Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor
aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor.
Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que ensaia uma
reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.
3)
O
horizonte libertador da pedagoga “cheia de graça” (1)
Na
análise do significado do “sinal” de Caná, acenamos, de passagem, para o modo
de ser e de agir pedagógicos de Miriam de Nazaré. Importa, agora, aprofundar e
ampliar esta perspectiva pedagógica da mãe de Jesus, estendendo seu horizonte
para outras situações referidas pelos evangelistas. Somos cientes das
dificuldades hermenêuticas deste intento, uma vez que a dimensão educativa e
pedagógica presente nas atitudes e nos ensinamentos de Miriam de Nazaré está
praticamente ausente nos milhares de obras que já se escreveram sobre
mariologia. Daí, o caráter ensaístico do presente tópico e, ao mesmo tempo, a justificativa
para inseri-lo num texto sobre educação e feminismo e a partir de um enfoque
histórico e filosófico da educação. Não pretendemos desmerecer os clássicos
tratados de pedagogia; pedimos, tão-somente, passagem para novas tematizações.
Cabe observar, ainda e preliminarmente, que utilizamos as categorias “educação”
e “pedagogia” em seu sentido amplo de formação e orientação do ser humano no
seu permanente desabrochar biopsicossocial.
Partindo do pressuposto da
indissociável relação entre mariologia e cristologia, iniciamos este tópico com
algumas observações sobre a educação recebida por Jesus em seus anos vividos em
Nazaré, certos de que o papel educativo executado por Miriam, ao lado do seu
esposo José, plasmou a formação e a personalidade de seu filho Jesus. A seguir,
daremos ênfase para a dimensão auto-educativa da pedagogia miriana e, por
último, buscaremos extrair do Magnificat a riqueza dos ensinamentos
libertadores da mestra de Nazaré.
3.1 Influências externas e
internas que moldaram os anos de formação de Jesus de Nazaré[i].
Vista parcial de Nazaré hoje |
Do
ponto de vista histórico-biográfico, no sentido moderno de biografia, quase
nada pode ser referido sobre os anos de formação de Jesus. Os cerca de trinta e
dois anos anteriores ao seu ministério público são e continuarão sendo “anos
obscuros” para a historiografia moderna. As únicas armas hermenêuticas
disponíveis são as da analogia histórica e as generalizações extraídas do
contexto geográfico, histórico e temporal e aplicadas às condições familiares e
individuais dos habitantes de um determinado lugar.
A
despeito das evidentes limitações em termos de fontes históricas confiáveis,
podemos pressupor que Jesus, como criança, adolescente e jovem, tenha passado
pelas fases normais do desenvolvimento físico, sexual, intelectual, social e
religioso, bem como do amadurecimento natural do ser humano, assistido e
orientado por seus pais José e Miriam. Alguns textos neotestamentários dão
suporte a esta pressuposição e generalização, pois, lemos, em Lc 2,40: “E o
menino (em grego: paidíon) crescia, tornava-se robusto, enchia-se de
sabedoria” e em Lc 2,52: “E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça,
diante de Deus e dos homens”. Por seu turno, o autor da epístola aos Hebreus
observou: “Convinha, por isso, que (Jesus) em tudo se tornasse semelhante aos
irmãos” (Hb 2,17; cf. 4,15: “...pois ele foi provado em tudo como nós, com
exceção do pecado).
Fora
destes informes gerais, é inútil pretender obter dados precisos, p. ex., sobre
a problemática sexual, a formação da auto-identidade, o Q.I. ou sobre
particularidades físicas, psicológicas, artísticas ou intelectuais de Jesus.
Vale a máxima filosófica: “O que se afirma gratuitamente, pode ser
gratuitamente refutado”. Em termos de história da educação, porém, é legítimo
nos interrogar, à luz da analogia e generalização histórica, sobre as
influências externas (línguas que aprendeu, tipo de educação que recebeu,
ofício que exerceu e condição socioeconômica em que viveu) e internas (relações
familiares, estado civil etc.) que marcaram seu crescimento e desenvolvimento e
sua formação humana.
