sábado, 16 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (6)


Esta é a segunda parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do segundo capítulo do ensaio, que trata das questões crucias da mariologia.


 
2)      Questões cruciais de mariologia bíblica (2)

Miriam, a esposa de José e a Esposa da Aliança, manifesta não só a profunda e essencial dialogicidade da criatura humana, como também nos ensina, como pedagoga exemplar, o caminho ao longo do qual essa vocação dialógica radical pode ser vivenciada em plenitude, o caminho da reciprocidade perfeita entre a doação e a acolhida, entre o amor gratuitamente recebido e o amor gratuitamente oferecido. Vivendo em sua relação esponsal o cumprimento antecipado do desígnio da plenificação humana, a esposa de José revela a estrutura antecipadora de sua consciência transcendente que não se consome no hoje histórico, mas que se abre para o amanhã exodal da libertação definitiva, na utopia da eternização do homem na humanização de Deus.

Assim, Miriam de Nazaré, a Esposa da Aliança, ensina ao homem, ser dialógico e nupcial, chamado à transcendência, o “princípio-esperança”, que edifica o futuro de Deus no presente dos homens, para além das miopias intramundanas deste presente e no anúncio libertador do futuro escatológico. A “mulher”-esposa realiza em si este “princípio-esperança”, na forma mais densa e profunda. Por sua capacidade de antecipação do futuro e da reciprocidade amorosa, une o “já” ao “ainda-não” das promessas divinas, exercendo o seu papel arquetípico no caminho da libertação dos homens. Esta capacidade de anunciar profeticamente a libertação do homem, apanágio da “mulher”-esponsal em sua dimensão antecipadora do futuro, aparece reiteradamente em inúmeros cânticos de libertação, proferidos por mulheres bíblicas[i]. Antecipando, na esperança, o futuro, a “mulher” da epístola aos Gálatas e do quarto evangelho, em sua feminilidade esponsal, possui a capacidade de libertar os homens da escravidão do presente e dos inimigos da reciprocidade e dialogicidade amorosas. Miriam de Nazaré, mãe e “mulher”, esposa de José e das núpcias presentes e futuras, entrou no coração do tempo, da história e da eternidade.

Certamente, a mais crucial e problemática dimensão da feminilidade de Miriam de Nazaré é constituída da doutrina teológica da sua virgindade. Além de mãe de Jesus e esposa de José, Miriam concebeu virginalmente seu filho e se manteve virgem, “antes do parto, no parto e depois do parto”? Trata-se de um fato biológico concreto cuja historicidade decorre dos dados bíblicos e que afetam o núcleo da doutrina da encarnação? A grande maioria dos Padres da Igreja e dos exegetas e teólogos católicos, de ontem e de hoje, sustentam não apenas a verdade teológica da virgindade de Miriam de Nazaré, mas também a sua historicidade e biologicidade. Sirva de exemplo a argumentação do reconhecido exegeta católico francês Ignace de la Potterie:

“O fato biológico da concepção virginal (...) nunca pode ser separado do sentido profundo oculto nele. Trata-se do fato inaudito e único de uma mulher que se tornou mãe, permanecendo virgem, e, ao mesmo tempo, de seu significado religioso na revelação cristã. Toda a obra da salvação é intervenção de Deus na história por meio de fatos concretos, de acontecimentos. Mas a revelação do plano da salvação que Deus quis se encontra precisamente escondida nesses fatos e não pode ser separada deles. O mesmo se dá com a concepção virginal de Jesus, a qual, assim, vem a ser um símbolo significativo do mistério. Ela remete a algo diferente, que transcende o fato em si e lhe dá sentido” (Apud FORTE, loc. cit., p. 165).

