Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor
aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor.
Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do texto, no qual o autor ensaia
uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.
3.2
Dimensão auto-educativa da pedagogia de Miriam de Nazaré (1)
No bojo de dois relatos lucanos,
encontramos algumas atitudes atribuídas a
Miriam de Nazaré que expressam, ao nosso ver, um comportamento e uma
postura densamente pedagógicos e auto-educativos. Os relatos são os da
anunciação do Senhor (Lc 1,26-38) e o da perda e reencontro de Jesus (Lc
2,41-51). A primeira atitude é de interrogação e de questionamento de Miriam
diante do projeto de Deus a seu respeito e a segunda é uma reflexão meditativa
diante do mistério e do maravilhoso que acontecia com seu filho e ela própria.
As passagens interrogativas são as
seguintes: “Como vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34). “Meu
filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te
procurávamos” (Lc 2,48). Já as citações que expressam a postura meditativa e
reflexiva de Miriam de Nazaré são: “Ela ficou intrigada com essa palavra e
pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação” (Lc 1,29). “Maria,
contudo, conservava cuidadosamente esses acontecimentos e os meditava em seu
coração” (Lc 2,19). “Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele”
(Lc 2,33). “Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos esses fatos em seu
coração” (Lc 2,51b).
Antes de proceder à interpretação exegética
de cada um destes versículos, releva analisar a estrutura redacional dos dois
relatos lucanos, a fim de identificar o contexto em que ocorreram as afirmações
do evangelista a respeito do comportamento questionador e reflexivo-meditativo
de Miriam de Nazaré.
A perícope da anunciação do Senhor (Lc
1,26-38) se constitui num dos trechos mais conhecidos do Novo Testamento e foi
alvo de um número extraordinário de comentários e estudos nos últimos decênios.
Quanto à estrutura redacional, constata-se que o autor redigiu o texto na forma
de dípticos, com intenção não só estilística, mas também teológica. São dois os
paralelos dípticos: o das anunciações (de João Batista: Lc 1,8-22 e de Jesus: Lc 1,26-38), acrescido da visita a
Isabel (Lc 1,39-45), e o das circuncisões (Lc 1,59-66 e Lc 2,21), complementado
com o encontro de Jesus no Templo (Lc 2,22-39 e Lc 2,41-50). Quanto ao gênero
literário do relato da anunciação, a despeito da diversidade de opiniões e
interpretações, parece-nos mais aceitável a tese que vê nele um midraxe, já que
esta uma das características de Lucas ao relatar a infância de Jesus em função
de constantes alusões à Escritura, elemento central do gênero literário
midráxico. Neste, embora a historicidade do fato relatado não seja, a priori,
negada, ela cede lugar à mensagem teológica inerente ao mesmo[i].
Quanto à estrutura redacional da perícope
da perda e reencontro de Jesus no Tempo (Lc 2,41-51), existem evidências de ela
ter sido redigida segundo o “esquema de revelação”, no qual estão articulados
três momentos: subida a um lugar alto, revelação da identidade e descida. Os
três momentos são facilmente reconhecíveis no relato lucano: José, Maria e o
jovem Jesus (já com doze anos) sobem a Jerusalém, ao Templo situado no monte
santo do Senhor (cf. Lc 2,42); ali, Jesus revela sua sabedoria em diálogo com
os doutores da Lei e se dirige aos pais com uma palavra misteriosa sobre sua
filiação divina (Lc 2,48-50). Em seguida, desce com os pais a Nazaré (Lc 2,51).
Além do evidente “esquema de revelação”, o gênero literário é claramente o de
uma releitura pascal, que a narração revela, independente de o evento ser
histórico ou não[ii].
O evangelista torna presentes os elementos característicos dos eventos pascais,
tais como: o lugar (Jerusalém e o Templo), a moldura litúrgica da Páscoa, a
angústia e a procura de José e Maria, que lembram a tristeza dos discípulos de
Emaús que tinham perdido o mestre (cf. Lc,24,17), a indicação “depois de três
dias” que recorda o “terceiro dia” da ressurreição, a não-compreensão dos pais
que recorda a dos discípulos (cf. Lc 24,25). Em termos redacionais, não se pode
deixar de assinalar, ainda, o conteúdo “sapiencial” desta perícope, a partir do
vocabulário utilizado pelo autor. Assim, vários termos empregados em Lc 2,40-52
são ressonância da “sabedoria” que é descrita pelo sirácida (cf. Eclo 24). O
paralelismo entre o Jesus de Lucas e a sabedoria descrita pelo sirácida fica
evidente no uso freqüente de termos atribuídos a ambos: sabedoria (Lc 2,47), doutores
(Lc 2,46), respostas (Lc 2,47), graça (2,40.52), coração (2,51), bem como os
verbos “conhecer-compreender” e “procurar-encontrar”.
Feitas estas considerações de caráter
redacional dos relatos, importa fazer a exegese dos versículos referentes à
Miriam de Nazaré, reveladores de uma atitude
pedagógica interrogativa e reflexiva: a) “Como é que vai ser isso, se eu
não conheço homem algum?” (Lc 1,34). A objeção é insólita, pois nunca nas
Escrituras uma mulher afirmara sua condição de virgindade, dentro da
mentalidade religiosa hebraica que via no matrimônio o caminho estabelecido por
Deus para a santidade, em consonância com o mandato do Criador: “Sede fecundos
e multiplicai-vos” (Gn 1,28). A condição
de virgem se refere ao estado atual de noiva de José. Do ponto de vista
filológico, a ausência de relações sexuais, sentido da expressão tipicamente
semítica do “não conhecer homem”, exclui sentido futuro ou intenção de
virgindade perpétua. A objeção de Miriam não se refere ao objeto da anunciação
(“conceberás no teu seio e darás à luz: Lc 1,31), afirmação da maternidade
integral e física, e sim à modalidade extraordinária da concepção do “Filho do
Altíssimo” (cf. Lc 1,32).
