Esta é a segunda parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do segundo capítulo do ensaio, que trata das questões crucias da mariologia.
2)
Questões
cruciais de mariologia bíblica (3)
O
grupo de trabalho católico-protestante que organizou a obra coletiva Maria
no Novo Testamento concluiu: “O grupo de trabalho concordou que a
questão da historicidade da concepção virginal não podia ser estabelecida pela
exegese histórico- crítica” (Apud MEIER, loc. cit., p. 242, nota 75)[i].
Como
se configura, então, a teologização da concepção virginal de Jesus? Leonardo
Boff, embora aceite a historicidade dos relatos de Mt 1,18-25 e de Lc 1,26-38,
transcreve, com base em Hans Küng[ii],
duas formulações do “teologúmeno” da concepção virginal. A primeira representa
Miriam e José como um casal piedoso e puro, aguardando o Messias e suplicando a
Javé que se digne escolher um de sua prole. Javé atende a súplica. Jesus,
gerado pelo amor de Miriam e José, foi assumido hipostaticamente pelo Filho
eterno para ser o Redentor. Miriam concebeu seu filho virginalmente, não num
sentido biológico, e sim, num sentido pessoal e moral de doação plena e de amor
puro a Deus, onde o amor para com José não concorria com o amor a Deus, mas fez
com que este, num amor ainda mais puro e eterno, aceitasse o filho de Maria e
José para ser o sacramento de seu Filho unigênito na história. Deus não
excogitou uma maneira sobrenatural de fazer conceber Jesus (sem o sêmen humano
e sem romper o hímen), mas dentro do matrimônio humano, veículo puro para
introduzir Deus na carne humana.
A
segunda formulação da doutrina da virgindade de Miriam centraliza a atenção
sobre a cristologia e não a mariologia. A conceição virginal de Jesus, num
sentido biológico, constitui um modelo literário para expressar a novo começo
da humanidade inaugurado por Jesus. É o novo Adão, primícias do novo céu e da
nova terra. É umna nova criação, obra não da história humana, mas de iniciativa
exclusiva de Deus. Para expressar esta verdade teológica, utilizou-se como
modelo de compreensão e de expressão a conceição virginal de Jesus. Começou-se,
assim, a falar da virgindade de Miriam de Nazaré, primeiramente, antes do parto,
mais tarde, no parto e, por fim, depois do parto[iii].
A
dimensão teológica da “virgindade grávida” de Miriam é enfatizada por Gebara e
Bingemer numa síntese feliz:
“Mais
que o dado biológico, portanto, o relato bíblico nos apresenta um caminho
teológico que conduz, através do testemunho da comunidade primitiva, à fé no
Deus Salvador. A virgindade de Maria sublinha o direito que tem Deus de
comunicar-se com seu povo não só por meio da palavra, mas também por gestos
tangíveis e concretos que permitam ao povo compreender e ‘apalpar’ a salvação
que lhe é oferecida” (GEBARA e BINGEMER, 1988, p. 123).
Confirma-se,
assim, nosso intento de realçar na feminilidade de Miriam de Nazaré não apenas
sua maternidade e esponsalidade, mas também sua virgindade. Mãe, esposa e virgem simbolizam três traços
inseparáveis de uma “mulher” que concebeu e deu à luz um filho, chamado Jesus,
o Messias anunciado no Antigo Testamento, que realizou, pela sua paixão, morte
e ressurreição, a redenção da humanidade e do cosmo. Como não reconhecer na
mãe de Jesus o símbolo e o ícone do mistério divino do Emanuel, do
Deus-conosco?
A
relação entre maternidade, esponsalidade e virgindade no contexto da
feminilidade de Miriam de Nazaré, vale dizer, para o seu ser-“mulher”, precisa
receber novas abordagens, também teológicas, enraizadas numa antropologia
feminina menos androcêntrica e celibatária, como tem sido ao longo da formação
da mariologia[iv]. Cabe enfatizar mais na mariologia a
maturidade e dignidade humana de Miriam de Nazaré, dignidade que se enraíza na
sua natureza feminina, em seu ser “mulher”, a mãe de Jesus, a esposa pura do
carpinteiro José e o verdadeiro ícone da comunidade dos discípulos “serventes”
de seu filho.
