sábado, 2 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (4)


Esta é a quarta parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do primeiro capítulo do ensaio, que trata dos fundamentos bíblico-teológicos da mariologia.


1.3  Etapa joanina

Se o conjunto dos testemunhos de Mateus e de Lucas sobre Miriam de Nazaré, especialmente os extraídos dos Evangelhos da Infância, se caracteriza mais por sua densidade teológica e simbólica do quer por seu rigor histórico, o evangelho de João nos apresenta um perfil mariano ainda mais denso e teologicamente elaborado. Fruto de antiga tradição oral e de sucessivas redações preliminares, o quarto evangelho, em sua elaboração final, deve ser fixado na transição do I para o II século dC[i].

Sendo uma construção teológica acuradamente elaborada, é evidente que na análise do conteúdo joanino em geral e, especificamente, referente ao itinerário da redescoberta do perfil histórico de Miriam de Nazaré sejamos levados pela cautela hermenêutica, a fim de não sobrepor o sentido literal histórico ao sentido tipológico e simbólico dos textos joaninos seguramente mais teológicos do que históricos. É o que se deduz do ensinamento do reconhecido exegeta bíblico La Potterie (1991, p. 154-5), ao afirmar que:

João gosta de apresentar certas pessoas como tipos, quer dizer, como modelos, figuras ou símbolos de uma particular maneira de reagir ante Jesus e sua mensagem. Nestes casos, o nome concreto tem uma importância secundária, o que realmente importa é a atitude característica que elas representam e da qual se fazem modelos. Interessa sobretudo a João o valor tipológico e simbólico destas figuras”.

O que o autor afirma da tipologia de pessoas aplica-se também à tipologia e simbolização teológica de eventos, sinais e ensinamentos. Procuremos aplicar esta regra hermenêutica aos dois textos do evangelho de João já acenados: as bodas de Caná (Jo 2,1-12) e a cena ao pé da cruz (Jo 19,25-27), em que a figura de Miriam de Nazaré recebe um tratamento destacado, embora seu nome nunca seja ali mencionado explicitamente, ao passo que a expressão “mãe de Jesus” é encontradiça seis vezes (cf. Jo 2,1.3.5.12; 6,41; 19,25). As demais referências à mãe de Jesus no quarto evangelho são escassas e problemáticas (cf. Jo 1,13; 6,42).

 O relato das bodas de Caná se encontra no início do “Livro dos Sinais” do evangelho de João, que vai de Jo 1,19 a 12,50, precedido do testemunho de João Batista (cf. Jo 1,19-31) e do chamamento dos primeiros discípulos (cf. Jo 1,35-51). O texto apresenta uma riqueza simbólica incomum, cuja análise exaustiva extrapola os fins do presente ensaio. Cabe ressaltar, porém, que a linguagem simbólica, embora mais vaga e imprecisa do que a linguagem analítica, é mais sugestiva, rica e profunda, pois a profundidade do mistério da vida se faz perceptível através do símbolo, no qual transparece o inefável e o nível oculto da existência humana.

A interpretação simbólica da perícope das bodas de Caná é atestada quando a mudança da água em vinho é denominada “sinal” pelo evangelista: “Esse princípio dos sinais Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele” (Jo 2,11). Os “sinais” (em grego: sèmeía) revelam realidades ocultas. Objetivam dizer algo sobre Jesus. Não se classificam necessariamente como milagres, mas como atos simbólicos, mediante os quais Jesus é revelado como Messias e Filho de Deus. Por isso, estamos no âmbito da fé e da teologia. Se os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc) falam em “gestos de poder” (em grego: dýnameis) ou em ações taumatúrgicas que tematizam a irrupção do Reino de Deus mediante a luta contra o mal, o evangelho de João apresenta a ambivalência dos “sinais”, com seu poder de interpretação radical: crer ou descrer em Jesus.

O significado simbólico do “sinal” de Caná se evidencia pela expressão “no terceiro dia” (Jo 2,1), recordando tanto a revelação do Sinai (Estejam prontos para o terceiro dia, porque no terceiro dia o Senhor descerá aos olhos de todo o povo sobre a montanha do Sinai” (Ex 19,11), como o acontecimento da ressurreição de Jesus (Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei... falava do templo do seu corpo” (Jo2,19-21).