O questionamento de Miriam a respeito da
modalidade da concepção do “Filho do Altíssimo” no período do seu noivado, isto
é, antes de coabitar com seu marido José, não
revela o propósito de um casamento virginal[iii],
muito menos voto de virgindade perpétua. Dando ênfase ao caráter simbólico e
teológico da concepção virginal de Jesus e deixando num plano secundário a
questão da biologicidade da virgindade, bem como da historicidade do evento da
anunciação, admitimos a teoria de que não estamos diante de frases formuladas
literalmente pela mãe de Jesus, e sim de palavras redigidas pelo evangelista para
simbolizar o significado e o alcance salvíficos da intervenção especial de Deus
na redenção da humanidade. A objeção de
Miriam de Nazaré em Lc 2,34 significa disponibilidade plena aos desígnios
divinos, mas dentro de uma busca de compreensão da modalidade de realização dos
mesmos. A atitude pedagógica expressa na pergunta e no questionamento do
versículo em análise expressa seu desejo
de aderir conscientemente ao projeto de Deus.
b) “Meu filho, por que agiste assim
conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). Este
versículo integra a perícope da perda e reencontro de Jesus no Templo de
Jerusalém (Lc 2,41-52). Já vimos que este relato, acentuadamente pascal, está
redigido segundo um “esquema de revelação”, isto é, Jesus revela sua sabedoria,
como algo intrínseco à sua identidade messiânica de Filho do Altíssimo. Neste
contexto, o questionamento que Miriam dirige a seu filho exprime a postura
natural de uma mãe que se afligiu com o desaparecimento de seu filho. De
maneira delicada, mas firme, reprova o comportamento de Jesus. De acordo com o
estilo do evangelista Lucas, é Miriam, e não José, que toma a palavra. A discreta repreeensão da mãe ilustra
significativamente uma atitude educativa que poderíamos denominar “pedagogia
dos limites” ou “pedagogia da repreensão”. O traço humaníssimo da aflição e
reação dos pais diante de um gesto incompreensível do filho, adolescente de
doze anos, decorre dos direitos e deveres dos pais em relação à educação e
formação dos filhos.
Mesmo não se tratando do tema teológico
central, a discussão que o evangelista estilizou, independente da sua
facticidade histórica ou meramente literária, coloca os fundamentos de uma genuína pedagogia do diálogo entre pais e
filhos, que não precisa ser sempre de total consenso ou submissão calada.
As divergências, os conflitos e as discussões são pedagogicamente instrutivas e
formativas para ambos os pólos interlocutores, não apenas em decorrência de um
natural “conflito de gerações”, mas também, de um natural “conflito de
opiniões”. Neste sentido, a reação
espontânea e de recriminação dos pais de Jesus diante da postura do seu filho
espelha o lado humano da família de Nazaré e uma experiência pedagógica
paradigmática de educação familiar. Nem sempre as “explicações” dos filhos
são assimiladas pelos pais. Foi o que ocorreu com a resposta de Jesus: “Por que
me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Ou, de acordo
com outra tradução viável: “...ocupar-me com as coisas de meu Pai?” (Lc 2,49).
Estamos diante do primeiro lógion, da primeira palavra de Jesus referida
nos evangelhos. Jesus afirma, aqui, sua verdadeira identidade. Apesar dos laços
familiares naturais, ele pertence à ordem sobrenatural da filiação divina. Não
surpreende que os pais “não compreenderam a palavra que ele lhes dissera” (Lc
2,50). Também para Miriam de Nazaré, a compreensão da missão de seu filho Jesus
não decorreu de uma ciência intelectual infusa, mas foi sendo construída ao
longo do progressivo “avanço na peregrinação da fé”.
Bertilo Brod
[i] A obra
clássica que
pesquisou a estrutura e a teologia do Evangelho
da Infância de Lucas é a de LAURENTIN,
René. Structure et
Théologie de Luc 1-2.
Paris: Gabalda, 1957. Em um trabalho posterior
(Les Évangiles de l’Enfance du Christ: vérité de Noël au-delà des
mythes. Paris: Desclée,
1982), o mesmo autor
modificou parcialmente sua opinião quanto ao gênero
midráxico da perícope da anunciação ,
afirmando tratar-se de uma combinação de
gêneros literários
de vocação profética, com fórmulas de
aliança e anúncio
de nascimento, comportando ainda elementos escatológicos e teofânicos (p. 117-124).
[ii] Continua sendo válida
e atual a pesquisa
exegético-teológica empreendida, a este propósito , por
LAURENTIN, René. Jésus au
Temple: mystère de Pâques
e foi de Marie en Luc 2,48-50. Paris: Gabalda, 1966).
[iii] Cf. SCHILLEBEECKX, Edouard. Marie,
Mère de la Rédemption. Paris: Cerf, 1963, p. 65-77. Existe tradução
em língua
portuguesa: Maria, Mãe da Redenção . Petrópolis: Vozes ,
1968.
Nenhum comentário:
Postar um comentário