Este
é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor
aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor.
Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que apresenta uma
reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.
3.3 O ensinamento libertador
do Magnificat (1)
Antes de apresentar Miriam de Nazaré como poetisa e pedagoga da libertação, releva
fazer algumas observações sobre a origem e a estrutura literária do Magnificat.
A origem do hino continua sendo objeto de inúmeras controvérsias. Inicialmente,
se acreditava que a autoria do cântico fosse da mãe de Jesus, segundo alguns,
por ocasião da visita a Isabel ou, segundo outros, após a ressurreição, pois
testemunha o espírito de vitória da Páscoa. Amparando-se em alguns manuscritos
secundários, autores do início do séc. XX, defendiam a tese da autoria de
Isabel. Uma terceira versão sustenta que o Magnificat é fruto de uma
composição literária de Lucas, colocada nos lábios de mãe de Jesus para
exaltá-la e proclamá-la “bem-aventurada”. Mais recentemente, muitos exegetas e
mariólogos retificam e complementam esta tese, reconhecendo no hino um trabalho
de adaptação e de “costura” do evangelho de Lucas sobre uma composição judaica
preexistente, talvez da época dos Macabeus, ou originária do ambiente dos
“pobres de Javé”[i],
que exaltavam a obra libertadora de Deus em prol dos humildes e dos pobres e
que não se compraziam com sua situação de miséria, mas suspiravam por justiça e
libertação.
A comunidade primitiva, ou o pobre Lucas,
vendo em Miriam a representante privilegiada destes pobres e humildes e vendo
as maravilhas que Deus operara nela e no novo povo de Deus, teria assumido o
hino, acrescentando-lhe o versículo 48 (“Porque olhou para a humilhação de sua
serva. Sim! Doravante, as gerações todas me chamarão de bem-aventurada”) e
atribuindo tudo a Miriam, como se o hino tivesse sido proferido por ocasião da
visita a Isabel, ou após a Páscoa. Portanto, o Magnificat, de acordo com
os defensores desta quarta tese, entre os quais nos incluímos, não seria um
canto literal e originário de Miriam de Nazaré, e sim, uma elaboração teológica
de Lucas e de sua comunidade, aproveitando material anterior, judaico-cristão.
O evangelista não inventou, porém,
arbitrariamente o poema e nem fez dele uma miscelânea de citações recolhidas cá
e lá no Antigo Testamento[ii].
A estrutura literária do hino corresponde claramente à de um Salmo de louvor,
dividido em três partes. Na primeira (v. 46-50), Miriam recorda o que Deus fez
nela, a serva humilde e humilhada, e louva o Senhor pela salvação recebida do
Todo-poderoso. Na segunda parte (v. 51-53), utilizando uma série de verbos
gregos no tempo do aoristo, recurso lingüístico que indica um processo em
curso, um modo de agir de Deus no correr dos tempos, tanto no passado como no
presente e no futuro, o hino exalta o que Deus fez no conjunto da humanidade e
louva a Deus pela salvação dos pequenos, oprimidos e pobres. Através de um
paralelismo antitético, em forma de quiasmo, o evangelista, retroativamente,
coloca nos lábios da jovem mãe a louvação destes gestos extraordinários de
Deus, porque interpreta a concepção do Messias à luz da ressurreição, isto é,
da cristologia pós-pascal da Igreja de Jerusalém. Na última parte (v. 54-55), é
relembrada a ação de Deus em favor de Israel, o povo da promessa, louvando-o
por sua fidelidade misericordiosa. Os cristãos, os novos anawim do
Senhor, sentiam-se como o “pequeno resto de Israel” e reconheciam que a
salvação realizada por Jesus de Nazaré, ressuscitado e exaltado à direita do
Pai, constituía a suprema e derradeira expressão da misericórdia fiel de Deus
em prol da humanidade sofredora e oprimida.
No louvor, em forma de poesia, colocado nos
lábios de Miriam de Nazaré, estão condensadas três faces da mesma protagonista: a mulher de fé (v. 46-50), a mãe
do Messias e representante da nova humanidade inaugurada pelo Reino de Deus (v.
51-53) e a filha de Sião que reza em
sintonia com a memória dos patriarcas e dos profetas (v 54-55). Retomando a
história da aliança do povo judeu, o cântico de Miriam “rompe o etnocentrismo
judaico, com a percepção de que a promessa de Deus se estende a todos os povos,
na fé” (MURAD, op. cit., p. 115).
Dentro do contexto literário do Evangelho
da Infância de Lucas (Lc 1 – 2), o hino do Magnificat, a despeito da sua
unidade literária assaz bem estruturada, é como que um parêntesis no relato da
visitação (Lc 1,39-56). Do ponto de vista narrativo, a passagem direta do
versículo 45 ao versículo 56 daria maior fluência ao capítulo. Falta nexo
histórico entre o nascimento de Jesus e as palavras de Miriam, como, aliás,
também entre o cântico de Zacarias, o Benedictus, e o nascimento de João
Batista.
