Esta é a quarta parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso
amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta,
teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do primeiro capítulo do ensaio,
que trata dos fundamentos bíblico-teológicos da mariologia.
1.3 Etapa joanina
Se
o conjunto dos testemunhos de Mateus e de Lucas sobre Miriam de Nazaré,
especialmente os extraídos dos Evangelhos da Infância, se caracteriza mais por
sua densidade teológica e simbólica do quer por seu rigor histórico, o
evangelho de João nos apresenta um perfil mariano ainda mais denso e
teologicamente elaborado. Fruto de antiga tradição oral e de sucessivas
redações preliminares, o quarto evangelho, em sua elaboração final, deve ser
fixado na transição do I para o II século dC[i].
Sendo
uma construção teológica acuradamente elaborada, é evidente que na análise do
conteúdo joanino em geral e, especificamente, referente ao itinerário da
redescoberta do perfil histórico de Miriam de Nazaré sejamos levados pela
cautela hermenêutica, a fim de não sobrepor o sentido literal histórico ao
sentido tipológico e simbólico dos textos joaninos seguramente mais teológicos
do que históricos. É o que se deduz do ensinamento do reconhecido exegeta
bíblico La Potterie
(1991, p. 154-5), ao afirmar que:
“João gosta de apresentar certas
pessoas como tipos, quer dizer, como modelos, figuras ou símbolos de uma
particular maneira de reagir ante Jesus e sua mensagem. Nestes casos, o nome
concreto tem uma importância secundária, o que realmente importa é a atitude
característica que elas representam e da qual se fazem modelos. Interessa
sobretudo a João o valor tipológico e simbólico destas figuras”.
O
que o autor afirma da tipologia de pessoas aplica-se também à tipologia e
simbolização teológica de eventos, sinais e ensinamentos. Procuremos aplicar
esta regra hermenêutica aos dois textos do evangelho de João já acenados: as
bodas de Caná (Jo 2,1-12) e a cena ao pé da cruz (Jo 19,25-27), em que a figura
de Miriam de Nazaré recebe um tratamento destacado, embora seu nome nunca seja
ali mencionado explicitamente, ao passo que a expressão “mãe de Jesus” é
encontradiça seis vezes (cf. Jo 2,1.3.5.12; 6,41; 19,25). As demais referências
à mãe de Jesus no quarto evangelho são escassas e problemáticas (cf. Jo 1,13;
6,42).
O relato das bodas de Caná se encontra no
início do “Livro dos Sinais” do evangelho de João, que vai de Jo 1,19 a 12,50, precedido do
testemunho de João Batista (cf. Jo 1,19-31) e do chamamento dos primeiros
discípulos (cf. Jo 1,35-51). O texto apresenta uma riqueza simbólica incomum,
cuja análise exaustiva extrapola os fins do presente ensaio. Cabe ressaltar,
porém, que a linguagem simbólica, embora mais vaga e imprecisa do que a
linguagem analítica, é mais sugestiva, rica e profunda, pois a profundidade do
mistério da vida se faz perceptível através do símbolo, no qual transparece o
inefável e o nível oculto da existência humana.
A
interpretação simbólica da perícope das bodas de Caná é atestada quando a
mudança da água em vinho é denominada “sinal” pelo evangelista: “Esse princípio
dos sinais Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os seus
discípulos creram nele” (Jo 2,11). Os “sinais” (em grego: sèmeía)
revelam realidades ocultas. Objetivam dizer algo sobre Jesus. Não se
classificam necessariamente como milagres, mas como atos simbólicos, mediante
os quais Jesus é revelado como Messias e Filho de Deus. Por isso, estamos no
âmbito da fé e da teologia. Se os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc) falam em
“gestos de poder” (em grego: dýnameis) ou em ações taumatúrgicas que
tematizam a irrupção do Reino de Deus mediante a luta contra o mal, o evangelho
de João apresenta a ambivalência dos “sinais”, com seu poder de interpretação
radical: crer ou descrer em Jesus.
O
significado simbólico do “sinal” de Caná se evidencia pela expressão “no
terceiro dia” (Jo 2,1), recordando tanto a revelação do Sinai (Estejam prontos
para o terceiro dia, porque no terceiro dia o Senhor descerá aos olhos de todo
o povo sobre a montanha do Sinai” (Ex 19,11), como o acontecimento da
ressurreição de Jesus (Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei...
falava do templo do seu corpo” (Jo2,19-21).
