segunda-feira, 25 de junho de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (8)

Glória a Allah e ao seu profeta Maomé!



Allah, o nome sagrado dos mussulmanos

Chegamos em Smarinda no 13 de março. Esta cidade está localizada na costa oriental da ilha de Kalimantan, e é a capital da província omônima. É uma das maiores cidades da ilha, e sua população está em torno de 600.000 habitantes. Desenvolveu-se em torno do importante porto fluvial, sustentada historicamente pela extração e exportação de madeira e, hoje, pela exportação de carão mineral.
A presença dos Missionários da Sagrada Família nesta cidade remonata à primeira metade do século XX, sustentada pelos missionários holandeses e alemães, que ousaram enfrentar o desafio de anunciar Jesus Cristo e implantar a Igreja num território controlado pelo islamismo. Quem lê a história sabe que o islamismo também é relativamente recente na Indonésia. A religião do profeta Maomé chegou no arquipélago que compõe este país no século XVII, um pouco depois da chegada do cristianismo no continente hoje conhecido como latino-americano. Até então, neste conjunto de 12.000 ilhas predominavam o induísmo, o budismo e as religiões tribais, ditas animistas.
Muitas vezes me perguntei como foi possível transformar essa gente – que não pertence etnicamente ao povo árabe e que já tinha sua religião – em um povo quase totalmente mussulmano, numericamente a maior população mussulmana do planeta. Os principais agentes desta transformação foram os comerciantes árabes. Quando os sultões locais estavam em luta entre si e buscavam apoio estratégico nos comerciantes de procedência árabe, estes o asseguravam à condição de que estes líderes locais se convertessem ao islamismo.
Isso pode nos parecer estranho, mas não foram muito diferentes os caminhos trilhados pelo cristianismo nas Américas... A diferença é que as metrópoles ibéricas impuseram a adesão ao cristianismo casada com a dominação colonial, enquanto que aqui a dominação foi econômica, e nunca chegou a ser política. Os próprios colonizadores holandeses, de origem cristã reformada, mantiveram durante três séculos o domínio econômico e político sobre a Indonésia e, apesar do fanatismo que caracterizava seu calvinismo, não moveram um dedo para desislamizar ou cristianizar este povo.
Por isso,o visitante que hoje circula pela Indonésia, exceção feita a algumas ilhas (como é o caso de Flores), vê por todo lado mesquitas e mais mesquitas. Umas pequenas e simples, outras imponentes e luxuosas, as mesquitas dominam de forma absoluta a paisagem, tanto no espaço urbano como na zona rural. Não é raro encontrar mais de uma na mesma quadra, ou a menos de 100 mestros uma da outra (como ocorre com o acúmulo de templos católicos em Roma...).
O monumental centro islamico de Samarinda
Esta onipresença quase invasiva da fé islâmica se torna mais palpável ainda no hábito que impõe às mulheres e nos infinitos alto-falantes que, seis vezes por dia, das 4:00 da manhã às 10:00 da noite, convidam e guiam os fiéis na oração, indiferentes à perturbação dos estrangeiros que, como nós, reinvindicam respeito ao direito de trabalhar e descansar sem serem perturbados. Do início ao fim da viagem, meu colega não cansava de protestar contra isso, assim como contra o uso de véu imposto às mulheres (que também não podem entrar nas mesquitas, território exclusivo dos homens...)
Assim, uma das primeiras coisas que chamam a atenção do visitante em Samarinda, junto com o movimentado porto e a congestionada ponte que dá acesso à cidade,  é o imenso e monumental centro islâmico, uma mesquita como jamais havia visto. Perto dela, nossas grandes igrejas parecem minúsculos oratórios. Refiro-me à própria catedral e à paróquia São Lucas, a primeira residência MSF que visitamos em Samarinda, cuja igreja matriz tem lugar para 800 pessoas. Lá residem e trabalham três coirmãos: um vem de Java, outro de Flores, e o terceiro é um juniorista de Madagascar, que inicia aqui seu estágio pastoral de dois anos. Juntos, animam a paróquia, que conta com aproximadamente 3.000 fiéis, distribuídos em 16 comunidades, além da pastoral da juventude em âmbito diocesano.
Igreja paroquial S. Lucas, Samarinda
