O dinamismo do reino de Deus desmente
o realismo cínico.
(Ez
17,22-24; Sl 91/92; 2Cor 5,6-10; Mc 4,26-34)
O Tempo Comum não tem nada de comum e tem muito
de comunidade. É o tempo da encarnação do Evangelho no cotidiano da vida
pessoal, eclesial e social. Tempo de acolher e contemplar o mistério do Reino
de Deus que vai lentamente adquirindo contornos e produzindo frutos. Tempo de
cultivar pacientemente a esperança que, como o artista do circo, caminha sobre
a corda bamba. Renovemos a convicção de que somos enviados para caminhar na
esperança. E façamo-lo acolhendo e espalhando muitas sementes, mesmo que
pareçam hoje insignificantes. Cremos que a pessoa justa cresce como palmeira em
terra fértil: mesmo na velhice, se mantém verde e produz frutos. Deus não é aliado
dos injustos, e uma vida comprometida sempre esbanja vitalidade (cf. Sl 91/92).
“O Reino de Deus é como um grão de
mostarda.”
O realismo cínico é hoje apresentado como
a maior das virtudes e se torna uma tentação, inclusive para aqueles/as que
dizem acreditar num crucificado que ressuscitou. As afirmações que pretendem nos
acordar para esse falso realismo se multiplicam, mas são variações de um mesmo
tema. E a primeira delas quer nos convencer que o mundo sempre foi assim, e que
não seremos nós os/as protagonistas de uma hipotética mudança. Um outro mundo não é possível, e ponto final!
Como todo esforço
de mudança parte da idéia de que algo diferente é possível, estes realistas
aconselham cinicamente: cada um que cuide de sua própria vida, não deixe escapar
nenhuma oportunidade de superar os outros na competição da vida e procure sempre
tirar o máximo de vantagem. Quando estamos no inferno, dizem, é preciso fazer
aliança com o diabo e seguir adiante. Sábio/a seria quem faz aliança com este
mundo e cobra seus dividendos...
No estreito
realismo dos cínicos, daqueles/as que nada querem mudar para tirar o máximo de
proveito, projetos de conversão pessoal ao Evangelho de Jesus Cristo, de
comunhão e participação na Igreja, de afirmação dos direitos da pessoa humana
concreta, de solidariedade com os excluídos e coisas do gênero não passam de
efêmera gota de água no oceano, de uma quase invisível semente de mostarda
perdida no meio de uma floresta inóspita.
“Estamos sempre cheios de confiança...”
Como cristãos, porém,
fazemos parte de uma estranha caravana que percorre os caminhos da história
guiada por convicções tecnicamente improváveis: um punhado de escravos é capaz
de vencer o poderoso exército do Faraó, conquistar uma terra livre e elaborar
os princípios de uma sociedade solidária; mulheres estéreis, idosas e virgens engravidam e geram
novidades; crucificados ressuscitam e pedras rejeitadas se tornam elementos
fundamentais de uma nova construção...
Partindo de sua
própria experiência e escrevendo sobre a esperança da ressurreição, São Paulo
diz que vivemos nesse momento da história como se estivéssemos fora de casa,
como peregrinos que buscam outra morada, outra cidade. Mas Paulo insiste que
neste êxodo permanente estamos cheios de confiança, mesmo que, como cantava
Elis Regina, “a esperança dança na corda bamba, de sombrinha, e em cada passo
dessa linha pode se machucar.”
A postura
cristã se distancia tanto do delírio de quem que arde de paixão por um mundo
fictício e ilusório depois da morte como do conformismo medroso de quem apara
as arestas do Evangelho e o acomoda a um mundo sem coração. Nossa confiança se
inspira na sabedoria dos/as semeadores/as que sabem que a semente não é a
colheita, mas a lança generosamente na terra, certos de que dará fruto, nem que
seja temporão.
“Mas, depois de semeada, cresce e se
torna maior que todas as outras hortaliças...”
Sempre
acreditei – e continuo acreditando! – que é muito importante ter um projeto
pessoal de vida, um projeto familiar ou comunitário bem claro, um projeto
orientador da caminhada do movimento ou da comunidade eclesial, fiel ao
Evangelho e em vista da conversão pessoal e da transformação do mundo. Mas também
estou consciente de que é falta de realismo contar apenas como nossas forças, confiar
apenas nas nossas estratégias, esquecer a gratuidade e fechar-se às surpresas
da vida.
