Pertence à família de Jesus quem faz a vontade de Deus.
(Gen 3,9-15; Sl 129/130; 2Cor 4,13-5,1;
Mc 3,20-35)
Depois de quase três meses marcados
por liturgias muito especiais, dinamizadas pelo espírito da quaresma e da
páscoa, voltamos ao tempo comum, ao belo e exigente desafio da vida cotidiana. E
a Igreja propõe que retomemos a escuta do Evangelho de Marcos mais ou menos no
ponto em que o deixamos no 7° domingo comum (19 de fevereiro). Abramos a mente
e o coração ao ensinamento de Jesus, mesmo que inicialmente nos choque e
escandalize. Jesus não tem prazer em colocar pedras na estrada do nosso
amadurecimento na fé, mas quer ajudar a perceber as lutas que este percurso
exige e as amarras que precisamos desfazer, inclusive aquelas inconscientes ou que
assumem a aparência de piedade. O caminho da libertação está longe de ser um
passeio de fim-de-semana, e pede que tenhamos a coragem de repensar
criticamente a própria imagem de família que elaboramos.
“Então comeste da árvore, de cujo fruto te proibi de
comer?”
A narrativa do livro do Gênesis e o Salmo
129(130) que antecedem e preparam a escuta do evangelho podem confundir ou
desviar nossa atenção do núcleo da Boa Nova proclamada neste domingo.
Efetivamente, o capítulo 3 do livro do Gênesis é um dos mais teologizados do
primeiro testamento, e é muito difícil ver nele outra coisa senão o mito do
pecado original e originante de todos os demais pecados. E, com ele, a imagem
de um Deus inimigo da nossa liberdade, irado e castigador.
Por sua vez, os versos do Salmo 129,
recitados como meditação, em que pese o tom agradecido do refrão e a convicção
de que em Deus encontramos misericórdia e perdão, enfatiza o profundo pesar e o
sentimento de culpa que marca nossa condição humana. Juntos, estes dois textos
da verdadeira Palavra de Deus correm o risco de focalizar nossa atenção nos
pecados que Deus perdoa e no pecado imperdoável ao qual Jesus se refere de
passagem no evangelho de hoje.
“Ele tem um espírito impuro!”
Mesmo se partirmos da leitura do
texto do Evangelho, o atual inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo,
acompanhadas de um indisfarçável desejo de amedrontar e dominar, podem nos
levar a pensar que o núcleo temático seja o combate ao diabo. Na verdade, o que
temos na narração de Marcos é a radicalização e a explicitação do conflito
entre a prática libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites
religiosas, agarradas à defesa do seu poder de domínio.
Curando um paralítico e declarando-o
sem culpa diante de Deus, calando e expulsando o expírito que fazia calar um
doente, purificando um leproso e enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes
que se aproximavam, Jesus havia desmascarado a escravidão mantida pela
ideologia do templo. Vendo que uma grande multidão aderia a Jesus, os escribas
contra-atacam e tentam neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando-o
com o protótipo dos inimigos do ser humano, o diabo.
Precisamos distinguir entre a
realidade e a linguagem. A linguagem usada nessa passagem é apocalíptica, mas a
realidade é um conflito político e social. Como os escribas e doutores da lei se
apresentam como representantes de Deus, vêem um espírito diabólico em quem os
desmascara. Jesus entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como
a acentuação simbólica das experiências negativas da sociedade judaica. Jesus
se defende atacando com as próprias armas dos adversários!
“Quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca será
perdoado!”
Este trecho do Evangelho mostra
Jesus cara-a-cara com seus adversários mais renhidos, numa luta de mitos, ou
melhor, num confronto de interpretações sobre os dramas e aspirações humanas:
Jesus e os pobres libertados interpretam sua ação como obra libertadora e
regeneradora de Deus; os escribas e doutores da lei vêm nela a ruína da ordem
estabelcida e o espírito diabólico. Não é por menos: com seu perdão
indiscriminado Jesus cancelava os débitos do povo e, com isso, diminuía os
lucros do templo.
É interessante perceber que Jesus
entra no jogo linguístico dos seus opositores para “puxar o tapete” e mostrar a
contradição em que estão atolados. Ironicamente, Jesus diz que se agisse mesmo em
nome do diabo, o reino de satanás estaria dividido e fadado à ruína. Seguindo
nessa linguagem, Jesus compara sua missão com a ação de um criminoso: um ladrão que queira roubar a casa de uma
pessoa forte deve ser capaz de amarrá-la, deve ser mais poderoso que ela. Jesus
é mais forte que a ideologia do templo!
