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Questões
cruciais de mariologia bíblica (1)
Deslindados
os principais textos do Novo Testamento que fornecem um quadro geral do perfil
bíblico de Miriam de Nazaré, importa investigar alguns aspectos específicos
particularmente problemáticos e cruciais do ponto de vista hermenêutico. São
questões de gênero que giram em torno do ser-mulher de Miriam, sua maternidade
e sua virgindade
Na
investigação do perfil bíblico geral de Miriam de Nazaré, em dois momentos
significativos, encontramos a expressão ou o apelativo “mulher” endereçado à
mãe de Jesus. O primeiro ocorreu em Gl 4,4, onde se afirma que Deus, na
plenitude dos tempos, enviou seu Filho, “feito de mulher” (em grego: genómenon
ek gynaikós) para significar que o Filho de Deus assumiu a condição humana
no seio materno de Miriam. Nada permite supor que o autor da epístola aos
Gálatas quisesse atribuir um papel especial a Miriam na filiação divina. O que
se afirma se reduz ao seguinte: uma
mulher assegurou a entrada do Filho de Deus na história humana. A verdadeira
humanidade de Cristo se deveu a uma “mulher”. O apóstolo, ao traçar a estrutura
fundamental do mistério da encarnação, deixou-nos o princípio de toda
mariologia: a maternidade humana de Miriam na encarnação e missão do Filho de
Deus. Nascido ou feito de mulher, o Filho
de Deus entrou em profunda comunhão e intercâmbio com a precariedade da
natureza humana, tornando-se homem como nós, histórico, sujeito às vicissitudes
da condição humana.
Vamos
encontrar novamente o apelativo “mulher” dirigido por Jesus à sua mãe no
evangelho de João, tanto no relato das bodas de Caná (Jo 2,1-12), como na cena
do Calvário (Jo 19,25-27). Por que utilizou Jesus tal apelativo, referindo-se à
sua mãe, sabendo-se que não era comum na linguagem de um filho em relação à própria
mãe? No âmbito da exegese bíblica, muitas foram as respostas aventadas para a
questão. Na perspectiva do autor do quarto evangelho — essencialmente um
trabalho de teologização da pessoa e da missão de Jesus —, a expressão
“mulher”, tanto em Caná como na cruz, aproxima duas perspectivas. Por um lado,
Miriam é a mãe carnal de Jesus, tal como texto Paulino aos Gálatas. Por outro
lado, ela é a figura, o símbolo, o ícone que “reassume e sintetiza em si
toda a esperança messiânica de Israel e em íntima união com seu Filho intercede
para que os povos, o novo Israel já presente nela, sejam partícipes do vinho
novo do Espírito” (AUTRAN, 1992, p. 136).
Pelo
título “mulher” (em grego: gynè), Jesus revela que estava vendo sua mãe
acima das meras relações familiares, dando a entender que não pode mais ser
considerado apenas como o filho natural de Miriam e que esta ultrapassou seu
estágio de mãe humana de Jesus para se tornar a “Mater Sion”, mãe-Sião, a representante da coletividade do
povo de Deus nos tempos messiânicos. A “mulher” Miriam, a Sião messiânica ou
escatológica, simboliza, em Caná, a passagem do povo judaico ao povo messiânico
e, na cruz, a passagem do povo messiânico ao povo de Deus da Igreja cristã. Na
cena da cruz, a mãe-“mulher” que acolhe o discípulo amado se torna o tipo da
Igreja. Em Jo 19, 25-27, o termo “mulher” aplicado a Miriam tem uma ressonância
comunitária eclesial. Na Miriam, Jesus mostra a personificação da nova
Jerusalém-mãe, isto é, a Igreja-mãe. Se, na antiga Jerusalém, o profeta dizia: “Eis os teus filhos
reunidos juntos” (Is 60,4), agora Jesus diz à sua mãe: “Mulher, eis o
teu filho” (Jo 19,26)[i].
A
iluminação retrospectiva que provém do texto de Isaías sobre a reunião dos
dispersos confere uma dimensão eclesial e ecumênica à maternidade da “mulher”
aos pés da cruz. Na impostação teológica do seu evangelho, João evidencia a
presença de Miriam com uma finalidade bem evidente: ela se torna a tipologia da Igreja porque celebrou o
culto “em espírito e verdade”, seguindo seu filho, imitando-o na dor e entrando
no diálogo entre o Pai e o Filho. Jesus mostra na sua mãe a “mulher-mãe” de
todos os seus discípulos. Isto significa que ele pretende propô-la à sua Igreja
como modelo-exemplo-tipo-forma de vida
evangélica. É este o caráter paradigmático e icônico da maternidade de
Miriam de Nazaré, tal como emerge da teologia joanina.
É
precisamente esta maternidade humana da mãe de Jesus que caracteriza por
excelência o ser-“mulher” de Miriam de Nazaré, como aliás de toda mulher. Neste
sentido, a maternidade de Miriam é mais
importante que a sua virgindade, como adiante analisaremos. Não sem razão o
Novo Testamento privilegia o título de mãe de Jesus ao de virgem. Este último
título ocorre somente duas vezes (Mt 1,23 e Lc 1,27), ao passo que o de mãe é referido
vinte e cinco vezes.
A
maternidade se concretiza nos processos biofisiológicos basicamente espontâneos
e transconscientes da ovulação, fecundação, gestação, nutrição e
desenvolvimento do embrião e da parturição. No caso da mulher, estes aspectos ocorrem
dentro de uma ambiência humana prenhe de emotividade, de liberdade e de
consentimento. A dimensão psíquica da maternidade envolve e enriquece o mero
biofisiologismo da maternidade. A relação humana que se estabelece entre mãe e
filho assume uma dimensão de diálogo, de afetividade e de ternura infinitamente
superior — porque livre e humana — à fatalidade natural do procriar da espécie
animal. É nestes aspectos biofisiológicos e psíquicos que eclode, em plenitude,
a feminilidade maternal de Miriam. O feminino entrou numa proporção profunda na
constituição não só do genótipo, da herança biológica de Jesus, mas também da
personalidade psicológica básica deste.
Quais
são os traços do feminino que se revelam na “mulher” Miriam, na qualidade de
mãe de Jesus e em que sentido sua maternidade é perceptível como dimensão
tipicamente feminina, caracterizando-a como “mulher”-ícone? Talvez, a melhor
resposta para esta questão seja: a
feminilidade da maternidade de Miriam se expressa como radical e irradiante
gratuidade, pois o seu “sim” à maternidade não só deu a vida ao filho
Jesus, mas, pelo simbolismo icônico da sua presença em Caná e no Calvário, sua
solicitude materna a tornou partícipe incondicional dos homens peregrinos no
tempo. “A maternidade se oferece em Maria como um dar a vida, fontal e
permanente, que não conhece condições ou reservas, porque é vivido na
gratuidade mais total, e que se traduz, na concretude dos dias, na ternura de
uma relação sempre capaz de suscitar vida e alegria em toda criatura amada”
(FORTE, op. cit., p. 210).
A
vocação à gratuidade irradiante da maternidade não é um princípio abstrato, mas
concretude e geração da vida real, ternura próxima que se nutre da doação
materna. Em Miriam de Nazaré, esta doação e esta ternura concretas da capacidade
tipicamente feminina de realizar o amor estão exemplificadas nas faixas nas
quais envolveu o menino (cf. Lc 2,7), na visita afetuosa a Isabel (cf. Lc
1,39ss.) e na intervenção solícita em Caná (cf. Jo 2,1-12). Nestes exemplos, a
mãe de Jesus revela sua feminilidade, ao mesmo tempo simples e imediata, mas,
também, paradigmática, irradiante e arquetípica.
A
feminilidade e a maternidade de Miriam de Nazaré se expressam, igualmente, na
nupcialidade da esposa de José[ii],
símbolo e ícone da aliança esponsal entre Deus e a humanidade e das núpcias
messiânicas da Igreja, novo povo da aliança. A simbologia de Miriam — esposa de José — exprime a reciprocidade e
dialogicidade radicais do ser humano. A criatura humana, tal como emerge em
Miriam, é chamada para a aliança, isto é, está constitutivamente orientada para
a reciprocidade do encontro, do diálogo e da aliança na socialidade e
profundidade da união e da comunhão. A reciprocidade da convivência
masculino-feminina é condição estrutural da existência humana. O mistério da
vida e da história humanas é essencialmente um mistério esponsal de aliança. A
reciprocidade varão-mulher significa que todo ser humano é constitutivamente um
ser dialógico: “O diálogo, encontro na palavra, manifesta a natureza mais
profunda da pessoa humana enquanto chamada a tomar a iniciativa da relação com
os outros, a acolher a iniciativa e a resposta deles e a integrar em unidade
esse duplo movimento, de saída de si e de retorno a si, de fonte e de
receptividade no amor” (FORTE, op. cit., p. 234).
Essa
reciprocidade dialógica, radicalmente
aberta aos outros, realizou-se iconicamente em Miriam, esposa de José e Esposa
da nova aliança. Dialogou com Deus — veja-se a estrutura dialógica da narrativa
da anunciação (Lc 1,26-38) e do hino Magnificat (Lc 46-55) —, com seu
filho Jesus (cf. bodas de Caná: Jo 2,1-12) e com os homens, discípulos
“serventes” (Jo 2,5: Fazei tudo o que ele vos disser).
[i] É nesta linha
de interpretação que
se orienta a reflexão de Francesco Rossi
de Gasperis, em seu
sugestivo livro
Maria di Nazaret: icona di Israele e della Chiesa. Magnano:
Qiqajon, 1997.
[ii] Não
seria fora de propósito
ou um
anacronismo um
ensaio sobre
o papel de José na história
da salvação — sem os exageros de uma josefologia! — e sobre
a simbologia antropológica e teológica
da Sagrada Família
de Nazaré. Além dos estudos
exegéticos pertinentes e atualizados,
duas publicações antigas mereceriam ser revisitados.
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