Atrapalhos com ações cotidianas
Na quinta-feira, 15 de março,
começamos a visita a Sangatta. Chegamos no início da tarde, depois de quase 5
horas de estrada, conforme o previsto. A estrada é aceitável para um terreno de
clima equatorial. Claro que o tipo de solo, juntamente com o intenso tráfego e
as constantes chuvas da estação, danifica facilmente o asfalto, de modo que são
muitos buracos. Mas nada que não seja
contornável. No trajeto, paramos uns 30 minutos para um lanche. Tomei uma
gostosa água de coco com tahufu, un alimento esponjoso e gostoso derivado do
soja.
Aspecto exterior da igreja-matriz de Sangatta |
Aliás, o alimento é um caso à parte
nessa região. Depois de duas semanas, claro que dá saudade da massa italiana,
assim como do pão e dos queijos. Isso para não falar na carne assada, no
feijão, nas abundantes saladas e no chimarrão do Brasil... Menos mal que o
mamão, o abacaxi, a manga, o coco e outras frutas tropicais abundam também por
aqui. E tem o arroz nosso de cada dia, de manhã, de tarde e de noite. Acho que
é por isso que a língua indonesiana não distingue as três refeições do dia:
chama todas pelo mesmo nome – makan/comida – e apenas acrescenta o advérbio de
tempo: de manhã (makan pagi), do meio-dia (makan sian), da noite (makan malam).
Acompanham o arroz de sempre
variados caldos ou sopas, quase sempre à base de legumes e folhas. Como o arroz
é preparado sem nenhum tempero (nem mesmo sal), o caldo temperado de folhas
(couve, ortelã, cidreira...) e legumes (cenoura, batatinha, bambu, gengibre,
cebola...) é o que dá sabor ao arroz. Mas junto com as sopas sempre há algum
cereal frito ou cozido. Nunca falta também um ou mais pratos de peixe, alimento
abundante e cotidiano num país constituído de ilhas, cercado de águas marinhas
por todos os lados e, em Kalimantan, banhado por grandes rios. A carne de porco
ou de frango, sempre em pequena quantidade, também aparece de vez em quando.
Mais rara e mais apreciada é a carne de cachorro, sempre muito apimentada, que
já apreciei duas vezes nesta viagem. Dignos de nota são os molhos, sempre
agri-doces e muito picantes. Mas os indonesianos sempre acrescentam muita
pimenta aos já ultra-apimentados pratos que são servidos. Os baianos perdem
pelo menos de 5 a 0...
Comunidade MSF de Sangatta |
Conhecendo nossos hábitos
alimentares mediterrâneos, a maioria dos nossos colegas providencia pão,
manteiga e queijo, ao menos para o café da manhã. Mas estes são alimentos que
não fazem parte da dieta do povo daqui, e nem sempre é fácil encontrá-los,
especialmente no interior. Claro que no início a gente estranha, mas depois vai
se habituando a comer como eles. Eu sempre me faço uma pergunta: será que
quando eles vão à Europa nós preparamos para o desjejum deles arroz, carne,
peixe e sopa? Se não fazemos isso por eles, por que ele teriam que fazê-lo por
nós? Com estes pensamentos, afundo a colher no arroz (sim, aqui se come arroz e
tudo o mais com colher, se não com a mão mesmo!), misturando-o com peixe e ovo
frito...
Sangatta é uma cidade com mais ou
menos 70.000 habitantes, 4.000 dos quais são católicos (mais ou menos 6%). A
principal atividade econômica da cidade é a mineração de carvão (40 milhões de toneladas
só em 2007!), atividade que emprega maios de 8.000 pessoas. Na manhã do dia 16
tivemos a oportunidade de visitar a mineradora KPC, que emprega diretamente
5.000 pessoas. É impressionante a extensão da mina, a abundância e a qualidade
do carvão, recolhido praticamente a céu aberto, destinado ò exportação e usado
prioritariamente na produção de aço (por causa da excelente qualidade).
Contemplando as imensas caçambas fora-de-estrada (que carregam até 320
toneladas por carga e têm quase 8 metros de altura!) que transportam o minério
no interior da mina, fiquei surpreendido (as amigas me desculpem pela
extrojeção desse preconceito introjetado!) ao constatar que uma jovem mulher
mussulmana guiava aquela enorme máquina.
Esta é a parte frontal de um 'pequeno' veiculo... |
Claro que essa atividade tem algumas
consequências nocivas para o ambiente. Aliás, o ambiente é uma verdadeira
emergência nacional na Indonésia. Nunca vi, em nenhum lugar, rios e riachos tão
poluídos, tanto nas cidades como no interior. É impossível até mesmo descrever.
