O que Deus deseja é que em tudo haja igualdade.
(Sb 1,13-15; 2,23-24; Sl 29/30;
2Cor 8,7-9.13-15; Mc 5,21-43)
É triste constatar, mas vamos nos
acostumando com os atos, atitudes e estruturas contrárias ao Evangelho de Jesus
Cristo. A cultura funciona de modo semelhante ao nosso corpo: se começamos
ingerindo pequenas doses de veneno letal e formos aumentando levemente a
medida, as células, tecidos e aparelhos vão se habituando e acabam não reagindo
mais. Assim também acontece com a corrupção, a injustiça e a mentira: às custas
de doses diárias, ininterruptas e crescentes deste veneno, os cristãos
assimilamos esse material venenoso e mortífero como natural e não conseguimos
mais esboçar reações contrárias. Até as Igrejas, uma vez institucionalizadas,
são tentadas a obedecer mais à diplomacia e às exigências do status social que ao Evangelho, e acabam
priorizando as pessoas e setores que em tudo já foram premiadas com ações
preferenciais.
“Deus não fez a morte e não se alegra com a perdição
dos vivos.”
É velho o hábito de debitar a Deus a
conta da morte, tanto das pessoas queridas quanto das massas anônimas e mais ou
menos distantes. Resistimos quase instintivamente a assumir nossas responsabilidades
e a investigar as causas dos males, mas precisamos encontrar uma lógica nos
acontecimentos que escapam ao nosso controle. E como nos ensinaram que Deus se
reveste de poder e de conhecimento absolutos, ele acaba sendo responsabilizado.
Os sábios hebreus já procuraram
enfrentar a questão da causa e do sentido da morte, tanto da morte física e
inevitável no fim dos anos como da morte imposta e da morte social
(marginalização e exclusão). “Deus não fez a morte e não se alegra com a
perdição dos vivos”, dis o livro da Sabedoria. Deus cria o mundo por amor e
inscreve este dinamismo no segredo das coisas. Por isso, “não é o mundo dos
mortos que reina sobre a terra”, e o Deus vivo é o horizonte maior no qual a
vida e a morte adquirem sentido.
“Veio então um dos chefes das sinagogas, chamado
Jairo...”
O mundo no qual Jesus se movimenta e
atua não é a metafísica abstrata mas a sociedade concreta. O que está em
questão no evangelho proclamado hoje não é a morte enquanto tal, mas a morte
social, que denominamos marginalização. Jesus não se interessa prioritariamente
por conceitos ou leis. Ele está implicado com a vida e a dignidade concretas
das pessoas. Sua preocupação não é com coisas assim ditas espirituais mas com
aquilo que melhora ou dificulta o bem
viver do seu povo.
As ações e palavras de Jesus estão
referidas e um contexto sociocultural bem específico. Lucas coloca à nossa
frente duas categorias de pessoas. Na
primeira categoria entra Jairo, que tem
nome, é chefe de uma sinagoga e chefe de uma família. Entra também sua
filha que, estando doente, pode contar com a assistência própria da sua classe
social. Jairo trata Jesus como alguém do seu nível, fazendo-lhe a reverência
devida às pessoas consideradas dignas. Mas parece que a polidez esconde a falta
de fé.
Na segunda categoria está uma mulher sem nome, um ser anônimo e
perdido no meio da multidão, encurvada sob o peso de uma hemorragia que a leva
às mãos de exploradores duplicam sua condição de marginalizada: mulher, impura
e pobre. Ela não tem nome, nem família, nem honra. Vive sob o manto da
vergonha, esta sensibilidade pessoal diante do que os outros pensam de sua
honra. Ninguém intercede em seu favor. E ela sabe que não pode se aproximar de
Jesus como as pessoas honradas.
“Quem me tocou?”
Definitivamente, Jesus não respeita
os costumes do código de honra que
rege as relações sociais de Israel. Já sabemos que ele faz questão de subverter a ordem quando se trata de socorrer as
pessoas em situação de vulnerabilidade. Neste caso, Jesus deixa em segundo
plano o atendimento ao pedido de Jairo, uma pessoa com status e reconhecimento social, a se entretém com uma pessoa
triplamente proscrita. E não quer nem saber se com isso coloca em risco a vida
da filha de Jairo.
