sábado, 23 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (7)

Esta é a segunda parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do segundo capítulo do ensaio, que trata das questões crucias da mariologia.


2)      Questões cruciais de mariologia bíblica (3)

O grupo de trabalho católico-protestante que organizou a obra coletiva Maria no Novo Testamento concluiu: “O grupo de trabalho concordou que a questão da historicidade da concepção virginal não podia ser estabelecida pela exegese histórico- crítica” (Apud MEIER, loc. cit., p. 242, nota 75)[i].

Como se configura, então, a teologização da concepção virginal de Jesus? Leonardo Boff, embora aceite a historicidade dos relatos de Mt 1,18-25 e de Lc 1,26-38, transcreve, com base em Hans Küng[ii], duas formulações do “teologúmeno” da concepção virginal. A primeira representa Miriam e José como um casal piedoso e puro, aguardando o Messias e suplicando a Javé que se digne escolher um de sua prole. Javé atende a súplica. Jesus, gerado pelo amor de Miriam e José, foi assumido hipostaticamente pelo Filho eterno para ser o Redentor. Miriam concebeu seu filho virginalmente, não num sentido biológico, e sim, num sentido pessoal e moral de doação plena e de amor puro a Deus, onde o amor para com José não concorria com o amor a Deus, mas fez com que este, num amor ainda mais puro e eterno, aceitasse o filho de Maria e José para ser o sacramento de seu Filho unigênito na história. Deus não excogitou uma maneira sobrenatural de fazer conceber Jesus (sem o sêmen humano e sem romper o hímen), mas dentro do matrimônio humano, veículo puro para introduzir Deus na carne humana.

A segunda formulação da doutrina da virgindade de Miriam centraliza a atenção sobre a cristologia e não a mariologia. A conceição virginal de Jesus, num sentido biológico, constitui um modelo literário para expressar a novo começo da humanidade inaugurado por Jesus. É o novo Adão, primícias do novo céu e da nova terra. É umna nova criação, obra não da história humana, mas de iniciativa exclusiva de Deus. Para expressar esta verdade teológica, utilizou-se como modelo de compreensão e de expressão a conceição virginal de Jesus. Começou-se, assim, a falar da virgindade de Miriam de Nazaré, primeiramente, antes do parto, mais tarde, no parto e, por fim, depois do parto[iii].

A dimensão teológica da “virgindade grávida” de Miriam é enfatizada por Gebara e Bingemer numa síntese feliz:

“Mais que o dado biológico, portanto, o relato bíblico nos apresenta um caminho teológico que conduz, através do testemunho da comunidade primitiva, à fé no Deus Salvador. A virgindade de Maria sublinha o direito que tem Deus de comunicar-se com seu povo não só por meio da palavra, mas também por gestos tangíveis e concretos que permitam ao povo compreender e ‘apalpar’ a salvação que lhe é oferecida” (GEBARA e BINGEMER, 1988, p. 123).

Confirma-se, assim, nosso intento de realçar na feminilidade de Miriam de Nazaré não apenas sua maternidade e esponsalidade, mas também sua virgindade. Mãe, esposa e virgem simbolizam três traços inseparáveis de uma “mulher” que concebeu e deu à luz um filho, chamado Jesus, o Messias anunciado no Antigo Testamento, que realizou, pela sua paixão, morte e ressurreição, a redenção da humanidade e do cosmo. Como não reconhecer na mãe de Jesus o símbolo e o ícone do mistério divino do Emanuel, do Deus-conosco?

A relação entre maternidade, esponsalidade e virgindade no contexto da feminilidade de Miriam de Nazaré, vale dizer, para o seu ser-“mulher”, precisa receber novas abordagens, também teológicas, enraizadas numa antropologia feminina menos androcêntrica e celibatária, como tem sido ao longo da formação da mariologia[iv]. Cabe enfatizar mais na mariologia a maturidade e dignidade humana de Miriam de Nazaré, dignidade que se enraíza na sua natureza feminina, em seu ser “mulher”, a mãe de Jesus, a esposa pura do carpinteiro José e o verdadeiro ícone da comunidade dos discípulos “serventes” de seu filho.

