segunda-feira, 2 de julho de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (9)


Atrapalhos com ações cotidianas
Na quinta-feira, 15 de março, começamos a visita a Sangatta. Chegamos no início da tarde, depois de quase 5 horas de estrada, conforme o previsto. A estrada é aceitável para um terreno de clima equatorial. Claro que o tipo de solo, juntamente com o intenso tráfego e as constantes chuvas da estação, danifica facilmente o asfalto, de modo que são muitos buracos.  Mas nada que não seja contornável. No trajeto, paramos uns 30 minutos para um lanche. Tomei uma gostosa água de coco com tahufu, un alimento esponjoso e gostoso derivado do soja.
Aspecto exterior da igreja-matriz de Sangatta
Aliás, o alimento é um caso à parte nessa região. Depois de duas semanas, claro que dá saudade da massa italiana, assim como do pão e dos queijos. Isso para não falar na carne assada, no feijão, nas abundantes saladas e no chimarrão do Brasil... Menos mal que o mamão, o abacaxi, a manga, o coco e outras frutas tropicais abundam também por aqui. E tem o arroz nosso de cada dia, de manhã, de tarde e de noite. Acho que é por isso que a língua indonesiana não distingue as três refeições do dia: chama todas pelo mesmo nome – makan/comida – e apenas acrescenta o advérbio de tempo: de manhã (makan pagi), do meio-dia (makan sian), da noite (makan malam).
Acompanham o arroz de sempre variados caldos ou sopas, quase sempre à base de legumes e folhas. Como o arroz é preparado sem nenhum tempero (nem mesmo sal), o caldo temperado de folhas (couve, ortelã, cidreira...) e legumes (cenoura, batatinha, bambu, gengibre, cebola...) é o que dá sabor ao arroz. Mas junto com as sopas sempre há algum cereal frito ou cozido. Nunca falta também um ou mais pratos de peixe, alimento abundante e cotidiano num país constituído de ilhas, cercado de águas marinhas por todos os lados e, em Kalimantan, banhado por grandes rios. A carne de porco ou de frango, sempre em pequena quantidade, também aparece de vez em quando. Mais rara e mais apreciada é a carne de cachorro, sempre muito apimentada, que já apreciei duas vezes nesta viagem. Dignos de nota são os molhos, sempre agri-doces e muito picantes. Mas os indonesianos sempre acrescentam muita pimenta aos já ultra-apimentados pratos que são servidos. Os baianos perdem pelo menos de 5 a 0...
Comunidade MSF de Sangatta
Conhecendo nossos hábitos alimentares mediterrâneos, a maioria dos nossos colegas providencia pão, manteiga e queijo, ao menos para o café da manhã. Mas estes são alimentos que não fazem parte da dieta do povo daqui, e nem sempre é fácil encontrá-los, especialmente no interior. Claro que no início a gente estranha, mas depois vai se habituando a comer como eles. Eu sempre me faço uma pergunta: será que quando eles vão à Europa nós preparamos para o desjejum deles arroz, carne, peixe e sopa? Se não fazemos isso por eles, por que ele teriam que fazê-lo por nós? Com estes pensamentos, afundo a colher no arroz (sim, aqui se come arroz e tudo o mais com colher, se não com a mão mesmo!), misturando-o com peixe e ovo frito...
Sangatta é uma cidade com mais ou menos 70.000 habitantes, 4.000 dos quais são católicos (mais ou menos 6%). A principal atividade econômica da cidade é a mineração de carvão (40 milhões de toneladas só em 2007!), atividade que emprega maios de 8.000 pessoas. Na manhã do dia 16 tivemos a oportunidade de visitar a mineradora KPC, que emprega diretamente 5.000 pessoas. É impressionante a extensão da mina, a abundância e a qualidade do carvão, recolhido praticamente a céu aberto, destinado ò exportação e usado prioritariamente na produção de aço (por causa da excelente qualidade). Contemplando as imensas caçambas fora-de-estrada (que carregam até 320 toneladas por carga e têm quase 8 metros de altura!) que transportam o minério no interior da mina, fiquei surpreendido (as amigas me desculpem pela extrojeção desse preconceito introjetado!) ao constatar que uma jovem mulher mussulmana guiava aquela enorme máquina.
Esta é a parte frontal de um 'pequeno' veiculo...