Na inadiável
tarefa de tornarmo-nos semelhantes a Jesus Cristo e fazer com que o nosso mundo
seja pelo menos uma pálida imagem da família de Deus, é absolutamente indispensável
cultivar e manter a abertura e a acolhida ao outro e ao que está por vir. Precisamos manter uma luta sem tréguas contra
todas as tendências de fechamento medroso e de controle arrogante e dominador
dos processos históricos e pessoas vivas. O medo e o controle asfixiam e matam
as sementes.
“A terra produz
o fruto por si mesma”, nos ensina Jesus, num dos contos populares que recolheu
na zona rural da Palestina e nos oferece hoje. “A semente vai brotando e
crescendo, mas o homem não sabe como isso acontece.” É possível que um processo
de mudança se mostre verdadeiramente profundo quando nos leva à consciência dos
próprios condicionamentos e limites, abrindo-nos a contribuições outras,
iluminando-nos e fecundando-nos pela experiência da gratuidade.
“Caminhamos pela fé e não pela visão...”
Mas numa
cultura que afirma e propaga a majestade
do indivíduo, o sonho de relações de respeito e de colaboração, de uma
comunidade de irmãos e irmãs igualmente dignos, não parece um louco delírio?
Diante do peso e da frieza invernal das instituições eclesiásticas, as CEB’s
não são apenas flores indefesas? Frente ao poder exorbitante dos G-8, G-20 e
outras organizações do gênero, os movimentos sociais não são apenas frágeis
Davis frente aos arrogantes Golias?
Efetivamente, o
poder seduz com sua aparente beleza. e ofusca com seu impuro brilho. E nós acabamos
pensando que sem poder não há salvação,
esquecemos que o caminho que acesso à verdadeira liberdade nos foi aberto por
um indefeso carpinteiro galileu. Precisamos nos libertar da ilusão da grandeza
e colocar no centro da nossa fé a memória da coragem dos escravos frente ao
faraó, a memória da vida de Jesus de Nazaré, o mistério escondido na semente de
mostarda.
“Eu acredito
que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor.” O Reino
de Deus não brilhará apenas quando chegar o hipotético dia em que não haverá
mais compradores de justiça, a liberdade não será uma ilusão, a verdade será a
fonte das notícias e poderemos crer nas pessoas outra vez. O Reino de Deus não é
um particípio passado mas um gerúndio e
um futuro: ele “vai sendo” nas milhares de ações de compaixão solidária e de
afirmação da dignidade do outro.
“A terra produz o fruto por si mesma...”
Alcançamos a
desejada e difícil maturidade na fé quando conseguimos conjugar adequadamente paciência e urgência históricas. Os processos humanos e sociais também têm e
seu ritmo de maturação. Conhecê-los sem controlá-los, e remover as forças que podem
representar obstáculos é a arte das artes. As frutas costumam perder sabor
quando aceleramos seu processo de maturação natural. Conhecer o tempo de Deus é
uma arte tão difícil quanto necessária.
Mas eu me
pergunto também se hoje o risco não está no outro extremo, se a tentação mais
forte não é deixar passar o tempo propício da maturação e da colheita, se não
estamos fechando os olhos e os ouvidos a Deus, que pede com urgência que
sejamos pessoas mais solidárias, Igrejas mais comunitárias e sociedade mais
igualitária. “Quando as espigas estão maduras o homem corta com a foice, porque
o tempo da colheita chegou.” Se não faz isso, tudo corre o risco de se perder.
Jesus de Nazaré, semeador da Palavra que liberta e nos
faz libertadores/as, ajuda-nos a compreender que a fé é um dinamismo que nos
abre à escuta de Deus, que cria espaços de silêncio no qual sua Palavra é acolhida
e hospedada. Frente às dores e esperanças que habitam o mundo, dá-nos o senso
profundo da peciência e da urgência que exercitaste. Faz com que essa escuta
abra em nós espaços de relação com os outros, fundamente a convivência de igual
para igual, ajude-nos a sair das próprias certezas e nos comprometa numa
dinâmica de comunhão e de solidariedade no interior da qual nasce, cresce e e
frutifica o sonho do bem comum da humanidade.Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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