As núpcias de Caná antecipam no sinal o acontecimento pascal como acontecimento da aliança nupcial, que é cumprimento e superação da aliança do Sinai. No fundo simbólico veterotestamentário do esponsal entre o Senhor e o seu povo (...), o sinal de Caná revela Jesus como o esposo divino do novo povo de Deus, com o qual ele fez a aliança nova e definitiva em seu mistério pascal” (FORTE, 1991, p. 86).

Outras expressões prenhes de sentido simbólico utilizadas na perícope são “glória” (em hebraico: kabôd e em grego: dóxa) e “hora” (em grego: hôra). No sentido próprio, o termo hebraico kabôd implica o conceito de peso. Em sentido translato e simbólico, define o valor, a importância e a natureza de um ser: a “glória” de Deus (seu poder e essência) se revela em Jesus, e o primeiro “sinal” dá aos discípulos uma amostra da “glória” de Jesus. É uma revelação do mistério da sua pessoa. Antes da Páscoa, Miriam e os discípulos, evidentemente, não puderam penetrar no segredo profundo da identidade de Jesus. A “glória” de Jesus resplandecerá na Paixão, na “hora” de Jesus e a partir da Ressurreição. O tema da “hora” é recorrente no quarto evangelho e designa a hora da sua glorificação, a hora da grande manifestação messiânica e escatológica. O “sinal” de Caná será desvelado na Páscoa e se tornará nova realidade na Igreja, no novo Povo de Deus da nova Aliança escatológica.

Neste contexto simbólico das bodas[ii] de Caná, “a mãe de Jesus estava lá” (Jo 2,1) e constatou: “Eles não têm mais vinho” (Jo2,3). Não se afirma expressamente que Miriam fora convidada, como se diz de Jesus e dos discípulos (cf. Jo 2,2). A intervenção solicitada por Miriam a Jesus não corresponde certamente a um pedido de realização de um milagre ou de uma intervenção sobrenatural. Ela expõe tão-somente e com simplicidade um problema a seu filho, esperando dele alguma atitude. Se não aguardasse nada de Jesus, que sentido teriam as palavras que adiante endereçou aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). O evangelista coloca alegoricamente nos lábios de Miriam um pedido no plano natural de uma necessidade humana: falta de vinho numa festa. O pedido sinaliza, na ótica do autor  do evangelho, para um plano mais elevado, o plano do mistério, o da revelação da “glória” de Deus.

Esta diferença de planos ou de perspectivas está expressa na resposta enigmática de Jesus à sua mãe: “Que queres de mim, mulher[iii]?” (Jo 2,4). A expressão grega “ti emoì kaì soí” pode ser traduzida literalmente de diferentes maneiras: “Que há entre mim e ti”, “que importa a mim e a ti”, “que temos eu e tu com isso”? O semitismo da frase indica desacordo entre duas pessoas, divergência, falta de compreensão e um certo distanciamento entre os interlocutores. Estamos diante de uma maneira redacional típica do estilo literário do quarto evangelho para fazer progredir a narrativa. Não se trata de um conflito pessoal, de vida e diferença de mentalidade entre Jesus e sua mãe, mas uma disparidade de ótica e de plano: enquanto sua mãe fala da falta de vinho material, Jesus eleva o diálogo ao plano de sua missão messiânica e fala do vinho espiritual do dom salvífico, cuja “hora” de doação ainda não chegara. Na ótica do evangelista, o vinho material, para Jesus, não era mais que um símbolo, um “sinal” do seu futuro e verdadeiro dom. O sentido misterioso e arcado nas bodas de Caná somente se revelou para os discípulos  e para Miriam no acontecimento da Ressurreição.

A frase “Fazei tudo o que ele vos disser”,  colocada pelo evangelista na boca da mãe de Jesus, comporta diferentes interpretações. Coerente com nossa interpretação simbólico-teológica de toda a perícope joanina, somos de parecer que nestas palavras se encerra o eco daquelas pronunciadas por todo o povo de Israel no Sinai: “Tudo o que o Javé disser, nós o faremos” (Ex 19,8). Nos lábios de Miriam, o evangelista coloca a profissão de fé da aliança do povo de Deus. Existe um horizonte comum de aliança e de compromisso com a proposta do Senhor que se revela e de resposta do povo que assente e se sintoniza com o projeto divino.