“As núpcias de Caná antecipam no
sinal o acontecimento pascal como acontecimento da aliança nupcial, que é
cumprimento e superação da aliança do Sinai. No fundo simbólico
veterotestamentário do esponsal entre o Senhor e o seu povo (...), o sinal de
Caná revela Jesus como o esposo divino do novo povo de Deus, com o qual ele fez
a aliança nova e definitiva em seu mistério pascal” (FORTE, 1991, p. 86).
Outras
expressões prenhes de sentido simbólico utilizadas na perícope são “glória” (em
hebraico: kabôd e em grego: dóxa) e “hora” (em grego: hôra).
No sentido próprio, o termo hebraico kabôd implica o conceito de peso.
Em sentido translato e simbólico, define o valor, a importância e a natureza de
um ser: a “glória” de Deus (seu poder e essência) se revela em Jesus, e o
primeiro “sinal” dá aos discípulos uma amostra da “glória” de Jesus. É uma
revelação do mistério da sua pessoa. Antes da Páscoa, Miriam e os discípulos,
evidentemente, não puderam penetrar no segredo profundo da identidade de Jesus.
A “glória” de Jesus resplandecerá na Paixão, na “hora” de Jesus e a partir da
Ressurreição. O tema da “hora” é recorrente no quarto evangelho e designa a
hora da sua glorificação, a hora da grande manifestação messiânica e
escatológica. O “sinal” de Caná será desvelado na Páscoa e se tornará nova
realidade na Igreja, no novo Povo de Deus da nova Aliança escatológica.
Neste
contexto simbólico das bodas[ii]
de Caná, “a mãe de Jesus estava lá” (Jo 2,1) e constatou: “Eles não têm mais
vinho” (Jo2,3). Não se afirma expressamente que Miriam fora convidada, como se
diz de Jesus e dos discípulos (cf. Jo 2,2). A intervenção solicitada por Miriam
a Jesus não corresponde certamente a um pedido de realização de um milagre ou
de uma intervenção sobrenatural. Ela expõe tão-somente e com simplicidade um
problema a seu filho, esperando dele alguma atitude. Se não aguardasse nada de
Jesus, que sentido teriam as palavras que adiante endereçou aos serventes:
“Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). O evangelista coloca alegoricamente
nos lábios de Miriam um pedido no plano natural de uma necessidade humana:
falta de vinho numa festa. O pedido sinaliza, na ótica do autor do evangelho, para um plano mais elevado, o
plano do mistério, o da revelação da “glória” de Deus.
Esta
diferença de planos ou de perspectivas está expressa na resposta enigmática de
Jesus à sua mãe: “Que queres de mim, mulher[iii]?”
(Jo 2,4). A expressão grega “ti emoì kaì soí” pode ser traduzida
literalmente de diferentes maneiras: “Que há entre mim e ti”, “que importa a
mim e a ti”, “que temos eu e tu com isso”? O semitismo da frase indica
desacordo entre duas pessoas, divergência, falta de compreensão e um certo
distanciamento entre os interlocutores. Estamos diante de uma maneira
redacional típica do estilo literário do quarto evangelho para fazer progredir
a narrativa. Não se trata de um conflito pessoal, de vida e diferença de
mentalidade entre Jesus e sua mãe, mas uma disparidade de ótica e de plano:
enquanto sua mãe fala da falta de vinho material, Jesus eleva o diálogo ao
plano de sua missão messiânica e fala do vinho espiritual do dom salvífico,
cuja “hora” de doação ainda não chegara. Na ótica do evangelista, o vinho
material, para Jesus, não era mais que um símbolo, um “sinal” do seu futuro e
verdadeiro dom. O sentido misterioso e arcado nas bodas de Caná somente se
revelou para os discípulos e para Miriam
no acontecimento da Ressurreição.
A
frase “Fazei tudo o que ele vos disser”,
colocada pelo evangelista na boca da mãe de Jesus, comporta diferentes
interpretações. Coerente com nossa interpretação simbólico-teológica de toda a
perícope joanina, somos de parecer que nestas palavras se encerra o eco
daquelas pronunciadas por todo o povo de Israel no Sinai: “Tudo o que o Javé
disser, nós o faremos” (Ex 19,8). Nos lábios de Miriam, o evangelista coloca a
profissão de fé da aliança do povo de Deus. Existe um horizonte comum de
aliança e de compromisso com a proposta do Senhor que se revela e de resposta
do povo que assente e se sintoniza com o projeto divino.
