O coração de Deus é grande
e compassivo.
(Os 11,1-4.8-9; Is 12,2-6; Ef 3,8-19; Jo
19,31-37)
A tentação de imaginar Deus de forma
abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está
sempre nos rondando. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na festa da Santíssima Trindade pode virar uma
questão de matemática ou metafísica. A boa notícia recordada na solenidade de Corpus Christi pode descambar em uma discussão
polêmica e inoportuna. E acabamos representando o mistério de Deus mediante
figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a lei, o olho. Até a cruz
corre o risco de passar uma idéia parcial e doentia de um Deus sádico. Imagens
como a mãe, o pai, o cordeiro, a mesa e o coração não seriam mais adequadas? Na
solenidade do Sagrado Coração de Jesus
recordamos agradecidos/as que Deus tem um grande coração, um coração humano e
compassivo. E isso não tem nada a ver com um Deus distante, abstrato e sádico.
“Eu sou o Santo no meio de ti, não venho com terror.”
Bem que o primeiro testamento proíbe
terminantemente que se façam imagens de Deus. Imaginar Deus é difícil, perigoso
e pode ter consequências desastrosas. Basta lembrar algumas imagens que, não
obstante a proibição, o povo de Israel se fez de Deus: Senhor dos exércitos,
Rei do céu e da terra, Deus altíssimo, Senhor onipotente... O caminho entre
imaginar Deus nestes termos e sua cooptação pelos poderosos e opressores de
plantão, em prejuízo dos pobres, é apenas um passo.
Nas últimas décadas, algumas escolas
de teologia e de espiritualidade fizeram esforços significativos para refundir a
noção de Deus nos parâmetros da cultura moderna. Mas o que significa concreta e
existencialmente conceitos como Absoluto,
Transcendente, Divindade? Correm o risco de passar mensagens ambíguas ou
incompletas, como os antigos conceitos de Altíssimo,
Onipotente e Senhor. E às vezes não fazem outra coisa que cavar um abismo
intransponível entre Deus e ser humano...
“Eu os lacei com laços de amizade...”
Mas antes disso, no final do século
XVII e meados do século XVIII, nasceu e se espandiu um movimento espiritual que
quis corrigir o formalismo no qual caíra a teologia e a espiritualidade cristãs.
O movimento pietista se propôs a
recolocar a experiência prática e o sentimento no centro da vida cristã. Caminhou
paralelamente às principais tendências teológicas, pois tinha a impressão de
nada ganhar com elas. E a teologia, por sua vez, olhou para o pietismo com
desconfiança, temendo a multiplicação de heresias.
É no âmbito do esfriamento das
práticas de piedade, provocado pelo liberalismo, e no contexto do movimento
pietista, que nasceu a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1675, Jesus teria aparecido a Santa Margarida Maria Alcoque e dito, descobrindo
seu Coração: “Eis o coração
que tanto tem amado aos homens e em recompensa não recebe, da maior
parte deles, senão ingratidões pelas irreverências e sacrilégios,
friezas e desprezos que tem por Mim neste Sacramento de Amor”.
A Sagrada Escritura nos apresenta a
imagem de um Deus vivo e
caracterizado pela Compaixão, e é
isso que a solenidade do Sagrado Coração
de Jesus deve colocar em
evidência. Não precisamos ter medo de reconhecer traços
antropomórficos em nossas imagens de Deus. Nunca nos livraremos disso. O que
precisamos é evitar projetar na idéia de Deus elementos de uma antropologia que
exclui aspectos fundamentais como a corporeidade, a relação, o sentimento e a
solidariedade.
“Para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles.”
Como horizonte maior da reflexão
deste dia, temos a experiência e a palavra do profeta Oséias. O trecho proposto
é uma das mais ternas e belas páginas da experiência religiosa, e não só de
Isarel. Para descrever quem é e como age o Deus de Israel, o profeta recorre
aos marcantes sentimentos e às profundas atitudes de uma mãe em relação aos filhos pequenos.
A experiência masculina – e muito menos a abstração teórica e a frieza
legalista – não são adequadas para falar de Deus.
Como uma mãe é incansável e criativa
nos sinais do seu bem-querer, Deus toma seu povo pela mão, ensina-o
pacientemente a dar os primeiros passos, envolve-o com os infinitos gestos que
só o amor sabe criar. Como uma mãe se inclina para elevar seu filhinho ao peito
e amamentá-lo, Deus se inclina para sustentar seu povo e fazê-lo subir. Diante
do menor sofrimento de um filho ou filha, o coração de Deus salta no seu peito
e suas entranhas se agitam dolorosamente. É um Deus que padece.