Cresce, porém, significativamente, o número dos defensores católicos da tese da não-historicidade da concepção virginal e da virgindade de Miriam de Nazaré no parto e depois do parto. Há, também, os que admitem a doutrina da virgindade, mas não a consideram como fazendo parte do núcleo central da fé. “Trata-se de uma verdade secundária, cuja vivência subjetiva pode variar enormemente em cada pessoa e mesmo para toda uma geração. Embora seja conseqüência remota de dados da fé cristã acerca de Jesus e sua mãe, ela conservou na Tradição uma memória jamais perdida e que deve ser mantida ainda hoje” (BOFF, 1998, p. 159). O conhecido teólogo da libertação segue, neste ponto, o não menos renomado teólogo Karl Rahner[ii].

O exegeta que busca no Novo Testamento uma afirmação da concepção virginal de Miriam precisa contentar-se com Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38, únicos textos que se referem explicitamente a esta tradição que, certamente, remonta a uma fonte textual anterior aos dois evangelhos e às duas narrativas da infância que a mencionam. Do ponto de vista da pesquisa histórico-crítica, o historiador e o exegeta não têm mais como verificar a origem ou a fonte deste ensinamento, tal como aparece nas duas perícopes evangélicas[iii]. Aceitar ou rejeitar esta doutrina dependerá grandemente dos pressupostos filosóficos (p. ex., a existência ou não de milagres) ou teológicos (p. ex., se Deus intervém milagrosamente na história humana). Quanto a nós, em consonância com nossa interpretação dos evangelhos de Mateus e de Lucas, que se apresentam como nítido intento de teologização do movimento de Jesus, de sua pessoa e dos seus atos e ensinamentos, acreditamos tratar-se também no caso da concepção virginal de Miriam, no parto e depois do parto, claramente de um “teologúmeno”, isto é, de um princípio teológico narrado como acontecimento histórico, tal como ocorreu com a descendência davídica de Jesus e seu nascimento em Belém.
Bertilo Brod

[i] Vejam-se, à guisa de exemplo, os cânticos de Miriam, irmã de Aarão, em Ex 15,21; de Débora, em Jz 5; das mulheres de Israel, em 1Sm 18,7; de Ana, em 1Sm 2,1-10; e, especialmente, do Magnificat, de Miriam de Nazaré, em Lc 1,46-55.
[ii] Cf. RAHNER, Karl. Schriften zur Theologie. Zürich: Benziger, 1978, p. 121-158. Vol. XIII.
Para uma análise acurada do desenvolvimento da doutrina da concepção virginal nos santos Padres dos primeiros séculos, especialmente no Ocidente, é assaz ilustrativo o minucioso informe de Hans F. von CAMPENHAUSEN, Die Jungfrauengeburt in der Theologie der alten Kirche. Heidelberg: Carl Winter-Universitätsverlag, 1962).
14 Recentemente, foi de novo proposta a tese de que uma possível fonte da concepção virginal de Jesus poderia ter sido o fato de ele ter sido concebido ou mesmo ter nascido fora do vínculo conjugal, isto é, a tese da ilegitimidade de Jesus, seja por estupro ou por adultério. Tanto Mateus como Lucas teriam aceito como ponto pacífico uma tradição oral, segundo a qual Jesus teria sido concebido desta forma por Miriam durante o noivado com José. Cf. Jane SCHABERG. Os antepassados e a mãe de Jesus. Revista Concilium, 226, 1989, nº 6, p. 117-125. Para uma discussão dos argumentos pró e contra esta tese, ver MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 222-229 e respectivas notas, p. 244-250.
[iii] Recentemente, foi de novo proposta a tese de que uma possível fonte da concepção virginal de Jesus poderia ter sido o fato de ele ter sido concebido ou mesmo ter nascido fora do vínculo conjugal, isto é, a tese da ilegitimidade de Jesus, seja por estupro ou por adultério. Tanto Mateus como Lucas teriam aceito como ponto pacífico uma tradição oral, segundo a qual Jesus teria sido concebido desta forma por Miriam durante o noivado com José. Cf. Jane SCHABERG. Os antepassados e a mãe de Jesus. Revista Concilium, 226, 1989, nº 6, p. 117-125. Para uma discussão dos argumentos pró e contra esta tese, ver MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 222-229 e respectivas notas, p. 244-250.

Nenhum comentário: