Esta é a segunda parte de um ensaio
de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da
URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento
faz parte do segundo capítulo do ensaio, que trata das questões crucias da
mariologia.
Miriam,
a esposa de José e a Esposa da Aliança, manifesta não só a profunda e essencial
dialogicidade da criatura humana, como também nos ensina, como pedagoga exemplar, o caminho ao longo do qual essa
vocação dialógica radical pode ser vivenciada em plenitude, o caminho da
reciprocidade perfeita entre a doação e a acolhida, entre o amor gratuitamente
recebido e o amor gratuitamente oferecido. Vivendo em sua relação esponsal
o cumprimento antecipado do desígnio da plenificação humana, a esposa de José
revela a estrutura antecipadora de sua consciência transcendente que não se
consome no hoje histórico, mas que se abre para o amanhã exodal da libertação
definitiva, na utopia da eternização do homem na humanização de Deus.
Assim,
Miriam de Nazaré, a Esposa da Aliança, ensina ao homem, ser dialógico e
nupcial, chamado à transcendência, o “princípio-esperança”, que edifica o
futuro de Deus no presente dos homens, para além das miopias intramundanas
deste presente e no anúncio libertador do futuro escatológico. A
“mulher”-esposa realiza em si este “princípio-esperança”, na forma mais densa e
profunda. Por sua capacidade de antecipação do futuro e da reciprocidade
amorosa, une o “já” ao “ainda-não” das promessas divinas, exercendo o seu papel
arquetípico no caminho da libertação dos homens. Esta capacidade de anunciar
profeticamente a libertação do homem, apanágio da “mulher”-esponsal em sua
dimensão antecipadora do futuro, aparece reiteradamente em inúmeros cânticos de
libertação, proferidos por mulheres bíblicas[i].
Antecipando, na esperança, o futuro, a “mulher” da epístola aos Gálatas e do
quarto evangelho, em sua feminilidade esponsal, possui a capacidade de libertar
os homens da escravidão do presente e dos inimigos da reciprocidade e
dialogicidade amorosas. Miriam de Nazaré, mãe e “mulher”, esposa de José e das
núpcias presentes e futuras, entrou no coração do tempo, da história e da
eternidade.
Certamente,
a mais crucial e problemática dimensão da
feminilidade de Miriam de Nazaré é constituída da doutrina teológica da sua
virgindade. Além de mãe de Jesus e esposa de José, Miriam concebeu
virginalmente seu filho e se manteve virgem, “antes do parto, no parto e depois
do parto”? Trata-se de um fato biológico concreto cuja historicidade decorre
dos dados bíblicos e que afetam o núcleo da doutrina da encarnação? A grande
maioria dos Padres da Igreja e dos exegetas e teólogos católicos, de ontem e de
hoje, sustentam não apenas a verdade teológica da virgindade de Miriam de Nazaré,
mas também a sua historicidade e biologicidade. Sirva de exemplo a argumentação
do reconhecido exegeta católico francês Ignace de la Potterie :
“O
fato biológico da concepção virginal (...) nunca pode ser separado do sentido
profundo oculto nele. Trata-se do fato inaudito e único de uma
mulher que se tornou mãe, permanecendo virgem, e, ao mesmo tempo, de seu significado
religioso na revelação cristã. Toda a obra da salvação é intervenção de
Deus na história por meio de fatos concretos, de acontecimentos.
Mas a revelação do plano da salvação que Deus quis se encontra precisamente
escondida nesses fatos e não pode ser separada deles. O mesmo se dá com a
concepção virginal de Jesus, a qual, assim, vem a ser um símbolo significativo
do mistério. Ela remete a algo diferente, que transcende o fato
em si e lhe dá sentido” (Apud FORTE, loc. cit., p. 165).