O sinal arquetípico das bodas de Caná mostra a irrupção do novo tempo, da “hora” por vir no gesto da intercessão, onde a “mãe de Jesus” (Jo 2,1) é co-protagonista, como “mãe” e “mulher”, sobressaindo sua adesão pessoal e confiança radical em seu filho, mesmo se esta adesão passou por fases que vão da incompreensão inicial à função pedagógica e estimuladora que orienta os “serventes” a conformar sua existência com o projeto salvífico de Deus.

Em síntese, o relato joanino das bodas de Caná, independente da sua concretude histórica ou não, é fundamentalmente cristológico, isto é, centrado na “hora” escatológica de Jesus, o “sinal” manifestativo e auto-revelador da sua messianidade, evocando, em clima nupcial, a epifania da sua “glória”, prefigurada na aliança esponsal do Sinai e transformando a antiga economia da lei de Moisés na nova economia do Espírito, simbolizada no “vinho” novo da graça e da verdade. Em Caná, o filho de Miriam de Nazaré começou a manifestar a sua glória, isto é, sua divindade, sua filiação divina.

Na perspectiva joanina, porém, o texto confere à “mãe de Jesus” um papel relevante na economia da nova aliança. Compadecida da indigência humana “Eles não têm mais vinho”, ensina o coração dos homens, os “serventes” a aderir à verdade dos ensinamentos e dos gestos salvíficos do seu filho. Os exegetas, tanto católicos como protestantes, elaboraram diferentes interpretações da “intervenção” de Miriam em prol dos esposos de Caná, ora enfatizando o caráter da intercessão, ora vendo na sua atitude de mediadora da ação divina. Quanto a nós, preferimos identificar na presença de Miriam de Nazaré nas bodas de Caná e nas palavras a ela atribuídas pelo evangelista uma função tipicamente educativa e pedagógica: à mãe de Jesus da perícope de Caná é cometida a função de conduzir o novo povo de Deus, simbolizado nos discípulos “serventes”, à escola do discipulado de Jesus, num itinerário de contínuo amadurecimento na fé da nova e eterna aliança de Deus com a humanidade, a nova comunidade messiânica, da qual Miriam de Nazaré é pedagoga consumada, pois, além de passar pela experiência subjetiva de peregrina na fé, orienta e ensina a todos: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

O segundo texto joanino de profunda densidade simbólico-teológica relata a cena da mãe de Jesus no Calvário ao lado da cruz e as palavras dirigidas pelo filho agonizante a ela e ao discípulo predileto (cf. Jo 19,25-27). Existem evidências claras, do ponto de vista literário, que esta narrativa alude ao sinal arquetípico de Caná, comprovadas redacionalmente pela presença da mesma expressão “mãe de Jesus” (cf. Jo 2,1 e 19,25), chamada também aqui de “mulher” (Jo 2,4 e 19,26) e mediante a recordação da “hora” (Jo 2,4 e 19,27). O que, em Jo 2,1-12, bodas de Caná é prefigurado antecipadamente, em Jo 19,25-27, cena da cruz,  é apresentado em seu cumprimento. Esta densidade reveladora e simbólica parece depor contra a historicidade factual da cena, com base no fato que todo o quarto evangelho é fruto da inventiva teológica do autor, isto é, seu objetivo central foi elaborar uma teologia em torno de Jesus e não relatar uma biografia cronológica e histórica de fatos e ensinamentos. Além disso, sabemos que os discípulos haviam fugido (cf. Mc 14,50: Mt 26,56; Jo 16,32) e, pelo testemunho dos sinóticos, as mulheres não estavam próximas, mas se mantinham a certa distância.

O diálogo do filho com a mãe e o discípulo, construído dentro do clássico “esquema de revelação”, mediante a sucessão típica “ver-dizer-indicar” (cf. Jo 1,29.36.47), sela o cumprimento do “tudo está consumado” (cf. Jo 19,30) da obra a ele confiada pelo Pai. Mesmo admitindo-se a não historicidade da cena, seu significado profundo emerge da densidade simbólica da narração. A partir da “hora” da cruz, o discípulo, figura-tipo de todos os outros discípulos de Jesus, acolhe “entre as suas coisas próprias” (em grego: eis tá ídia: Jo 19,27) a mãe de Jesus, figura-tipo de Israel e da Igreja. Não se trata de acolhida material, “em sua casa”, como muitas traduções incorretamente referem, mas, a partir do vocabulário joanino, a expressão tem o sentido de “ambiente vital, mundo existencial”, significando que “a mãe entra no mais profundo da vida do discípulo e passa a ser parte inseparável dele como bem e valor irrenunciáveis” (FORTE, loc. cit., p. 91).