O pároco e superior da comunidade local de Samarinda é o Pe. Felix Sumarjono, 43 anos, natural de Jogyakarta, Java, que escolheu a Província de Kalimantan por convicção missionária. O vigário paroquial e responsável diocesano pela pastoral da juventude é o Pe. Yohanes Kopong Tuan, 34 anos, originário de Flores. No final dos anos 90, como jovem juniorista, Pe. Kopong foi um dos primeiros indonesianos a fazer seu estágio pastoral em Madagascar, do qual guarda boas recordações.
Esta é a razão pela qual o Fr. Jean Christian Razafiarison Rija, malgache de 31 anos, foi acolhido por ele em Samarianda,  e recebeu dele as primeiras lições de língua e de cultura indonesiana. Com seu colega e conterrâneo Fr. David, eles permanecerão em Kalimantan durante dois anos, numa interessante e desafiadora iniciativa de integração interprovincial e intercultural que vem de alguns anos e foi retomada neste ano. Se isso é exigente para uma pessoa adulta num mesmo país, imagina para jovens ainda na etapa inicial de formação e num país tão diferente...
Em Samarinda temos também um dos cinco bispos MSF da Indonésia, dois dos quais já eméritos. Refiro-me a Dom Florentinus Sului, à frente da Arquidiocese de Samarinda desde 1993. Ele foi ordenado bispo aos 45 anos de idade e 20 de presbítero. Visitamos sua residência e fiquei pasmo: é um verdadeiro e enorme palácio como jamais vi em minha vida, menos ainda em se tratando de bispos. Só o refeitório e sala anexa (para aumentá-lo quando aumenta o número de comensais) me pareceram maiores que o bispado de Santo Angelo, de Passo Fundo ou de Ipameri... E nem quero falar dos hall’s, das salas de trabalho e recepção do bispo, da capela interna para mais de 100 pessoas, das inúmeras casas anexas, da equipe de serviço...
Palacio espiscopal: a vontade é virar as costas e nem olhar...
Não consigo aceitar coisas como essa, por mais que tentem me convencer, como tentou fazer meu colega, de que se trata de demonstrar a seriedade e a solidez da da Igreja católica numa linguagem que o povo daqui aprecia. E onde fica o Evangelho, meu Deus?! O que eu vi simplesmente grita aos ouvidos de quem quiser ouvir: o bispo é um príncipe, e ponto final. E eu que pensava que nestas bandas o cristianismo, que chegou há pouco mais de 100 anos, pudesse mostrar um rosto diferente...
Claro que pessoalmente o bispo se nos mostrou muito acolhedor e fraterno. Chegou a nos presentear um colar típico da sua etnia (dayak), sinal de acolhida na intimidade do seu povo. Ele é uma pessoinha simpática, de pouco mais de 1,50 m de altura, que veste as coloridas roupas do seu povo. Dirige uma diocese que conta com aproximadamente 108.000 católicos, um apreciável percentual (para os padrões indonesianos) de 10% da população da região. São 25 paróquias (das quais 6 estão sob os cuidados dos MSF), cuja animação pastoral é feita por 38 padres, 14 dos quais são diocesanos.
Segundo Dom Florentinus, os principais desafios que a diocese enfrenta são: a carência numérica de padres e religiosos/as; a falta de agentes especializados, inclusive para a administração; a formação de catequistas e professores de ensino religioso (estes últimos, para atuar nas escolas públicas). Para enfrentar este último desafio, a diocese acaba de inaugurar um centro de formação de nível superior, pois é este o nível exigido pelo estado.
Casa grande, bispo pequeno...
Com o bispo moram três padres: um diocesano, seu secretário pessoal; um verbita, ecônomo da diocese; um MSF, o Pe. Gabriel Bong Njungun, 74 anos, que atuou muitos anos como ecônomo diocesano, sofreu um derrame, mas continua convivendo com o grupo. Aqui está um outro elemento que me entriga: pelo pouco que vi, além dos palácios nos quais residem, os bispos daqui têm ao seu redor um grupo de padres totalmente liberados para alguns trabalhos: ecônomos, secretários, motoristas... Aqui ninguém conhece a figura do coordenador pastoral, nem a prática da visita pastoral. Ouvi estarrecido que alguns bispos (inclusive nossos) às vezes celebram a missa dominical nas sua capelas privadas... E isso tudo em meio a uma população majoritariamente pobre e mussulmana e de uma Igreja que carece de padres...

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