Quanto
às línguas
que Jesus falava, é preciso ter em mente que os idiomas usados na
Palestina no tempo de Jesus eram o latim, o grego, o hebraico e o aramaico. Não
há razão para se pensar que Jesus falou, e muito menos leu, o latim, já que ele
era empregado quase exclusivamente por funcionários romanos. Seu contato e
domínio do grego são admissíveis, tendo em vista as peregrinações regulares com
sua família à cidade helenizada de Jerusalém e a necessidade de um conhecimento
mínimo deste idioma em sua oficina de carpintaria para fazer negócios e passar
recibos. O hábito de Jesus de pregar nas sinagogas e debater com escribas e
fariseus sobre questões do Antigo Testamento, na sua vida pública, permite deduzir
que devia ter alguma noção deste idioma bíblico. Como Rabi que pregava a
camponeses judeus da Galiléia, da Samaria e da Judéia, cuja língua usual era o
aramaico, é certo que seus ensinamentos foram pronunciados neste idioma. São
muitos os traços aramaicos que aparecem explícitos nos evangelhos gregos.
Quanto
à questão se Jesus sabia ler ou escrever, é razoável supor que a formação
religiosa de Jesus foi intensa e profunda, incluindo o aprendizado da leitura
do hebraico bíblico. Além dos seus pais, o mais provável canal de instrução
seria a sinagoga de Nazaré, que poderia servir como uma espécie de “escola
elementar” religiosa. A prova indireta de Jo 7,15: “Como entende ele de letras
sem ter estudado?” se, de um lado, insinua que Jesus era alfabetizado, constatação
corroborada com sua comprovada habilidade em debater os textos das Escrituras e
suas interpretações com fariseus devotos, escribas profissionais e autoridades,
tanto nas sinagogas como no Templo de Jerusalém, por outro lado, parece
insinuar que Jesus não freqüentou nenhuma escola formal. Aliás, o termo
“escola” (em grego: scholè) nunca ocorre no Novo Testamento, à exceção
da “Escola de Tiranos” pagã que Paulo utilizou em Éfeso, onde se entretinha com
seus discípulos diariamente pelo espaço de dois anos cf. At 19,9-10).
Material
rabínico dos séculos II ao V d.C. (Mixná, Talmude Palestino e Babilônico) dá
conta de um amplo sistema educacional judaico existente na Palestina. É
confiável aplicar retroativamente às décadas iniciais da era cristã este material
de séculos diferentes? Admitindo-se a correção histórica desta retroatividade
homogeneizadora, já no século I d.C. a maioria das crianças judias recebia
escolarização. Em todas as cidades maiores, e mesmo em povoados menores,
existiam as chamadas “beth ha-sepher” (“casa do livro”). A escrita era
uma atividade profissional nem sempre proporcionada concomitantemente à
aprendizagem da leitura. Aos doze ou treze anos, o menino terminava seus
estudos na escola. A alguns poucos alunos privilegiados e mais brilhantes
proporcionava-se uma educação mais avançada, na “Beth ha-midrash”, onde
se dedicavam ao estudo da Torá com mestres da Lei. Estas escolas eram raras,
não existindo um sistema educacional formal e obrigatório após os doze ou treze
anos.
O
Talmude estabeleceu normas para o pagamento dos professores para que também as
crianças pobres tivessem acesso à escola. Esta geralmente estava anexa à
sinagoga, sendo a instrução ministrada em salas ou construções contíguas, ou,
em certos casos, no pátio da casa do profesor.
Mesmo
não admitindo a plena historicidade destas informações da literatura rabínica
posterior, podemos deduzir a formação e
instrução não apenas profissional e religiosa, mas também escolar, a partir do
tipo de ministério público exercido por Jesus. Estas extrapolações mostram
que a vida pública de Jesus estava centrada na religião judaica. Todos os
evangelistas o apresentam participando de debates eruditos sobre as Escrituras,
que lhe foi conferido o título de “Rabi” (mestre), e que é comum nos evangelhos
vê-lo pregando e ensinando nas sinagogas e no Templo. O impacto produzido nos ouvintes ou interlocutores demonstra que o
nível de instrução de Jesus era elevado, o que não teria sido o caso se fosse
analfabeto.
E
qual a formação profissional de Jesus? No evangelho de Marcos, os
judeus de Nazaré fazem uma pergunta retórica sobre Jesus, o menino criado na
cidade e que agora, adulto, pretende lhes dar lições na sua própria sinagoga:
“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Em nenhum outro lugar do
Novo Testamento é feita qualquer referência expressa a respeito da profissão
exercida por Jesus de Nazaré. O evangelista Mateus reformula a pergunta: “Não é
este o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55), transferindo a profissão para o seu
pai José. Lucas, por sua vez, modifica ainda mais o texto de Marcos: “Não é
este o filho de José?” (Lc 4,22). Em suma, a profissão de carpinteiro (em
grego: téktôn), atribuída a Jesus ocorre apenas num meio versículo de
Marcos. Não existe, porém, razão para pensar que esta indicação seja
historicamente inexata. De acordo com os
costumes da época, Jesus deve ter aprendido a profissão de carpinteiro na
oficina do próprio pai José[ii].