São metáforas que procuram quase
desesperadamente dar conta de um Deus que tem coração, que não descansa
enquanto não vê seu povo sair da opressão, que não admite fazer justiça
castigando, que não suporta dar as costas àqueles/as a quem ama. Nem de longe
ele se parece com um justiceiro altivo ou um homem vingativo. Ele é Santo,
radicalmente diferente, incapaz de se deixar mover pelos desumanos sentimentos
de mágoa e de vingança. É um Deus
apaixonado.
“Um soldado
golpeou-lhe o lado com a lança...”
O primeiro plano do quadro da
Palavra que escutamos hoje é totalmente dominado pela figura de Jesus de
Nazaré. Ele pende da cruz, onde fora pregado depois de ter sido acusado,
traído, condenado e torturado. Fazem-lhe companhia dois outros proscritos. O
dia é soleníssimo, antecede a grande festa dos judeus. O que o fez chegar a
este lugar e a este estado é de domínio público: ousou desafiar uma certa
imagem de Deus, afirmando que ele é, antes e acima de tudo, Amor.
Sabemos que o coração de Jesus bate
forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de
escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de
uma generosidade ingênua, Jesus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu
amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai
premurosamente ao encontro das pessoas perdidas, reconduz as desgarradas, cuida
das machucadas, fortalece fortalece as doentes, defende a dignidade de todas.
No alto da colina da caveira, o
corpo pendente da cruz proclama em alto e bom som que Deus tem um coração: ele
ama a justiça, estende sua misericórdia de geração em geração, aproxima-se de
todos/as os/as necessitados/as com ternura de pai e mãe. Seu coração é de carne
e jorra sangue, e não de pedra fria, feita de leis impostas e apllicadas sem
condecendência. É para que seu peito não retenha este coração que suas pernas
não são quebradas. É disso que nós somos beneficiadas testemunhas!
“Assim, conhecemos o amor de Cristo, que ultrapassa
todo conhecimento.”
Paulo fizera uma experiência
paradoxal: sendo fariseu de estrita observância e implacável perseguidor dos
seguidores de Jesus, descobre-se amado e escolhido para testemunhá-lo como
Messias de Deus e salvador da humanidade. Um amor e uma missão absolutamente
imerecidas. O conhecimento e a observância da lei o havia fechado em si mesmo e
feito dele um homem frio e orgulhoso. O conhecimento de Jesus Cristo o faz
homem livre e frágil, próximo e servidor da humanidade.
Paulo tem a impressão de que a
grandeza dessa experiência não cabe nas palavras. Escrevendo aos cristãos que
vinham do paganismo e amargavam duras experiências de exclusão, Paulo faz de
tudo para anunciar a eles a “riqueza insondável de Cristo”. O desejo de Deus
sempre foi que, pela fé e pela adesão a Jesus Cristo, todos sejam livres para
se aproximar de Deus com confiança. É este o mistério que antes estava
escondido e agora deve ser anunciado sem meias-palavras.
Paulo prossegue, implorando de
joelhos, que nossa humanidade amadureça e se desenvolva, enraizada e alicerçada
em Jesus Cristo. Assim, teremos condições de “conhecer o amor de Cristo, que
ultrapassa todo conhecimento”, de entender “a largura, o comprimento, a altura,
a profundidade” desse amor gratuito e imerecido. E quem experimenta e
compreende esse amor, não pode senão testemunhá-lo nas ações, relações e
projetos concretos de compaixão e solidariedade.
“O Senhor é
minha força e meu alegre canto!”
Jesus crucificado, terno coração de um Deus que é pai e mãe, sofrido
coração de um homem que é incapaz de ser indiferente às dores e dramas humanos:
neste dia em que tua Igreja proclama a sacralidade transcendente do amor, de
todo amor, dobramos os joelhos diante de ti e pedimos que o teu Espírito nos
inunde, renove e guie nos caminhos do amor terno, despojado e serviçal.
Acolhendo no teu coração sagrado o inteiro anúncio do Reino, dispo-mos a ser
como és e a ir onde estás. Faça com que nosso instável coração adquira a
altura, a profundidade e a largura do teu amor. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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