Uma das reações mais vigorosas contra as concepções estreitas e conservadoras da mariologia tradicional, que denigram o verdadeiro perfil humano de Miriam de Nazaré, encontramos na já citada teóloga Uta Ranke-Heinemann. Colocando-se na ótica de uma defesa feminista da dignidade da mãe de Jesus, escreveu:

“É um destino sombrio para uma mulher ter de viver num colete dogmático feito por homens. Maria encontrou-se nessa situação de forma sem paralelo. Não lhe foi permitido partilhar de nada que tivesse a ver com a sexualidade feminina, nada ligado ao processo natural de concepção e de parto de um filho. Não lhe permitiram conceber seu filho através do amor de um homem, teve de ser o Espírito Santo, e não pôde haver prazer. Não lhe foi permitido ter o filho de forma natural, porque teve de continuar intacta durante o parto. Por fim não lhe foi permitido ter outros filhos depois, já que isso significaria violação e vergonha. Assim, ela foi transformada numa espécie de criatura assexuada, à sombra de uma esposa e mãe, reduzida a sua função na história da salvação” (RANKE-HEINEMANN, op. cit., p. 365).

O sentido simbólico-teológico e arquetípico-figurado da virgindade é, sem dúvida, mais relevante do que as elucubrações e torneios moralistas em torno da historicidade da virgindade biológica de Miriam de Nazaré, pois este sentido expressa a orientação incondicionada da pessoa humana para o Absoluto, sua imediaticidade para Deus, na receptividade radical e na pronúncia do “sim” à irrupção do Reino de Deus na terra. Nesse “sim” da virgindade maternal e da maternidade virginal de Miriam se efetiva a colaboração humana para a salvação, colaboração que teve em Miriam o seu ícone perfeito.

“A acolhida que a Virgem revela em sua personalidade de mulher, como ícone concreto do feminino, que toda mulher pode realizar em si mesma e que todo homem é chamado a respeitar e receber como elemento de profunda reciprocidade de sua existência, é esse ser-em-profundidade, esse espaço isento de toda exterioridade e aparência, esse seio virginal, capaz de hospedar dentro de si o todo do mistério” (FORTE, op. cit., p. 181).

No simbolismo da virgindade de Miriam de Nazaré resplandece o ícone da participação das mulheres na salvação do mundo, ao defender o primado da vida sobre a teoria, do concreto sobre o abstrato, do ser sobre o ter e o fazer e da verdade sobre a aparência. A jovem “mulher” da Galiléia, em sua acolhida fecunda do projeto de Deus para a humanidade e o cosmo, acolhida simbolizada em seu ser-virgem, exerceu o seu ministério da fecundidade e o mistério do feminino, na gratuidade oblativa do seu “sim” generoso e materno.
Bertilo Brod

[i] Entre os inúmeros exegetas e teólogos que defendem a não-historicidade da concepção virginal de Jesus, merecem destaque Otto Knoch, Gerhard Lohfink, Rudolph Schnackenburg, John McKenzie, Gerhard C. Müller (cf. MEIER, op. cit., p. 243-4), Robert Brown, Hans Küng, X. Pikasa. R. Scheifler (cf. FORTE, op. cit., p. 165, notas 15 e 16), sem falar da renomada teóloga católica alemã Uta Ranke- HEINEMANN, em sua obra Eunucos pelo Reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja católica. 2. ed. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.
[ii] Cf. KÜNG, Hans. Ser cristão. Rio de Janeiro, 1976, p. 391-402).
[iii] Cf. BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 146-147.
[iv] A doutrina teológica tradicional da “virgindade no parto”, por exemplo, afirma que o hímen de Miriam permaneceu intacto, que o parto foi indolor, que não houve secundinas ou páreas e que Jesus foi concebido sem prazer sexual. A própria encíclica Redemptoris Mater, de João Paulo II, esposa, de certa forma, esta visão teológica tradicional, ao enfatizar que Miriam preservou “intactasua virgindade. O texto apócrifo do Proto-evangelho de Tiago, da metade do século II d.C., parece ter influenciado não poucos teólogos posteriores. Numa linguagem de verdadeira pornografia teológica se descreve ali a atitude de Salomé que somente acreditaria na virgindade no parto se pudese submeter Miriam a uma inspeção e “colocar o dedo dentro”...


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