A
situação
sócio-econômica da família de Nazaré, ainda que não possa ser identificada
com a relativa segurança econômica de comerciantes, artesãos de cidades ou de
lavradores independentes que possuíam alguma extensão de terra, certamente era
melhor que a dos trabalhadores diaristas, dos servos contratados, dos artesãos
ambulantes, dos lavradores sem-terra e, sobretudo, dos escravos. Embora modesto, o padrão de vida de Jesus,
Maria e José era melhor que o de muitos habitantes de Nazaré e de outras
cidades ou povoados da Galiléia[iii].
Os conhecimentos gerais que Jesus demonstra possuir em seus ensinamentos, nas
parábolas do ministério público, são uma prova indireta que adquiriu uma sólida
formação na área da agricultura, do pastoreio, do comércio, do artesanato, sem
falar da economia doméstica, cuja aprendizagem assimilou na companhia e no exemplo
de sua mãe.
Ao
lado das influências externas nos anos de formação de Jesus, tais como: língua,
instrução, profissão e realidade sócio-econômica, há também condições internas,
como: laços familiares, estado civil e sua condição de leigo, que contribuíram
para moldar a personalidade e a identidade de Jesus no ambiente de Nazaré.
Quanto
à situação
familiar, já acenamos aos dados dos evangelhos concernentes aos pais,
aos irmãos e irmãs de Jesus. Assim, tomando em consideração os aspectos
puramente filológicos e redacionais de Mc 6,3: “Não é este o carpinteiro, o
filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão
aqui entre nós?”, uma mente aberta aceita
tranqüilamente a opinião de que os irmãos e as irmãs de Jesus referidas no
versículo acima realmente eram irmãos legítimos e biológicos, e não primos
(como afirmou por primeiro Jerônimo, século IV d.C.) ou meios-irmãos (segundo a
opinião de Hegesipo e do livro apócrifo Proto-evangelho de Tiago, ambos
do século II d.C.).
Concernente
ao estado civil de Jesus, não podemos ter certeza absoluta se foi casado ou não. O total silêncio sobre
esposa e filhos em contextos onde figuram seus diversos parentes permite
deduzir, como opinião mais provável, que ele nunca se casou. Sua opção pelo
celibato deve ser interpretada como o resultado de sua missão profética e
religosa.
Referente
à condição de Jesus como leigo, cabe dizer que nasceu, exerceu seu ministério e
morreu como Galileu leigo. Não existe
tradição histórica confiável, tanto nos sinóticos como no quarto evangelho, que
afirme ter sido ele de linhagem levítica ou sacerdotal. A própria epístola
aos Hebreus, redigida por um cristão de alta erudição no final do século I
d.C., interpretada erroneamente por cristãos e teólogos apresentando Jesus como
sumo sacerdote, afirma explicitamente: “Na verdade, contudo, se (Jesus)
estivesse na terra, não seria nem mesmo sacerdote” (Hb 8,4). Para o autor da
carta aos Hebreus, Jesus se torna sacerdotes somente por ter passado pelo
sacrifício da cruz. Durante sua vida terrena, permaneceu leigo.
Bertilo Brod
[i] Para o presente tópico ,
seguimos, em grande
parte , as pegadas
abertas por
John MEIER, op. cit., p. 251-365 e respectivas notas .
[ii] O sentido
clássico de téktôn talvez correspondesse melhor ,
na linguagem moderna ,
a “marceneiro ” do que
a “carpinteiro ”, já
que este
último recebeu um
sentido mais
restrito, como sendo o trabalhador que
constrói ou repara
estruturas de madeira
ou suas
partes componentes ,
ao passo que
o ofício de marceneiro
englobava a lida com
pedras , chofre
ou marfim ,
e a fabricação de arados ,
cangas de animais ,
além de peças
de mobiliário, a construção de casas
e a preparação do madeiramento
para tal fim .
[iii] Para um estudo da
determinância das condições sociais , políticas
e religiosas da Galiléia na formação de
Jesus e do seu movimento ,
veja-se: FREYNE, Sean. A Galiléia, Jesus e os evangelhos :
enfoques literários
e investigações históricas. São Paulo: Loyola, 1996.
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