sábado, 30 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (8)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que ensaia uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.

3)      O horizonte libertador da pedagoga “cheia de graça” (1)

Na análise do significado do “sinal” de Caná, acenamos, de passagem, para o modo de ser e de agir pedagógicos de Miriam de Nazaré. Importa, agora, aprofundar e ampliar esta perspectiva pedagógica da mãe de Jesus, estendendo seu horizonte para outras situações referidas pelos evangelistas. Somos cientes das dificuldades hermenêuticas deste intento, uma vez que a dimensão educativa e pedagógica presente nas atitudes e nos ensinamentos de Miriam de Nazaré está praticamente ausente nos milhares de obras que já se escreveram sobre mariologia. Daí, o caráter ensaístico do presente tópico e, ao mesmo tempo, a justificativa para inseri-lo num texto sobre educação e feminismo e a partir de um enfoque histórico e filosófico da educação. Não pretendemos desmerecer os clássicos tratados de pedagogia; pedimos, tão-somente, passagem para novas tematizações. Cabe observar, ainda e preliminarmente, que utilizamos as categorias “educação” e “pedagogia” em seu sentido amplo de formação e orientação do ser humano no seu permanente desabrochar biopsicossocial.

Partindo do pressuposto da indissociável relação entre mariologia e cristologia, iniciamos este tópico com algumas observações sobre a educação recebida por Jesus em seus anos vividos em Nazaré, certos de que o papel educativo executado por Miriam, ao lado do seu esposo José, plasmou a formação e a personalidade de seu filho Jesus. A seguir, daremos ênfase para a dimensão auto-educativa da pedagogia miriana e, por último, buscaremos extrair do Magnificat a riqueza dos ensinamentos libertadores da mestra de Nazaré.

3.1    Influências externas e internas que moldaram os anos de formação de Jesus de Nazaré[i].

Vista parcial de Nazaré hoje
Do ponto de vista histórico-biográfico, no sentido moderno de biografia, quase nada pode ser referido sobre os anos de formação de Jesus. Os cerca de trinta e dois anos anteriores ao seu ministério público são e continuarão sendo “anos obscuros” para a historiografia moderna. As únicas armas hermenêuticas disponíveis são as da analogia histórica e as generalizações extraídas do contexto geográfico, histórico e temporal e aplicadas às condições familiares e individuais dos habitantes de um determinado lugar.

A despeito das evidentes limitações em termos de fontes históricas confiáveis, podemos pressupor que Jesus, como criança, adolescente e jovem, tenha passado pelas fases normais do desenvolvimento físico, sexual, intelectual, social e religioso, bem como do amadurecimento natural do ser humano, assistido e orientado por seus pais José e Miriam. Alguns textos neotestamentários dão suporte a esta pressuposição e generalização, pois, lemos, em Lc 2,40: “E o menino (em grego: paidíon) crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria” e em Lc 2,52: “E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens”. Por seu turno, o autor da epístola aos Hebreus observou: “Convinha, por isso, que (Jesus) em tudo se tornasse semelhante aos irmãos” (Hb 2,17; cf. 4,15: “...pois ele foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado).
Fora destes informes gerais, é inútil pretender obter dados precisos, p. ex., sobre a problemática sexual, a formação da auto-identidade, o Q.I. ou sobre particularidades físicas, psicológicas, artísticas ou intelectuais de Jesus. Vale a máxima filosófica: “O que se afirma gratuitamente, pode ser gratuitamente refutado”. Em termos de história da educação, porém, é legítimo nos interrogar, à luz da analogia e generalização histórica, sobre as influências externas (línguas que aprendeu, tipo de educação que recebeu, ofício que exerceu e condição socioeconômica em que viveu) e internas (relações familiares, estado civil etc.) que marcaram seu crescimento e desenvolvimento e sua formação humana.