O
sinal arquetípico das bodas de Caná mostra a irrupção do novo tempo, da “hora”
por vir no gesto da intercessão, onde a “mãe de Jesus” (Jo 2,1) é
co-protagonista, como “mãe” e “mulher”, sobressaindo sua adesão pessoal e
confiança radical em seu filho, mesmo se esta adesão passou por fases que vão
da incompreensão inicial à função pedagógica e estimuladora que orienta os
“serventes” a conformar sua existência com o projeto salvífico de Deus.
Em
síntese, o relato joanino das bodas de Caná, independente da sua concretude
histórica ou não, é fundamentalmente cristológico, isto é, centrado na “hora”
escatológica de Jesus, o “sinal” manifestativo e auto-revelador da sua
messianidade, evocando, em clima nupcial, a epifania da sua “glória”,
prefigurada na aliança esponsal do Sinai e transformando a antiga economia da
lei de Moisés na nova economia do Espírito, simbolizada no “vinho” novo da graça
e da verdade. Em Caná, o filho de Miriam de Nazaré começou a manifestar a sua
glória, isto é, sua divindade, sua filiação divina.
Na
perspectiva joanina, porém, o texto confere à “mãe de Jesus” um papel relevante
na economia da nova aliança. Compadecida da indigência humana “Eles não têm
mais vinho”, ensina o coração dos homens, os “serventes” a aderir à verdade dos
ensinamentos e dos gestos salvíficos do seu filho. Os exegetas, tanto católicos
como protestantes, elaboraram diferentes interpretações da “intervenção” de
Miriam em prol dos esposos de Caná, ora enfatizando o caráter da intercessão,
ora vendo na sua atitude de mediadora da ação divina. Quanto a nós, preferimos
identificar na presença de Miriam de Nazaré nas bodas de Caná e nas palavras a ela
atribuídas pelo evangelista uma função
tipicamente educativa e pedagógica: à mãe de Jesus da perícope de Caná é
cometida a função de conduzir o novo povo
de Deus, simbolizado nos discípulos “serventes”, à escola do discipulado de
Jesus, num itinerário de contínuo amadurecimento na fé da nova e eterna aliança
de Deus com a humanidade, a nova comunidade messiânica, da qual Miriam de
Nazaré é pedagoga consumada, pois, além de passar pela experiência subjetiva de
peregrina na fé, orienta e ensina a todos: “Fazei tudo o que ele vos disser”.
O
segundo texto joanino de profunda densidade simbólico-teológica relata a cena
da mãe de Jesus no Calvário ao lado da cruz e as palavras dirigidas pelo filho
agonizante a ela e ao discípulo predileto (cf. Jo 19,25-27). Existem evidências
claras, do ponto de vista literário, que esta narrativa alude ao sinal
arquetípico de Caná, comprovadas redacionalmente pela presença da mesma
expressão “mãe de Jesus” (cf. Jo 2,1 e 19,25), chamada também aqui de “mulher”
(Jo 2,4 e 19,26) e mediante a recordação da “hora” (Jo 2,4 e 19,27). O que, em
Jo 2,1-12, bodas de Caná é prefigurado antecipadamente, em Jo 19,25-27, cena da
cruz, é apresentado em seu cumprimento.
Esta densidade reveladora e simbólica parece depor contra a historicidade factual
da cena, com base no fato que todo o quarto evangelho é fruto da inventiva
teológica do autor, isto é, seu objetivo central foi elaborar uma teologia em
torno de Jesus e não relatar uma biografia cronológica e histórica de fatos e
ensinamentos. Além disso, sabemos que os discípulos haviam fugido (cf. Mc
14,50: Mt 26,56; Jo 16,32) e, pelo testemunho dos sinóticos, as mulheres não
estavam próximas, mas se mantinham a certa distância.
O
diálogo do filho com a mãe e o discípulo, construído dentro do clássico
“esquema de revelação”, mediante a sucessão típica “ver-dizer-indicar” (cf. Jo
1,29.36.47), sela o cumprimento do “tudo está consumado” (cf. Jo 19,30) da obra
a ele confiada pelo Pai. Mesmo admitindo-se a não historicidade da cena, seu
significado profundo emerge da densidade simbólica da narração. A partir da
“hora” da cruz, o discípulo, figura-tipo de todos os outros discípulos de
Jesus, acolhe “entre as suas coisas próprias” (em grego: eis tá ídia: Jo
19,27) a mãe de Jesus, figura-tipo de Israel e da Igreja. Não se trata de
acolhida material, “em sua casa”, como muitas traduções incorretamente referem,
mas, a partir do vocabulário joanino, a expressão tem o sentido de “ambiente
vital, mundo existencial”, significando que “a mãe entra no mais profundo da
vida do discípulo e passa a ser parte inseparável dele como bem e valor
irrenunciáveis” (FORTE, loc. cit., p. 91).