Cresce,
porém, significativamente, o número dos defensores católicos da tese da
não-historicidade da concepção virginal e da virgindade de Miriam de Nazaré no
parto e depois do parto. Há, também, os que admitem a doutrina da virgindade,
mas não a consideram como fazendo parte do núcleo central da fé. “Trata-se
de uma verdade secundária, cuja vivência subjetiva pode variar enormemente em
cada pessoa e mesmo para toda uma geração. Embora seja conseqüência remota de
dados da fé cristã acerca de Jesus e sua mãe, ela conservou na Tradição uma
memória jamais perdida e que deve ser mantida ainda hoje” (BOFF, 1998, p.
159). O conhecido teólogo da libertação segue, neste ponto, o não menos
renomado teólogo Karl Rahner[ii].
O
exegeta que busca no Novo Testamento uma afirmação da concepção virginal de
Miriam precisa contentar-se com Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38, únicos textos que se
referem explicitamente a esta tradição que, certamente, remonta a uma fonte
textual anterior aos dois evangelhos e às duas narrativas da infância que a
mencionam. Do ponto de vista da pesquisa histórico-crítica, o historiador e o
exegeta não têm mais como verificar a origem ou a fonte deste ensinamento, tal
como aparece nas duas perícopes evangélicas[iii].
Aceitar ou rejeitar esta doutrina dependerá grandemente dos pressupostos
filosóficos (p. ex., a existência ou não de milagres) ou teológicos (p. ex., se
Deus intervém milagrosamente na história humana). Quanto a nós, em consonância
com nossa interpretação dos evangelhos de Mateus e de Lucas, que se apresentam
como nítido intento de teologização do movimento de Jesus, de sua pessoa e dos
seus atos e ensinamentos, acreditamos tratar-se também no caso da concepção
virginal de Miriam, no parto e depois do parto, claramente de um “teologúmeno”,
isto é, de um princípio teológico narrado como acontecimento histórico, tal
como ocorreu com a descendência davídica de Jesus e seu nascimento em Belém.
Bertilo Brod
[i] Vejam-se, à guisa
de exemplo , os cânticos
de Miriam, irmã de Aarão, em Ex 15,21;
de Débora, em Jz 5; das mulheres de Israel, em
1Sm 18,7; de Ana , em
1Sm 2,1-10; e, especialmente , do Magnificat,
de Miriam de Nazaré, em Lc 1,46-55.
14 Recentemente , foi de novo proposta a tese de que uma
possível fonte
da concepção virginal de Jesus poderia ter sido o fato de ele ter sido concebido ou
mesmo ter
nascido fora do vínculo
conjugal, isto é, a tese
da ilegitimidade de Jesus, seja por estupro ou por adultério . Tanto Mateus como Lucas teriam aceito como
ponto pacífico
uma tradição oral ,
segundo a qual
Jesus teria sido concebido desta forma por Miriam durante
o noivado com
José. Cf. Jane SCHABERG. Os antepassados
e a mãe de Jesus. Revista
Concilium, 226, 1989, nº 6, p. 117-125. Para
uma discussão dos argumentos
pró e contra
esta tese , ver
MEIER, John P. Um judeu marginal :
repensando o Jesus histórico . 3. ed. Rio de Janeiro :
Imago, 1992, p. 222-229 e respectivas notas ,
p. 244-250.
[iii] Recentemente ,
foi de novo proposta
a tese de que
uma possível fonte
da concepção virginal de Jesus poderia ter sido o fato de ele ter sido concebido ou
mesmo ter
nascido fora do vínculo
conjugal, isto é, a tese
da ilegitimidade de Jesus, seja por estupro ou por adultério . Tanto Mateus como Lucas teriam aceito como
ponto pacífico
uma tradição oral ,
segundo a qual
Jesus teria sido concebido desta forma por Miriam durante
o noivado com
José. Cf. Jane SCHABERG. Os antepassados
e a mãe de Jesus. Revista
Concilium, 226, 1989, nº 6, p. 117-125. Para
uma discussão dos argumentos
pró e contra
esta tese , ver
MEIER, John P. Um judeu marginal :
repensando o Jesus histórico . 3. ed. Rio de Janeiro :
Imago, 1992, p. 222-229 e respectivas notas ,
p. 244-250.
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