Quanto às línguas que Jesus falava, é preciso ter em mente que os idiomas usados na Palestina no tempo de Jesus eram o latim, o grego, o hebraico e o aramaico. Não há razão para se pensar que Jesus falou, e muito menos leu, o latim, já que ele era empregado quase exclusivamente por funcionários romanos. Seu contato e domínio do grego são admissíveis, tendo em vista as peregrinações regulares com sua família à cidade helenizada de Jerusalém e a necessidade de um conhecimento mínimo deste idioma em sua oficina de carpintaria para fazer negócios e passar recibos. O hábito de Jesus de pregar nas sinagogas e debater com escribas e fariseus sobre questões do Antigo Testamento, na sua vida pública, permite deduzir que devia ter alguma noção deste idioma bíblico. Como Rabi que pregava a camponeses judeus da Galiléia, da Samaria e da Judéia, cuja língua usual era o aramaico, é certo que seus ensinamentos foram pronunciados neste idioma. São muitos os traços aramaicos que aparecem explícitos nos evangelhos gregos.

Quanto à questão se Jesus sabia ler ou escrever, é razoável supor que a formação religiosa de Jesus foi intensa e profunda, incluindo o aprendizado da leitura do hebraico bíblico. Além dos seus pais, o mais provável canal de instrução seria a sinagoga de Nazaré, que poderia servir como uma espécie de “escola elementar” religiosa. A prova indireta de Jo 7,15: “Como entende ele de letras sem ter estudado?” se, de um lado, insinua que Jesus era alfabetizado, constatação corroborada com sua comprovada habilidade em debater os textos das Escrituras e suas interpretações com fariseus devotos, escribas profissionais e autoridades, tanto nas sinagogas como no Templo de Jerusalém, por outro lado, parece insinuar que Jesus não freqüentou nenhuma escola formal. Aliás, o termo “escola” (em grego: scholè) nunca ocorre no Novo Testamento, à exceção da “Escola de Tiranos” pagã que Paulo utilizou em Éfeso, onde se entretinha com seus discípulos diariamente pelo espaço de dois anos cf. At 19,9-10).

Material rabínico dos séculos II ao V d.C. (Mixná, Talmude Palestino e Babilônico) dá conta de um amplo sistema educacional judaico existente na Palestina. É confiável aplicar retroativamente às décadas iniciais da era cristã este material de séculos diferentes? Admitindo-se a correção histórica desta retroatividade homogeneizadora, já no século I d.C. a maioria das crianças judias recebia escolarização. Em todas as cidades maiores, e mesmo em povoados menores, existiam as chamadas “beth ha-sepher” (“casa do livro”). A escrita era uma atividade profissional nem sempre proporcionada concomitantemente à aprendizagem da leitura. Aos doze ou treze anos, o menino terminava seus estudos na escola. A alguns poucos alunos privilegiados e mais brilhantes proporcionava-se uma educação mais avançada, na “Beth ha-midrash”, onde se dedicavam ao estudo da Torá com mestres da Lei. Estas escolas eram raras, não existindo um sistema educacional formal e obrigatório após os doze ou treze anos.

O Talmude estabeleceu normas para o pagamento dos professores para que também as crianças pobres tivessem acesso à escola. Esta geralmente estava anexa à sinagoga, sendo a instrução ministrada em salas ou construções contíguas, ou, em certos casos, no pátio da casa do profesor.
Mesmo não admitindo a plena historicidade destas informações da literatura rabínica posterior, podemos deduzir a formação e instrução não apenas profissional e religiosa, mas também escolar, a partir do tipo de ministério público exercido por Jesus. Estas extrapolações mostram que a vida pública de Jesus estava centrada na religião judaica. Todos os evangelistas o apresentam participando de debates eruditos sobre as Escrituras, que lhe foi conferido o título de “Rabi” (mestre), e que é comum nos evangelhos vê-lo pregando e ensinando nas sinagogas e no Templo. O impacto produzido nos ouvintes ou interlocutores demonstra que o nível de instrução de Jesus era elevado, o que não teria sido o caso se fosse analfabeto.

E qual a formação profissional de Jesus? No evangelho de Marcos, os judeus de Nazaré fazem uma pergunta retórica sobre Jesus, o menino criado na cidade e que agora, adulto, pretende lhes dar lições na sua própria sinagoga: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Em nenhum outro lugar do Novo Testamento é feita qualquer referência expressa a respeito da profissão exercida por Jesus de Nazaré. O evangelista Mateus reformula a pergunta: “Não é este o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55), transferindo a profissão para o seu pai José. Lucas, por sua vez, modifica ainda mais o texto de Marcos: “Não é este o filho de José?” (Lc 4,22). Em suma, a profissão de carpinteiro (em grego: téktôn), atribuída a Jesus ocorre apenas num meio versículo de Marcos. Não existe, porém, razão para pensar que esta indicação seja historicamente inexata. De acordo com os costumes da época, Jesus deve ter aprendido a profissão de carpinteiro na oficina do próprio pai José[ii].