Não obstante isso, o Magnificat se
move perfeitamente no projeto teológico de Lc 1 – 2, que considera Miriam não
apenas como um indivíduo, mas como Israel personificado, que toma posse das
promessas de salvação. O cântico de
Miriam de Nazaré é também o cântico coletivo de Israel: nele se expressa a
esperança escatológica em dimensões universais e cósmicas. A ação de graças de
Miriam recapitula a ação de graças de todo o povo de Israel, mas principalmente
dos “pobres de Javé”, a porção privilegiada do povo eleito, em busca da
redenção, Miriam os personifica porque nela se realizou a vinda do Messias, do
Deus que ama os pobres e os humildes, do Deus-conosco que se constitui na
suprema exaltação numa extrema humilhação[iii].
O último dístico do Magnificat estabelece uma aproximação tipológica
entre a mãe de Jesus e Abraão, o pai dos crentes[iv].
Além de preludiar o programa da ação de
Jesus (cf. Lc 4,16-19) e de já conte-lo em germe, o cântico do Magnificat resume, poética e teologicamente, vários temas
caros a Lucas, como o da alegria do tempo de preparação e espera do Messias, o
da fidelidade amorosa e misericordiosa de Deus e o da justiça universal e
libertadora de Deus em prol dos humildes e dos pobres. Estes temas constituem,
outrossim, a quintessência da espiritualidade e da postura profética e
educativa da mestra de Nazaré, cujos horizontes paradigmáticos e pedagógicos
importa aprofundar.
Dos elementos
centrais da espiritualidade de Miriam de Nazaré, destacamos: sua partilha
da condição de pobreza e humilhação da maioria do seu povo, acompanhada da sua
confiança incondicional no Salvador, sua adesão à luta pela justiça e sua
atitude profética e pedagógica de proclamar o amor de Deus e sua ação
transformadora das relações humanas injustas e desiguais, em decorrência da
vinda do Reino de Deus, realizando a utopia escatológica do Emanuel, do
Deus-conosco. Esta última dimensão da espiritualidade de Miriam de Nazaré brota
do tema da justiça libertadora de Deus, cujo “rosto materno” nela recebeu
expressão concreta pelo mistério da encarnação[v].
Bertilo Brod
[i] Cf. GELIN, A. Les Pauvres de Jahvé. Paris: Cerf,
1953, especialmente p. 80-93. Quem eram os “pobres
de Javé ”? Como
entender a pobreza
dos “anawim”? O termo “pobre ” (em
hebraico: anaw/ani, pl. anawim) tem uma longa
história na Bíblia .
Em seu
sentido literal ,
significa “o recurvado diante dos que o humilham”. Utilizado 105 vezes
no Antigo Testamento ,
com seu
plural “anawim”, comporta ,
ao mesmo tempo ,
um sentido
social e uma postura
de vida . Os pobres
são levados
a se dobrarem diante dos opressores e poderosos .
Para assegurar sua dignidade , eles se reconhecem pequenos
diante de Deus .
Daí, o sentido de “humilhação ”
acompanhado de “humildade ”,
confiante na promessa
de Javé : “... em
teu meio
não haverá nenhum
pobre , porque
Javé vai abençoar-te na terra
que Javé
teu Deus
te dará, para
que a possuas como
herança ” (Dt 15,4).
No Magnificat,
o termo tapéinosis do versículo 48, aplicado à “humilhação ”
de Miriam, além do sentido
moral de “humildade ”
diante de Deus ,
diz respeito à sua
condição social
de pequenez e insignificância
diante do mundo
e de solidariedade com
os pobres e os oprimidos .
[ii] Para uma
investigação mais
rigorosa do “background ”
bíblico do Magnificat, consultar
SCHILLEBEECKX, op. cit., p. 22-23
e AUTRAN, op. cit., p77-78.
[iii] Não
se pode deixar de reconhecer
nexo teológico
entre a “humilhação ”
(tapéinosis) do Magnificat e o “abaixamento ”
(kénosis) do hino cristológico da
epístola aos Filipenses (cf. Fl 2,6-11),
reconhecidamente também um hino litúrgico da Igreja
primitiva .
[iv] Ver LAURENTIN, René. Structure et Théologie de Luc I-II, p. 85: “On
saisit le mouvement du Magnificat. Il va de Marie, personnification
eschatologique d’Israël, à Abraham qui en est la personnification originelle,
en passant por la collectivité. Israël
concentré à l’origine en Abraham, se concentre au terme en Marie; le Magnificat
reprend ce mouvement en remontant de Marie à Abraham.
[v] Para aprofundar estas considerações
e as análises subseqüentes ,
sugerimos, principalmente , as seguintes obras
e autores : O Rosto
Materno de Deus ,
de Leonardo Boff; Maria na Bíblia ,
de Aleixo Maria Autran; Maria, a Mulher
Ícone do Mistério ,
de Bruno Forte ; Quem
é esta Mulher ? Maria na Bíblia , de Afonso Murad; e Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres ,
de Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer. (Ver referências
completas na Bibliografia deste ensaio ).
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