectivos filhos. O jogo simbólico da cena da cruz se move num conjunto de quatro relações em tensão dialética: a) a relação entre dois significados coletivos: Israel-Igreja; b) a relação entre um significado coletivo e um individual: Igreja-cada fiel; c) a relação entre um significado individual e um coletivo: a mãe de Jesus e a Igreja; e d) a relação entre dois significados individuais: a mãe de Jesus e cada discípulo de Jesus.

À luz deste conjunto de símbolos relacionais, teologicamente densos e tensos, podemos deduzir que a cena da cruz (Jo 19,25-27) não remonta necessariamente a um evento histórico detalhado, mas constitui uma bem elaborada criação literária do autor do quarto evangelho, refletindo a importância de Miriam de Nazaré na comunidade do discípulo amado. Enfatizar a presença da “mãe de Jesus” no início da vida pública (em Caná) e na plenificação da sua missão (na cruz) não é de somenos importância na teologia joanina.

A polissemia das imagens e dos símbolos do relato joanino da cruz não se esgota em algumas interpretações do perfil evangélico da Miriam de Nazaré, decorrentes da piedade popular ou de uma teologia insatisfatória ou exagerada. Não se pode, por isso, resumir seu papel como “mater dolorosa” ou mesmo como corredentora. A adesão que Miriam expressou à missão messiânica de seu filho no nível prototípico de Caná encontra seu ápice no momento da morte de Jesus, sempre unida à sua ressurreição, significando a passagem para o Pai e o instante da glorificação plena de Jesus.

A partir dos relatos joaninos de Caná e da cruz, o perfil de Miriam de Nazaré revela vários prismas complementares: “mulher”, companheira e pedagoga da comunidade. O apelativo “mulher”, com o qual Jesus se dirige à sua mãe em Caná e na cruz, dado o sabor eclesiológico-simbólico de ambos os relatos, representa o lado feminino e materno de Miriam, enquanto membro constitutivo da Igreja, aprendiz do movimento do discipulado e educadora-pedagoga que ajuda a moldar a fé no coração dos seguidores de Jesus. O perfil de Miriam de Nazaré do quarto evangelho recebeu, assim, um novo valor e sentido. A mãe-discípula dos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas se transformou, no evangelho de João, na discípula-mãe, uma espécie de irmã mais velha na família, a nos ensinar e educar, pedagogicamente, no novo peregrinar da comunidade eclesial.
Bertilo Brod


[i] Entre os exegetas, é cada vez mais sólida a opinião segundo a qual o apóstolo João não teria sido o autor do quarto evangelho. Cf. BROWN, Raymond. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. Por razões didáticas, porém, utilizamos indiscriminadamente como sinônimos os títulosquarto evangelho”, “evangelho de João” ou do “discípulo amado”.
[ii] “Simbolicamente, o casamento traduz a festa humana por excelência, a que celebra o compromisso do amor do homem e da mulher. O compromisso conjugal serviu de metáfora para tematizar a aliança de Deus com seu povo. Nos profetas, evoca ainda a realização plena, escatológica, do pacto estendido a toda a humanidade” (MURAD, 1991, p. 164).
[iii] Adiante discutiremos o sentido do apelativomulher” endereçado por Jesus à sua mãe.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Famílias, no plural


Enquanto milhares de representantes da pastoral católica junto às famílias de dezenas de países se reunem suntuosamente em Milão, repetindo velhas doutrinas e subemetendo-se infantilmente ao magistério, os irmãos protestantes ousam dizer sua palavra divergente, com respeito mas com firmeza. O texto foi publicado na revista Riforma, semanário das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense da Itália, 01-06-2012. Foi traduzido por Moisés Sbardelotto e publicado no site da IHU, da Unisinos.

1. A família é uma instituição humana e não divina. Ela sofreu, ao longo do tempo e dentro das sociedades humanas, transformações que hoje nos levam a reconhecer que devemos conjugar sempre no plural a sua definição e descrição: isto é, falar de famílias, de muitos tipos de famílias e não de uma só, a tradicional. 

Em uma realidade feita de luzes e sombras, nas famílias – e, portanto, em todo tipo de agregação de tipo familiar –, além de relações e significados positivos, há também tensões, mas todas as formas de família são preciosas quando afirmam e vivem no amor responsável uma recíproca solidariedade e fidelidade entre os seus componentes. 

As várias formas de famílias e de uniões podem encontrar um reconhecimento nas Igrejas. Mas elas devem ter esse reconhecimento sobretudo por parte das instituições e da sociedade civil: um reconhecimento jurídico que dê direitos e reconheça deveres às várias formas de união – também 
as do mesmo sexo – estendendo a elas o que já está contido na nossa Constituição [italiana] e reiterado também recentemente em sede europeia.

2. Nós, cristão protestantes (batistas, metodistas, valdenses) privilegiamos uma fé pessoal, que se expresse também publicamente, seja na comunidade dos fiéis, seja no testemunho na cidade e na sociedade, com todo o peso que cada escolha comporta em termos de responsabilidade individual, de deveres e direitos que devem ser reconhecidos a toda pessoa. 

Mas também devemos dizer que a fé é "comunitária": justamente na dimensão da fé, nos são dados novos irmãos e novas irmãs. Jesus diz que essa é a sua família. E essa família compreende a todos e a todas, também as pessoas que, talvez, quereriam uma família e não conseguiram realizá-la, aquelas que fizeram experiências de vida tremendas precisamente na família biológica, e que, na família de Deus, encontraram relações que sustentam e orientam.

3. Embora respeitando as posições que a defendem, nós, cristãos protestantes, não compartilhamos a noção de "sacralidade do matrimônio e da família" e a exasperação que dela se faz no espaço midiático e público, muito menos tudo o que se deseja fazer descender dessa afirmação. Não há, hoje, necessidade particulares para fazer da família um lugar privilegiado do discurso e da práxis cristã. 

Ao contrário, sublinhamos a possibilidade de viver de modo cristão o casal e a família: o casal é uma realidade da boa Criação de Deus, que se torna, com o casamento civil, uma instituição da sociedade, mas que os fiéis vivem como um dom e como um desafio abençoado. O matrimônio, para nós, protestantes, não é um sacramento, mas sim uma expressão particular do amor ao próximo e da aliança da graça que liga os fiéis ao seu Senhor. Mesmo no caso de casamentos interconfessionais e inter-religiosos.

4. Nesse quadro, consideramos também que não se pode penalizar aqueles que se encontram na condição de
separados/as ou divorciados/as. Ou aqueles que, depois do divórcio, querem se casar novamente. Ou aqueles que não vivem em casal ou em uma família nuclear. Ou também aqueles que formaram um casal do mesmo sexo. Nesse campo, as comunidades cristãs podem ter um papel de acompanhamento, proximidade e solidariedade nos momentos difíceis ou na alegria, mas sempre respeitando as escolhas pessoais, deixando liberdade e, portanto, não penalizando ou condenando. 

Todo âmbito da vida afetiva e relacional é um lugar importante para se viver a própria vocação no discipulado d'Aquele que não sacraliza os nossos projetos de vida, mas os relativiza e os abençoa, na perspectiva do reino de Deus que transforma e redime a nossa humanidade.

(Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense de Milão)