Claro que tem a questão da superpopulação, mas é também uma questão de
educação, de hábitos. A maioria dos próprios colegas não se dá conta disso, e
joga lixo em qualquer lugar. Uma das consequências dessa poluição ampla e
galopante é o comprometimento total da água. Em todo o país, da capital às
cidadezinhas do interior, as pessoas só podem beber água mineral envasada.
Ninguém se atreve a beber das fontes, e água oferecida pelas empresas de
saneamento não é potável. E o pior é que esta montanha de plásticos que envasam
a água acaba agravando ainda mais a poluição (e sustentam multinacionais, como
a Nestlé e a Danone, que controlam o comércio de água mineral na Indonésia).
A cidade de Sangatta conta com os
serviços de uma única paróquia, animada por três coirmãos Missionários da
Sagrada Família (e são 24 as comunidades, 12 das quais urbanas, que eles
visitam mensalmente). O responsável pelos trabalhos é o Pe. Krispinus Cosmas
Boli Tukan,34 anos, mais uma das vocações oriundas da catolicíssima ilha de
Flores. Ele nos contou que sempre desejou ser padre da congregação do Verbo
Divino (que tem uma forte presença em Flores), mas um tio acabou mudando os
rumos da sua história. O tal tio trabalhou como professor e catequista em
Samarinda, região predominamtemente mussulmana, onde conheceu os Missionários
da Sagrada Família, sobre os quais lhe falou com entusiamo. Os caminhos de Deus
são realmente inusitados... O Pe. Krispinus é auxiliado pelo Pe. Erdywide Naha
Duhar, 30 anos, também oriundo de Flores, e, desde a última semana, pelo Fr.
Davi Ravoany Samianagnadaza, um jovem de 27 anos que veio de Madagascar para
fazer dois anos de estágio missionário.
Vejam como fico eu diante deste 'possante'. |
A presença deste jovem que, com
apenas alguns meses de estudo da língua indonesiana, já consegue se comunicar
bem e ousa desenvolver algumas atividades pastorais, me convida a imaginar
possibilidades (talvez, necessidades) de um intercâmbio desse tipo na América
Latina. É verdade que em nossa região os junioristas são poucos, mas não temos
a barreira da língua, e a distância cultural e geográfica também não são assim
tão grandes. Creio que os frutos seriam muitos e bons. Será que não podemos
imaginar um intercâmbio semelhante, superando o bairrismo das nossas
províncias? Ou será que fomos picados pelo mosquito europeu e preferimos morrer
sozinhos e em paz que sermos perturbados pelos coirmãos que ainda desejam viver
e crescer?
A casa onde reside nossa comunidade
de Sangatta é pequena, simples e acolhedora. Como chegamos 4 visitantes de uma
só vez (eu, Santiago, o tradutor Pe. Garin e motorista Pe. Felix), os coirmãos
tiveram que nos alojar num hotel. Assim, fazemos com eles as refeições, mas
dormimos no hotel de uma família católica da cidade. Tratamento VIP para os
estrangeiros... Curti de modo especial o primeiro banho de ducha e com água
morna em 16 dias de Indonésia! Aqui o povo tem o hábito de tomar banho de
caneca, e as casas, mesmo mais recentes e xiques, não têm duchas instaladas...
Fora-de-estrada para 320 toneladas de minério... |
E tem outro detalhe que deixa os
ocidentais encabulados: este povo não usa papel higiênico! Para a higine, faz
uso da caneca ou (nos banheiros mais modernos) da água de uma mangueira. Vocês
podem imaginar o nosso atrapalho na execução de um ato tão trivial! Algumas
almas caridosas se lembram disso e se apressam em comprar algum rolo de papel.
E nós, discretamente, tiramos um bom pedaço e levamos na mala para uso contínuo...
Finalmente,
visitamos o Centro Católico da
cidade: um enorme complexo com dois edifícios (uma igreja para aproximadamente
600 pessoas e um centro pastoral com várias salas e espaços). É uma nova
construção, ainda não inaugurada, situada nas proximidades da cidade. O que me
intriga é que esta é uma obra doada integralmente pelos governos da cidade e da
região. Pergunto-me como é possível que governos de um estado praticamente
mussulmano “abram a mão” para ajudar a Igreja Católica (como acontece também com
a construção das duas igrejas em Balikpapan e com a construção do palácio
episcopal em Samarinda). Claro que precisamos levar em conta que aqui os
católicos são minoria, mas uma minoria influente, inclusive do ponto de vista
econômico. E os governos não querem ser acusados de favorecer unilateralmente
os mussulmanos e desejam passar por laicos e democráticos.
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