“Viver é conhecer a marcha e seguir em frente.”
(Jó 38,1-11; Sl 106/107; 2Cor 5,4-17; Mc 4,35-41)
Vida é movimento, caminhada. A estabilidade absoluta e o
sedentarismo é morte. Estamos em travessia, e nossa condição no mundo é de
êxodo permanente. Como cristãos, encarnamo-nos onde estamos e engajamos-nos nas
lutas dos homens e mulheres, sentimo-nos atraídos a estabelecer aqui nossa
morada, mas, ao mesmo tempo, descobrimo-nos estrangeiros/as, cidadãos de uma
sociedade que ainda está para ser construída. Assim também a Igreja: mesmo que
as forças da inércia e o peso de 20 séculos de história a puxem para trás e
para baixo, sua vocação original é lançar-se para a frente, empreender uma
infindável travessia, engajar-se num permanente e solidário diálogo com os homens
e mulheres de cada época, ir ao encontro daqueles/as que estão longe, colaborar
nas grandes lutas que a humanidade está travando hoje. E mesmo quuando isso
comporta riscos e ameaças.
“Passemos
para a outra margem.”
São muitas as nossas travessias. E diversas. Há o necessário caminho
que leva do eu fechado e indiferente
ao nós aberto e acolhedor. É uma
travessia tão necessária quanto exigente, uma páscoa que entra em confronto com o moderno e resistente mito do
individualismo do qual todos/as bebemos. Este mito nos faz crer que tudo é
apenas uma questão de esforço e mérito pessoal, e que o outro é o nosso inferno e a comunidade é a nossa máxima penitência.
Atravessar é preciso!
E há a travessia que nos leva da estabilidade de um conhecimento exaustivo e seguro, de
uma doutrina que pretende explicar tudo, de uma ciência que imagina desvendar
todos os mistérios, de uma ideologia que oferece programas e estratégias para
todos os desafios, à reverente
consciência de que todas as coisas estão envoltas em mistério.
E , quanto mais
avançamos nessa passagem, maior é o espanto diante de um mundo que não cabe na
estreiteza asfixiante dos nossos conceitos. Avançar é preciso!
E há também a travessia urgente de
uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade
inclusiva e solidária; de uma cultura econômica que só sabe pensar em
termos de desenvolvimento e de exploração dos recursos naturais a uma cultura
da hospitalidade, capaz de promover e proteger a biodiversidade; de uma Igreja
que deseja ter respostas para todas as perguntas a uma Igreja que aceita o
desafio de compartilhar as perguntas e buscas que acompanham a humanidade. Recriar é preciso!
“Veio,
então, uma ventania tão forte que as ondas se jogavam dentro do barco.”
Mas as travessias não costumam ser muito tranqüilas, e os muros normalmente
não caem ao toque das trombetas dos nossos instáveis desejos. Ao lado do
movimento de expansão que dá vida a todo o universo há também, em todos os
corpos e eventos, uma tendência à inércia, à estabilidade. Existem ventos contrários à mudança, forças que
nos convidam a permanecer em casa, tentações que nos ensinam a não trocar um
mal que conhecemos por um bem hipotético e desconhecido.
Na travessia do deserto, diante da falta de água e de alimento,
frente à ausência de caminhos claros e a uma liberdade com contornos
indefinidos, as tribos de Israel se esquecem rapidamente da dureza da opressão
e suspiram pelas cebolas do Egito. E essa experiência se tornou um paradigma
das dificuldades inerentes a todos os processos de mudança. Por comodidade e por
interesse, acabamos abdicando dos nossos sonhos de águia e fazendo as pazes com
o galinheiro...
“Por
que sois tão medrosos?”
É triste quando, na própria Igreja, imaginada por Jesus para
estimular e acompanhar a humanidade em suas necessárias travessias, o medo
paira como sombra que preenche todos os espaços. É perigoso quando,
assombrados, os teólogos e teólogas desistem de publicar suas reflexões. É
triste e desalentador quando bispos e padres, inseguros ou carreiristas, deixam
de manifestar discordância e apresentar propostas para as mudanças que urgem. É
desolador quando os leigos e leigas são tratados como menores, eternamente
tutelados e empurrados à margem pelas pressões e pelo medo.