Do simbolismo teológico da perícope da cena da cruz se deduz que, enquanto a mãe-“mulher” é figura do antigo Israel e o discípulo amado o é do novo Israel, aquela passa a fazer parte deste de modo vital. Polemizando com a sinagoga, o evangelista teologiza que a Igreja é o novo povo de Deus, reconhecendo em Israel a antiga mãe. Em segundo lugar, enquanto a mãe-“mulher” representa o novo povo da era messiânica e o discípulo é a figura-tipo de todos os que crêem, a sua pertença recíproca simboliza a pertença recíproca entre Igreja-mãe e seus respectivos filhos. O jogo simbólico da cena da cruz se move num conjunto de quatro relações em tensão dialética: a) a relação entre dois significados coletivos: Israel-Igreja; b) a relação entre um significado coletivo e um individual: Igreja-cada fiel; c) a relação entre um significado individual e um coletivo: a mãe de Jesus e a Igreja; e d) a relação entre dois significados individuais: a mãe de Jesus e cada discípulo de Jesus.

À luz deste conjunto de símbolos relacionais, teologicamente densos e tensos, podemos deduzir que a cena da cruz (Jo 19,25-27) não remonta necessariamente a um evento histórico detalhado, mas constitui uma bem elaborada criação literária do autor do quarto evangelho, refletindo a importância de Miriam de Nazaré na comunidade do discípulo amado. Enfatizar a presença da “mãe de Jesus” no início da vida pública (em Caná) e na plenificação da sua missão (na cruz) não é de somenos importância na teologia joanina.

A polissemia das imagens e dos símbolos do relato joanino da cruz não se esgota em algumas interpretações do perfil evangélico da Miriam de Nazaré, decorrentes da piedade popular ou de uma teologia insatisfatória ou exagerada. Não se pode, por isso, resumir seu papel como “mater dolorosa” ou mesmo como corredentora. A adesão que Miriam expressou à missão messiânica de seu filho no nível prototípico de Caná encontra seu ápice no momento da morte de Jesus, sempre unida à sua ressurreição, significando a passagem para o Pai e o instante da glorificação plena de Jesus.

A partir dos relatos joaninos de Caná e da cruz, o perfil de Miriam de Nazaré revela vários prismas complementares: “mulher”, companheira e pedagoga da comunidade. O apelativo “mulher”, com o qual Jesus se dirige à sua mãe em Caná e na cruz, dado o sabor eclesiológico-simbólico de ambos os relatos, representa o lado feminino e materno de Miriam, enquanto membro constitutivo da Igreja, aprendiz do movimento do discipulado e educadora-pedagoga que ajuda a moldar a fé no coração dos seguidores de Jesus. O perfil de Miriam de Nazaré do quarto evangelho recebeu, assim, um novo valor e sentido. A mãe-discípula dos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas se transformou, no evangelho de João, na discípula-mãe, uma espécie de irmã mais velha na família, a nos ensinar e educar, pedagogicamente, no novo peregrinar da comunidade eclesial.
Bertilo Brod


[i] Entre os exegetas, é cada vez mais sólida a opinião segundo a qual o apóstolo João não teria sido o autor do quarto evangelho. Cf. BROWN, Raymond. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. Por razões didáticas, porém, utilizamos indiscriminadamente como sinônimos os títulosquarto evangelho”, “evangelho de João” ou do “discípulo amado”.
[ii] “Simbolicamente, o casamento traduz a festa humana por excelência, a que celebra o compromisso do amor do homem e da mulher. O compromisso conjugal serviu de metáfora para tematizar a aliança de Deus com seu povo. Nos profetas, evoca ainda a realização plena, escatológica, do pacto estendido a toda a humanidade” (MURAD, 1991, p. 164).
[iii] Adiante discutiremos o sentido do apelativomulher” endereçado por Jesus à sua mãe.

Nenhum comentário: