Corpus
Christi: oportunidade para repensar o
mistério da Eucaristia
Na próxima
quinta-feira, dia 7 de junho, a Igreja Católica celebrará a solenidade de
Corpus Christi. Creio que tal celebração deveria ser revertida num momento para
se repensar com toda seriedade possível o mistério da Eucaristia. Deveríamos
sair das pompas, ostentações e luxo e nos voltarmos para o silêncio
contemplativo e reflexivo.
O primeiro momento
deste processo reflexivo deveria ser um repensar
a própria solenidade de Corpus Christi. Sabemos que esta festa surgiu no
auge de uma violenta crise pela qual passava a Igreja Católica. A liturgia
havia se sofisticado e se distanciado do povo. Era celebrada em latim, língua
não mais falada pelas comunidades. Além de serem celebradas numa língua
incompreensível, as liturgias eram pomposas, luxuosas, uma verdadeira afronta
aos pobres. Tinham se tornado uma coisa para o clero, pois o povo fora reduzido
a mudo espectador. Neste contexto corria solta a simonia: a celebração dos
sacramentos, especialmente da Eucaristia, dependia de muito dinheiro. Assim,
por exemplo, o preço da missa dependia do modo como o padre erguia a hóstia
consagrada durante a anamnesis, chamada de “consagração”, e considerada o
momento mais importante da missa. Quanto
mais alta a elevação, mais cara era a missa.
Por essa e outras
razões a liturgia ficou reduzida a mero devocionalismo. As pessoas não mais
participavam da Eucaristia e a tinham apenas como simples devoção. Iam às
igrejas para adorar o Santíssimo Sacramento e não para participar da Ceia do
Senhor. A situação ficou tão grave que a própria hierarquia determinou que se
comungasse pelo menos uma vez por ano, durante o período da Páscoa. Foi neste
contexto que o papa Urbano IV, em 1264, fixou a solenidade de Corpus Christi:
uma festa para adorar pública e pomposamente a hóstia consagrada. Portanto, a
festa de Corpus Christi, como veremos a seguir, é um desvirtuamento radical do
significado litúrgico do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor. Ou, se
preferirmos, uma traição do pedido do Mestre: “Tomai e comei, tomai e bebei”.
Considero a festa
de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um
desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões.
Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado
pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma
cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num
ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não
tinha onde reclinar a cabeça.
Em segundo lugar
porque o cerne da Eucaristia está não na adoração, mas na refeição, na comida, na ceia. Ou, se quisermos, o modo correto de
adorar a Eucaristia é participar da ceia, é comer do pão e beber do cálice. De
fato, Jesus não disse “tomem e adorem, mas tomem e comam, tomem e bebam”. A
adoração eucarística surgiu por meio do costume de se levar um pedaço do pão
eucarístico para os doentes impedidos de participar da celebração litúrgica
dominical. E como se acreditava que aquele pedaço de pão era o sacramento do
Corpo e Sangue de Cristo, enquanto ele não era levado e consumido pelo doente,
era adorado como sacramento da real presença de Cristo no meio da comunidade
cristã.
O hábito de consagrar
hóstias apenas para trancá-las num “cofre dourado” e ser adorado pelas pessoas
é um costume que nasce no contexto de crise antes mencionado, quando se havia
perdido por completo a noção do mistério eucarístico. Portanto, é algo que destoa
do significado da Eucaristia para a comunidade cristã. As normas para o culto à
Eucaristia fora da missa, emanadas pelo próprio Vaticano, são muito claras a
este respeito. Chegam inclusive a dizer que se deve evitar neste culto tudo
aquilo que possa tirar da Eucaristia a sua natureza de alimento, de comida, de
refeição. Por rigor de lógica as espécies eucarísticas, quando colocadas para a
veneração dos fiéis, deveriam ser postas em pratos de comida e não em
ostensórios luxuosos. Porém, as próprias autoridades eclesiásticas são as
primeiras a não obedecer aquilo que escrevem para os outros.
Em consonância com
o que acabou de ser dito, a festa de Corpus Christi deveria ser uma
oportunidade para uma profunda catequese
sobre o que é, de fato, a Eucaristia. Infelizmente a crise antes mencionada
levou a se pensar na Eucaristia como o sacramento da “carne” do homem histórico
Jesus de Nazaré. Assim a concepção comum presente na mente de bispos, padres e
fiéis é que os termos “carne”, “corpo”, “sangue” se refiram exclusivamente ao
corpo biológico de Jesus. A Eucaristia seria a transformação de algumas hóstias
e de um pouco de vinho num amontoado de células e moléculas do corpo físico do
Jesus histórico que viveu na Palestina há dois mil anos.