Claro que essa atividade tem algumas consequências nocivas para o ambiente. Aliás, o ambiente é uma verdadeira emergência nacional na Indonésia. Nunca vi, em nenhum lugar, rios e riachos tão poluídos, tanto nas cidades como no interior. É impossível até mesmo descrever. Claro que tem a questão da superpopulação, mas é também uma questão de educação, de hábitos. A maioria dos próprios colegas não se dá conta disso, e joga lixo em qualquer lugar. Uma das consequências dessa poluição ampla e galopante é o comprometimento total da água. Em todo o país, da capital às cidadezinhas do interior, as pessoas só podem beber água mineral envasada. Ninguém se atreve a beber das fontes, e água oferecida pelas empresas de saneamento não é potável. E o pior é que esta montanha de plásticos que envasam a água acaba agravando ainda mais a poluição (e sustentam multinacionais, como a Nestlé e a Danone, que controlam o comércio de água mineral na Indonésia).
A cidade de Sangatta conta com os serviços de uma única paróquia, animada por três coirmãos Missionários da Sagrada Família (e são 24 as comunidades, 12 das quais urbanas, que eles visitam mensalmente). O responsável pelos trabalhos é o Pe. Krispinus Cosmas Boli Tukan,34 anos, mais uma das vocações oriundas da catolicíssima ilha de Flores. Ele nos contou que sempre desejou ser padre da congregação do Verbo Divino (que tem uma forte presença em Flores), mas um tio acabou mudando os rumos da sua história. O tal tio trabalhou como professor e catequista em Samarinda, região predominamtemente mussulmana, onde conheceu os Missionários da Sagrada Família, sobre os quais lhe falou com entusiamo. Os caminhos de Deus são realmente inusitados... O Pe. Krispinus é auxiliado pelo Pe. Erdywide Naha Duhar, 30 anos, também oriundo de Flores, e, desde a última semana, pelo Fr. Davi Ravoany Samianagnadaza, um jovem de 27 anos que veio de Madagascar para fazer dois anos de estágio missionário.
Vejam como fico eu diante deste 'possante'.
A presença deste jovem que, com apenas alguns meses de estudo da língua indonesiana, já consegue se comunicar bem e ousa desenvolver algumas atividades pastorais, me convida a imaginar possibilidades (talvez, necessidades) de um intercâmbio desse tipo na América Latina. É verdade que em nossa região os junioristas são poucos, mas não temos a barreira da língua, e a distância cultural e geográfica também não são assim tão grandes. Creio que os frutos seriam muitos e bons. Será que não podemos imaginar um intercâmbio semelhante, superando o bairrismo das nossas províncias? Ou será que fomos picados pelo mosquito europeu e preferimos morrer sozinhos e em paz que sermos perturbados pelos coirmãos que ainda desejam viver e crescer?
A casa onde reside nossa comunidade de Sangatta é pequena, simples e acolhedora. Como chegamos 4 visitantes de uma só vez (eu, Santiago, o tradutor Pe. Garin e motorista Pe. Felix), os coirmãos tiveram que nos alojar num hotel. Assim, fazemos com eles as refeições, mas dormimos no hotel de uma família católica da cidade. Tratamento VIP para os estrangeiros... Curti de modo especial o primeiro banho de ducha e com água morna em 16 dias de Indonésia! Aqui o povo tem o hábito de tomar banho de caneca, e as casas, mesmo mais recentes e xiques, não têm duchas instaladas...
Fora-de-estrada para 320 toneladas de minério...
E tem outro detalhe que deixa os ocidentais encabulados: este povo não usa papel higiênico! Para a higine, faz uso da caneca ou (nos banheiros mais modernos) da água de uma mangueira. Vocês podem imaginar o nosso atrapalho na execução de um ato tão trivial! Algumas almas caridosas se lembram disso e se apressam em comprar algum rolo de papel. E nós, discretamente, tiramos um bom pedaço e levamos na mala para uso contínuo...
Finalmente, visitamos o Centro Católico da cidade: um enorme complexo com dois edifícios (uma igreja para aproximadamente 600 pessoas e um centro pastoral com várias salas e espaços). É uma nova construção, ainda não inaugurada, situada nas proximidades da cidade. O que me intriga é que esta é uma obra doada integralmente pelos governos da cidade e da região. Pergunto-me como é possível que governos de um estado praticamente mussulmano “abram a mão” para ajudar a Igreja Católica (como acontece também com a construção das duas igrejas em Balikpapan e com a construção do palácio episcopal em Samarinda). Claro que precisamos levar em conta que aqui os católicos são minoria, mas uma minoria influente, inclusive do ponto de vista econômico. E os governos não querem ser acusados de favorecer unilateralmente os mussulmanos e desejam passar por laicos e democráticos.

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