Mas o clímax da disputa vem a
seguir. Jesus afirma que os verdadeiros pecadores, aqueles que estão
irremediavelmente condenados, são os próprios escribas e doutores da lei, o
grupo que controla e dificulta o perdão aos pobres e doentes, a elite que
desqualifica a ação divinamente libertadora de Jesus acusando-a de diabólica.
Esse grupo é réu de um pecado eterno, está coberto de impureza e envolvido numa
cegueira que não permite que veja um palmo à frente do nariz.
“Quando seus familiares souberam disso, vieram para
detê-lo...”
O confronto que acabamos de comentar
está no miolo da narrativa e vem inserido num quadro de discussão sobre os
limites e possibilidades das relações familiares. Os familiares de Jesus haviam
tomado conhecimento daquilo que ele fazia e dizia, sentiam-se importunados pela
multidão que invadia sua casa até nas sagradas refeições e começaram a temer
pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida
impressão de que Jesus enloqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo.
O movimento dos familiares de Jesus é
interrompido pela discussão com os escribas, mas é retomada em seguida. A mãe e
os irmãos sequer ousam ultrapassar o círculo dos discípulos e chegar perto de
Jesus: mandam chamá-lo. Eles parecem compartilhar da visão dos escribas, e
tentam fazer Jesus interromper ou desistir da sua missão. Mas o distanciamento é
mútuo: a família não aceita a vocação de Jesus, e ele não a reconhece como sua
família. A ruptura parece radical e total.
Aqui Jesus dá mais um passo na
superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo. A
família patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de sangue, era um
dos eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação. Ela
determinava a identidade e a personalidade, controlava a vocação e facilitava a
socialização. Mas era também a célula de reprodução de uma sociedade excludente
e intolerante. Por isso, precisava ser criticada e superada.
“Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha
irmã e minha mãe.”
Jesus não se detém na crítica
destruidora das instituições, dos modelos de relacionamento. Ao culto no templo
ele antepõe a solidariedade com os que sofrem. Coloca Deus no lugar da
autoridade patriarcal. Substitui a estreiteza dos laços de sangue pelos
vínculos que brotam da condição humana compartilhada. Propõe uma nova família, caracterizada
pela prática da vontade de Deus – que é sempre uma vontade de vida abundante
para todos! – e não pela submissão a um chefe qualquer.
A célula humana fundamental, aquela
que traça a linha que define nossa identidade, desenvolve nossa vocação e viabiliza
nossa sociealização, é a comunidade dos discípulos e discípulas, uma comunidade
de iguais ordenada à construção do Reino de Deus, ou seja, ao resgate do bem
viver e conviver aberto a todas as criaturas. Do ponto de vista do Evangelho de
Jesus, todas as demais instituições e autoridades são transitórias e relativas.
Só Deus e o seu Reino são critérios absolutos.
Isso nos leva a recordar o Encontro Mundial das Famílias, realizado
em Milão (Itália), no último fim-de-semana. Uma das mensagens mais repetidas
foi que o mundo é uma grande família e a
família é um pequeno mundo. Sim, mas com todas as contradições inerentes ao
mundo. A família é, muitas vezes, o ecossistema no qual as células da
indeferença e da exclusão encontram ambiente favorável para se multiplicar. Do
ponto de vista do Evangelho, a família não é tudo. Ela deve se rever e refazer
em Deus.
“Minha alma aguarda o Senhor mais que as sentinelas a
aurora.”
A ti, Jesus de Nazaré, irmão de todos os homens
e mulheres que se regeneram à luz do Reino, dirigimos nosso olhar e nossa
prece. Fortalece nossa vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com
os laços que nos amarram a nós mesmos/as e aos sistemas que oprimem. Amplia o
círculo da nossa comunhão, para que inclua todos/as, começando pelas vítimas da
seca de nordeste, passando pelos que pagam o preço das crises econômicas da
Europa e pelos povos ribeirinhos atingidos pela cheia do rio Amazonas, chegando
a todas as criaturas ameaçadas por um código florestal criminoso e anacrônico. E
faz com que nossas comunidades sejam família de homens e mulheres iguais. Assin
seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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