Diversamente de Jairo que,
respeitosamente se inclina aos pés de Jesus e lhe solicita sua intervenção, a
mulher anônima e sem classe, aproxima-se por trás e toca-lhe o manto,
marcando-o com a impureza que lhe era atribuída. Este gesto desesperado de uma
pessoa habituada ao sofrimento não passa incógnito a Jesus. Ele interrompe tudo
para falar com esta pessoa sem nome e desclassificada. “Quem tocou na minha
roupa?... Ele olhava ao redor para ver quem o havia tocado.”
“Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da
tua doença.”
Jesus não obedece as leis do código de honra e inverte as coisas.
Maria já havia proclamado que Deus rebaixa os orgulhosos e eleva os humildes. E
Jesus repetirá que, no código do coração de Deus, os últimos são os primeiros e os primeiros são os últimos. A
mulher, vítima de uma sociedade patriarcal, de um sistema de pureza e de um
sistema médico explorador, mesmo sem pedir nada, tem prioridade sobre o pedido
de uma reconhecida autoridade.
Só depois de curada, e sabendo que
era procurada, a mulher cai aos pés de Jesus, conta o drama que vivera e que
chegava ao fim, expõe a vergonha que carregava por ser vista e tratada como
impura. O medo e a vergonha desaparecem e dão lugar à alegria quando ela escuta
da boca de Jesus: “Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua
doença.” Ela é a verdadeira e amada filha
de Deus. Seu gesto não foi demonstração de desespero mas de uma fé
autêntica e fecunda, fé que deve ser imitada.
Com isso, Jesus inverte radicalmente o status da mulher empobrecida e
duplamente marginalizada. Levantando-se do mais baixo degrau da escala da
honra, ela interrompe uma missão em favor da filha de alguém que está no mais
alto degrau desta escala. Proclamando-a “filha”, Jesus a coloca no centro e a
integra no grupo das pessoas realmente honradas diante de Deus. Além de
restaurar sua saúde,a ação e a palavra de Jesus lhe dão um status superior ao
dos discípulos, pois eles não têm fé (cf. Mc 4,40).
“Não tenhas medo, somente crê.”
Depois desta cena, que não é um
parênteses e sim um destaque, Jesus segue seu caminho em direção à casa de
Jairo. Ele se mostra indiferente à notícia de que a menina morrera, e segue
como se não tivesse perdido nada. Mais ainda: pede que Jairo siga o exemplo
daquela mulher anônima e considerada socialmente inferior. “Não tenhas medo,
somente crê.” Que inversão! A mulher
impura não deve ser evitada mas imitada. Os pobres são nossos mestres!
O convite para que Pedro, Tiago e
João o acompanhem sublinha a importância da ação. Chegando à casa, Jesus
observa a agitação e as lamentações, conformes ao que o costume ditava para
estes momentos, mas não vê demonstração de fé. Tanto que os presentes deixam de
lamentar e passam a zombar de Jesus. Enquanto a mulher sofrera por 12 anos a
exploração e a marginalização, a menina usufruíra 12 anos do privilégio de ser
filha do chefe da Sinagoga. Mas estava à beira da morte.
À menina, Jesus ordena que se
levante, o que acontece prontamente. O
que estava à beira do colapso e necessitava ser regenerado era exatamente a
ordem social representada por Jairo. Com esta ação Jesus mostra que se esta
ordem social deseja ser salva e viver precisa abrir-se à fé e aderir ao
dinamismo do Reino de Deus, que é uma nova
ordem, um outro mundo, no qual todas as pessoas gozam do mesmo status, de
igual dignidade. Somente isso liberta os marginalizados e poupa os ‘honrados’.
A exortação de Paulo está ligada a
uma questão diferente: a partilha econômica solidária entre as comunidades
cristãs. Mas o argumento ao qual ele recorre serve também para a questão que
Jesus enfrenta no texto que acabamos de refletir. Tanto a partilha de bens com quem
necessita como a prioridade aos últimos da escala social, são questões ligadas
à sinceridade do amor e ao reconhecimento e restauração da igualdade
fundamental de todas as pessoas humanas.
Jesus de Nazaré, profeta do Reino de Deus, amigo e próximo das pessoas
menosprezadas e excluídas: tua delicadeza para com a mulher anônima e mestra na
fé nos comove e nos interpela, e a cura da filha de Jairo nos convoca a salvar
nossas instituições subordinando-as à lógica do reino de Deus. Como comunidade
de discípulos e discípulas te pedimos: ajuda-nos a tirar a máscara de amor e de
fé com que tua Igreja encobre a discriminação das mulheres e o distanciamento
das pessoas e grupos marginalizados. Que nossa missão seja fazer com que os últimos
sejam os primeiros. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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