Do
simbolismo teológico da perícope da cena da cruz se deduz que, enquanto a
mãe-“mulher” é figura do antigo Israel e o discípulo amado o é do novo Israel,
aquela passa a fazer parte deste de modo vital. Polemizando com a sinagoga, o
evangelista teologiza que a Igreja é o novo povo de Deus, reconhecendo em
Israel a antiga mãe. Em segundo lugar, enquanto a mãe-“mulher” representa o
novo povo da era messiânica e o discípulo é a figura-tipo de todos os que
crêem, a sua pertença recíproca simboliza a pertença recíproca entre Igreja-mãe
e seus respectivos filhos. O jogo simbólico da cena da cruz se move num
conjunto de quatro relações em tensão dialética: a) a relação entre dois
significados coletivos: Israel-Igreja; b) a relação entre um significado
coletivo e um individual: Igreja-cada fiel; c) a relação entre um significado
individual e um coletivo: a mãe de Jesus e a Igreja; e d) a relação entre dois
significados individuais: a mãe de Jesus e cada discípulo de Jesus.
À
luz deste conjunto de símbolos relacionais, teologicamente densos e tensos,
podemos deduzir que a cena da cruz (Jo 19,25-27) não remonta necessariamente a
um evento histórico detalhado, mas constitui uma bem elaborada criação
literária do autor do quarto evangelho, refletindo a importância de Miriam de
Nazaré na comunidade do discípulo amado. Enfatizar a presença da “mãe de Jesus”
no início da vida pública (em Caná) e na plenificação da sua missão (na cruz)
não é de somenos importância na teologia joanina.
A
polissemia das imagens e dos símbolos do relato joanino da cruz não se esgota
em algumas interpretações do perfil evangélico da Miriam de Nazaré, decorrentes
da piedade popular ou de uma teologia insatisfatória ou exagerada. Não se pode,
por isso, resumir seu papel como “mater dolorosa” ou mesmo como corredentora. A
adesão que Miriam expressou à missão messiânica de seu filho no nível
prototípico de Caná encontra seu ápice no momento da morte de Jesus, sempre
unida à sua ressurreição, significando a passagem para o Pai e o instante da
glorificação plena de Jesus.
A
partir dos relatos joaninos de Caná e da cruz, o perfil de Miriam de Nazaré
revela vários prismas complementares: “mulher”,
companheira e pedagoga da comunidade. O
apelativo “mulher”, com o qual Jesus se dirige à sua mãe em Caná e na cruz,
dado o sabor eclesiológico-simbólico de ambos os relatos, representa o lado
feminino e materno de Miriam, enquanto membro constitutivo da Igreja, aprendiz
do movimento do discipulado e educadora-pedagoga que ajuda a moldar a fé no
coração dos seguidores de Jesus. O perfil de Miriam de Nazaré do quarto
evangelho recebeu, assim, um novo valor e sentido. A mãe-discípula dos
evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas se transformou, no evangelho de João, na discípula-mãe, uma espécie de irmã mais
velha na família, a nos ensinar e educar, pedagogicamente, no novo peregrinar
da comunidade eclesial.
Bertilo Brod
[i] Entre
os exegetas , é cada
vez mais
sólida a opinião
segundo a qual
o apóstolo João não
teria sido o autor do quarto
evangelho . Cf. BROWN, Raymond. A comunidade do discípulo
amado . São
Paulo: Paulinas, 1984. Por razões didáticas ,
porém , utilizamos indiscriminadamente
como sinônimos
os títulos “quarto
evangelho ”, “evangelho
de João” ou do “discípulo
amado ”.
[ii] “Simbolicamente, o casamento
traduz a festa humana
por excelência ,
a que celebra o compromisso
do amor do homem
e da mulher . O compromisso
conjugal serviu de metáfora para tematizar a aliança
de Deus com
seu povo .
Nos profetas ,
evoca ainda a realização
plena , escatológica, do pacto
estendido a toda a humanidade ”
(MURAD, 1991, p. 164).
[iii] Adiante
discutiremos o sentido do apelativo “mulher ”
endereçado por Jesus à sua mãe .
Nenhum comentário:
Postar um comentário