Porém, quando nos
voltamos para os textos bíblicos não é essa a compreensão que temos. O termo
“corpo” (em hebraico “basar” e em grego “soma”) não significa apenas o aspecto
biológico, mas a pessoa inteira na sua condição de corporalidade. Trata-se da
pessoa na sua totalidade revelada em sua forma visível e em comunicação com os
outros. Jesus, segundo Marcos (14,22-24), o mais antigo dos evangelhos, ao
dizer na última ceia “éstin tò somá mon” (“isto é o meu corpo”) e “éstin tò haîmá
mon” (“isto é o meu sangue”), não está se referindo apenas ao seu corpo
biológico, às células do seu corpo físico, mas à totalidade da sua pessoa de
Filho de Deus encarnado. E quando convida os discípulos a comerem do seu
“corpo” e a beberem do seu “sangue” Jesus não está pensando num ritual antropofágico
ou canibal, mas num gesto de comunhão e de adesão plena à sua pessoa.
O biblista italiano
Settimio Cipriani, que estudou profundamente esta questão, afirma que as
palavras de Jesus poderiam ser traduzidas da seguinte maneira: “O que estou
fazendo (partindo o pão e distribuindo-o) significa a oferta da minha pessoa
por vocês”. De fato, nas culturas antigas, especialmente na cultura judaica, o
ato de comer e de comer juntos não tem apenas o significado biológico de
ingerir substâncias para saciar a fome e manter-se vivo. Comer e comer juntos
tem um significado simbólico, sacramental: significa que os comensais participam
da mesma sorte, estão unidos pelo mesmo destino, estão em comunhão entre si. Assim
sendo, a participação na Eucaristia, na Ceia do Senhor, é um gesto sacramental
através do qual o cristão e a cristã manifestam a sua adesão total à pessoa de
Jesus e se dispõem a participar da mesma sorte do Mestre. Portanto, reduzir a
Eucaristia a um significado meramente biológico, a um pedaço da carne biológica
de Cristo (como se tem feito em alguns casos de supostos milagres eucarísticos)
é desvirtuá-la completamente do seu verdadeiro significado sacramental.
Isso pode ser
confirmado pelo texto eucarístico do Evangelho de João (6,51-56). Mesmo não
narrando a instituição da Eucaristia, João apresenta Jesus convidando seus
ouvintes a comerem a sua carne e a beberem o seu sangue. Sabemos que na Bíblia
o termo “carne” (em hebraico “basar” e em grego “sárx”) não significa apenas o
elemento físico, biológico, mas a pessoa humana, na sua totalidade, existindo
como ser frágil e mortal. É o ser humano total na sua condição de caducidade.
Por sua vez o “sangue” (em hebraico “dam” e em grego “haîma”) não significa
apenas o líquido vermelho que escorre nas veias do ser humano, mas a sua vida,
o seu existir pleno. O convite de Jesus feito a seus ouvintes significa um
convite a entrar em plena sintonia com a sua pessoa e o seu projeto de vida.
Participar da Eucaristia é aderir ao mistério do Filho de Deus que “se fez carne”
(Jo 1,14), ou seja, que abriu mão da sua condição divina para viver entre nós
como “simples homem” (Fl 2,7-8). Participar da Eucaristia não é participar de
um rito antropofágico, no qual se come um pedaço da carne biológica do Jesus
histórico, mas comungar da sua fragilidade, da sua fraqueza, da sua encarnação.
Se entendêssemos isso causaríamos uma verdadeira revolução no cristianismo e
contribuiríamos para o advento de uma nova humanidade.
Por fim, a festa de
Corpus Christi deveria ser um momento para se pensar numa solução definitiva para o problema daquelas milhares de comunidades
cristãs espalhadas pelo mundo e que são privadas da celebração eucarística
dominical, por falta de um ministro ordenado que a presida. Se a Eucaristia é o
centro e o cerne da vida cristã, deixar uma comunidade sem celebração
eucarística dominical é impedi-la de viver a sua verdadeira identidade.
Soluções já existem como já tive oportunidade de mostrar, mas a hierarquia
resiste e não quer adotá-las. Se a hierarquia não resolve, cabe às comunidades
cristãs abandonadas encontrarem uma solução. E Tertuliano, um escritor cristão
do final do II e início do III século, propôs uma solução muito simples. Mesmo
reconhecendo que em circunstância normais cabe ao bispo e seu conselho presbiteral
presidir a Eucaristia, Tertuliano afirmava: “Onde não há um colégio de
ministros inseridos, tu, leigo, deves celebrar a Eucaristia e batizar; tu és,
então, o teu próprio sacerdote, pois, onde dois ou três estão reunidos, aí está
a Igreja, mesmo que os três sejam leigos”.
José Lisboa Moreira de Oliveira
Nenhum comentário:
Postar um comentário