Uma
das reações mais vigorosas contra as concepções estreitas e conservadoras da
mariologia tradicional, que denigram o verdadeiro perfil humano de Miriam de
Nazaré, encontramos na já citada teóloga Uta Ranke-Heinemann. Colocando-se na
ótica de uma defesa feminista da dignidade da mãe de Jesus, escreveu:
“É
um destino sombrio para uma mulher ter de viver num colete dogmático feito por
homens. Maria encontrou-se nessa situação de forma sem paralelo. Não lhe foi
permitido partilhar de nada que tivesse a ver com a sexualidade feminina, nada
ligado ao processo natural de concepção e de parto de um filho. Não lhe
permitiram conceber seu filho através do amor de um homem, teve de ser o
Espírito Santo, e não pôde haver prazer. Não lhe foi permitido ter o filho de
forma natural, porque teve de continuar intacta durante o parto. Por fim não lhe
foi permitido ter outros filhos depois, já que isso significaria violação e
vergonha. Assim, ela foi transformada numa espécie de criatura assexuada, à
sombra de uma esposa e mãe, reduzida a sua função na história da salvação”
(RANKE-HEINEMANN, op. cit., p. 365).
O
sentido simbólico-teológico e arquetípico-figurado da virgindade é, sem dúvida,
mais relevante do que as elucubrações e torneios moralistas em torno da
historicidade da virgindade biológica de Miriam de Nazaré, pois este sentido
expressa a orientação incondicionada da
pessoa humana para o Absoluto, sua imediaticidade para Deus, na receptividade
radical e na pronúncia do “sim” à irrupção do Reino de Deus na terra. Nesse
“sim” da virgindade maternal e da maternidade virginal de Miriam se efetiva a
colaboração humana para a salvação, colaboração que teve em Miriam o seu ícone
perfeito.
“A
acolhida que a Virgem revela em sua personalidade de mulher, como ícone
concreto do feminino, que toda mulher pode realizar em si mesma e que todo
homem é chamado a respeitar e receber como elemento de profunda reciprocidade
de sua existência, é esse ser-em-profundidade, esse espaço isento de toda
exterioridade e aparência, esse seio virginal, capaz de hospedar dentro de si o
todo do mistério” (FORTE, op. cit., p. 181).
No simbolismo da virgindade de
Miriam de Nazaré resplandece o ícone da participação das mulheres na salvação
do mundo, ao defender o primado da vida sobre a teoria, do concreto sobre o
abstrato, do ser sobre o ter e o fazer e da verdade sobre a aparência.
A jovem “mulher” da Galiléia, em sua acolhida fecunda do projeto de Deus para a
humanidade e o cosmo, acolhida simbolizada em seu ser-virgem, exerceu o seu
ministério da fecundidade e o mistério do feminino, na gratuidade oblativa do
seu “sim” generoso e materno.
Bertilo Brod
[i] Entre os inúmeros exegetas
e teólogos que
defendem a não-historicidade da concepção
virginal de Jesus, merecem destaque Otto
Knoch, Gerhard Lohfink, Rudolph Schnackenburg, John McKenzie, Gerhard C. Müller
(cf. MEIER, op. cit., p. 243-4), Robert Brown, Hans Küng, X. Pikasa. R. Scheifler (cf. FORTE , op. cit., p. 165, notas
15 e 16), sem falar
da renomada teóloga católica
alemã Uta Ranke- HEINEMANN, em sua obra Eunucos pelo Reino de Deus :
mulheres , sexualidade
e a Igreja católica .
2. ed. Rio de Janeiro :
Record/Rosa dos Tempos ,
1996.
[ii] Cf. KÜNG, Hans. Ser
cristão . Rio
de Janeiro , 1976, p. 391-402).
[iii] Cf. BOFF, Leonardo. O rosto materno
de Deus . 7. ed. Petrópolis: Vozes , 1998, p. 146-147.
[iv] A doutrina
teológica tradicional da “virgindade no parto ”, por exemplo ,
afirma que o hímen
de Miriam permaneceu intacto , que o parto foi indolor , que não houve secundinas ou
páreas e que Jesus foi concebido sem prazer sexual . A própria
encíclica Redemptoris Mater, de
João Paulo II, esposa , de certa forma , esta visão teológica
tradicional, ao enfatizar que
Miriam preservou “intacta ” sua virgindade .
O texto apócrifo
do Proto-evangelho de Tiago, da metade
do século II d.C., parece ter influenciado não
poucos teólogos
posteriores . Numa linguagem
de verdadeira pornografia teológica se descreve ali
a atitude de Salomé que
somente acreditaria na virgindade
no parto se pudese submeter
Miriam a uma inspeção e “colocar
o dedo lá
dentro ”...
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