A situação sócio-econômica da família de Nazaré, ainda que não possa ser identificada com a relativa segurança econômica de comerciantes, artesãos de cidades ou de lavradores independentes que possuíam alguma extensão de terra, certamente era melhor que a dos trabalhadores diaristas, dos servos contratados, dos artesãos ambulantes, dos lavradores sem-terra e, sobretudo, dos escravos. Embora modesto, o padrão de vida de Jesus, Maria e José era melhor que o de muitos habitantes de Nazaré e de outras cidades ou povoados da Galiléia[iii]. Os conhecimentos gerais que Jesus demonstra possuir em seus ensinamentos, nas parábolas do ministério público, são uma prova indireta que adquiriu uma sólida formação na área da agricultura, do pastoreio, do comércio, do artesanato, sem falar da economia doméstica, cuja aprendizagem assimilou na companhia e no exemplo de sua mãe.
Ao lado das influências externas nos anos de formação de Jesus, tais como: língua, instrução, profissão e realidade sócio-econômica, há também condições internas, como: laços familiares, estado civil e sua condição de leigo, que contribuíram para moldar a personalidade e a identidade de Jesus no ambiente de Nazaré.

Quanto à situação familiar, já acenamos aos dados dos evangelhos concernentes aos pais, aos irmãos e irmãs de Jesus. Assim, tomando em consideração os aspectos puramente filológicos e redacionais de Mc 6,3: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”, uma mente aberta aceita tranqüilamente a opinião de que os irmãos e as irmãs de Jesus referidas no versículo acima realmente eram irmãos legítimos e biológicos, e não primos (como afirmou por primeiro Jerônimo, século IV d.C.) ou meios-irmãos (segundo a opinião de Hegesipo e do livro apócrifo Proto-evangelho de Tiago, ambos do século II d.C.).

Concernente ao estado civil de Jesus, não podemos ter certeza absoluta se  foi casado ou não. O total silêncio sobre esposa e filhos em contextos onde figuram seus diversos parentes permite deduzir, como opinião mais provável, que ele nunca se casou. Sua opção pelo celibato deve ser interpretada como o resultado de sua missão profética e religosa.

Referente à condição de Jesus como leigo, cabe dizer que nasceu, exerceu seu ministério e morreu como Galileu leigo. Não existe tradição histórica confiável, tanto nos sinóticos como no quarto evangelho, que afirme ter sido ele de linhagem levítica ou sacerdotal. A própria epístola aos Hebreus, redigida por um cristão de alta erudição no final do século I d.C., interpretada erroneamente por cristãos e teólogos apresentando Jesus como sumo sacerdote, afirma explicitamente: “Na verdade, contudo, se (Jesus) estivesse na terra, não seria nem mesmo sacerdote” (Hb 8,4). Para o autor da carta aos Hebreus, Jesus se torna sacerdotes somente por ter passado pelo sacrifício da cruz. Durante sua vida terrena, permaneceu leigo.


Bertilo Brod



[i] Para o presente tópico, seguimos, em grande parte, as pegadas abertas por John MEIER, op. cit., p. 251-365 e respectivas notas.
[ii] O sentido clássico de téktôn talvez correspondesse melhor, na linguagem moderna, a “marceneiro” do que a “carpinteiro”, que este último recebeu um sentido mais restrito, como sendo o trabalhador que constrói ou repara estruturas de madeira ou suas partes componentes, ao passo que o ofício de marceneiro englobava a lida com pedras, chofre ou marfim, e a fabricação de arados, cangas de animais, além de peças de mobiliário, a construção de casas e a preparação do madeiramento para tal fim.
[iii] Para um estudo da determinância das condições sociais, políticas e religiosas da Galiléia na formação de Jesus e do seu movimento, veja-se: FREYNE, Sean. A Galiléia, Jesus e os evangelhos: enfoques literários e investigações históricas. São Paulo: Loyola, 1996.

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