Aquilo que é desconhecido parece fugir ao nosso controle e nos
amedronta. A experiência de controlar as situações ou de estar sob controle nos
dá a sensação de segurança e de verdade. E o medo acaba sendo a mãe das
submissões que limitam, das dominações que esterilizam, das ideologias que
matam. Ele está na raiz do estado de guerra em que vivem as sociedades, e
promovê-lo é uma estratégia que serve aos dominadores. No coração de algumas
liturgias e por trás de muitas mensagens políticas está a intenção de criar
medo e, assim, manter a dominação.
“Ainda
não tendes fé?”
Javé responde a Jó do meio da tempestade, e é na travessia do
deserto que o povo de Israel experimenta a companhia de Deus e faz aliança com
ele. Mas os discípulos desconhecem ou temem a travessia. Depois de terem ouvido
da boca de Jesus as parábolas que sublinham o dinamismo escondido do Reino de
Deus, eles se mostram desconcertados e temem profundamente a travessia que os
levaria ao encontro com os estrangeiros. Tudo parece escuro, tanto dentro como
fora deles.
O medo faz com que eles se esqueçam do objetivo da travessia. E
Jesus diz claramente que na raiz do medo diante do mar agitado, está a falta de
fé. É falta de fé temer o contato e o diálogo com quem é diferente e pensa
diferente. É falta de fé esperar que Deus elimine magicamente as dificuldades
da travessia da vida ou nos leve imediatamente à outra margem. Nasce da falta
de fé a lamentação de que Deus estaria dormindo e não se importaria com as nossas
dificuldades.
Eu me pergunto a quem Jesus se dirige quando fala “Cale-se!
Acalme-se!” Por um lado, parece que ele se dirige ao mar e ao vento que, aos
olhos dos discípulos, pareciam descontrolados e ameaçadores. Por outro lado,
parece que Jesus se dirige aos próprios discípulos. Mais que o mar, eles é que
estão agitados e precisam ser acalmados. Estão aterrorizados diante da
necessidade de passar “para o outro lado do mar”, da necessidade de mudar de
idéia, de ideologia, de projeto de vida.
“Quem
é este, a quem obedecem até o vento e o mar?”
Enquanto os discípulos manifestam pavor e desespero, Jesus se mostra
tranquilo e dorme despreocupadamente. Quando o povo tem necessidade, Jesus
realiza sinais da chegada do Reino. Quando os discípulos enfrentam perigos,
está com eles. Não é o vento que desperta Jesus do seu aparente sono; é o grito
dos discípulos apavorados. Será que ele não se importa com o risco que eles
correm? Será que ele não vê que o diálogo intereligioso representa um perigo
para a Igreja?
É importante reconhecer que a travessia é necessária e desejada por
Deus. E ele nos acompanha em todas as passagens/páscoas. É verdade que, às
vezes, ele parece dormir e pouco se importar com os riscos que enfrentamos, mas
o que ele não quer é tomar o nosso lugar nessa passagem. Ele confia em nós, e a
única maneira de chegarmos à maturidade que liberta é assumir nossa
responsabilidade. O salmista convida: “Agradeçamos ao Senhor... Ele transformou
a tempestade em brisa leve...”
“E ele os guiou ao porto desejado...”
Jesus de Nazaré, peregrino
e companheiro de quem persevera nas travessias que a vida pede, permanece
desperto neste barco agitado no qual se transformou tua Igreja. Acorda e fala
firme e forte para nos dizer de novo que uma Igreja que põe a mão no arado e só
quer olhar para o passado não é digna do teu Reino! Desperta em nós a certeza consoladora
de que é o próprio Pai quem nos guia ao porto desejado mas, que é teu amor que
nos impulsiona a avançar, a não olhar para trás, a não cair na armadilha do
medo. Sustenta-nos em todas as travessias, pois se permanecermos do lado de cá
– fechados/as em nós mesmos/as, submissos/as aos poderes de plantão, seguros/as
em nossas ideologias, encaracolados/as em nossas doutrina, altivos/as em nossos
pódiuns – seguramente afundaremos. Muda a tempestade em bonança, mas também
converte nosso medo em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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