sábado, 7 de julho de 2012

Miriam de Nazaré (9)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do texto, no qual o autor ensaia uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.

3.2 Dimensão auto-educativa da pedagogia de Miriam de Nazaré (1)

No bojo de dois relatos lucanos, encontramos algumas atitudes atribuídas a  Miriam de Nazaré que expressam, ao nosso ver, um comportamento e uma postura densamente pedagógicos e auto-educativos. Os relatos são os da anunciação do Senhor (Lc 1,26-38) e o da perda e reencontro de Jesus (Lc 2,41-51). A primeira atitude é de interrogação e de questionamento de Miriam diante do projeto de Deus a seu respeito e a segunda é uma reflexão meditativa diante do mistério e do maravilhoso que acontecia com seu filho e ela própria.

As passagens interrogativas são as seguintes: “Como vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34). “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). Já as citações que expressam a postura meditativa e reflexiva de Miriam de Nazaré são: “Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação” (Lc 1,29). “Maria, contudo, conservava cuidadosamente esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19). “Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele” (Lc 2,33). “Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 2,51b).

Antes de proceder à interpretação exegética de cada um destes versículos, releva analisar a estrutura redacional dos dois relatos lucanos, a fim de identificar o contexto em que ocorreram as afirmações do evangelista a respeito do comportamento questionador e reflexivo-meditativo de Miriam de Nazaré.

A perícope da anunciação do Senhor (Lc 1,26-38) se constitui num dos trechos mais conhecidos do Novo Testamento e foi alvo de um número extraordinário de comentários e estudos nos últimos decênios. Quanto à estrutura redacional, constata-se que o autor redigiu o texto na forma de dípticos, com intenção não só estilística, mas também teológica. São dois os paralelos dípticos: o das anunciações (de João Batista: Lc 1,8-22 e  de Jesus: Lc 1,26-38), acrescido da visita a Isabel (Lc 1,39-45), e o das circuncisões (Lc 1,59-66 e Lc 2,21), complementado com o encontro de Jesus no Templo (Lc 2,22-39 e Lc 2,41-50). Quanto ao gênero literário do relato da anunciação, a despeito da diversidade de opiniões e interpretações, parece-nos mais aceitável a tese que vê nele um midraxe, já que esta uma das características de Lucas ao relatar a infância de Jesus em função de constantes alusões à Escritura, elemento central do gênero literário midráxico. Neste, embora a historicidade do fato relatado não seja, a priori, negada, ela cede lugar à mensagem teológica inerente ao mesmo[i].

Quanto à estrutura redacional da perícope da perda e reencontro de Jesus no Tempo (Lc 2,41-51), existem evidências de ela ter sido redigida segundo o “esquema de revelação”, no qual estão articulados três momentos: subida a um lugar alto, revelação da identidade e descida. Os três momentos são facilmente reconhecíveis no relato lucano: José, Maria e o jovem Jesus (já com doze anos) sobem a Jerusalém, ao Templo situado no monte santo do Senhor (cf. Lc 2,42); ali, Jesus revela sua sabedoria em diálogo com os doutores da Lei e se dirige aos pais com uma palavra misteriosa sobre sua filiação divina (Lc 2,48-50). Em seguida, desce com os pais a Nazaré (Lc 2,51). Além do evidente “esquema de revelação”, o gênero literário é claramente o de uma releitura pascal, que a narração revela, independente de o evento ser histórico ou não[ii]. O evangelista torna presentes os elementos característicos dos eventos pascais, tais como: o lugar (Jerusalém e o Templo), a moldura litúrgica da Páscoa, a angústia e a procura de José e Maria, que lembram a tristeza dos discípulos de Emaús que tinham perdido o mestre (cf. Lc,24,17), a indicação “depois de três dias” que recorda o “terceiro dia” da ressurreição, a não-compreensão dos pais que recorda a dos discípulos (cf. Lc 24,25). Em termos redacionais, não se pode deixar de assinalar, ainda, o conteúdo “sapiencial” desta perícope, a partir do vocabulário utilizado pelo autor. Assim, vários termos empregados em Lc 2,40-52 são ressonância da “sabedoria” que é descrita pelo sirácida (cf. Eclo 24). O paralelismo entre o Jesus de Lucas e a sabedoria descrita pelo sirácida fica evidente no uso freqüente de termos atribuídos a ambos: sabedoria (Lc 2,47), doutores (Lc 2,46), respostas (Lc 2,47), graça (2,40.52), coração (2,51), bem como os verbos “conhecer-compreender” e “procurar-encontrar”.

Feitas estas considerações de caráter redacional dos relatos, importa fazer a exegese dos versículos referentes à Miriam de Nazaré, reveladores de uma atitude pedagógica interrogativa e reflexiva: a) “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34). A objeção é insólita, pois nunca nas Escrituras uma mulher afirmara sua condição de virgindade, dentro da mentalidade religiosa hebraica que via no matrimônio o caminho estabelecido por Deus para a santidade, em consonância com o mandato do Criador: “Sede fecundos e multiplicai-vos” (Gn 1,28). A condição de virgem se refere ao estado atual de noiva de José. Do ponto de vista filológico, a ausência de relações sexuais, sentido da expressão tipicamente semítica do “não conhecer homem”, exclui sentido futuro ou intenção de virgindade perpétua. A objeção de Miriam não se refere ao objeto da anunciação (“conceberás no teu seio e darás à luz: Lc 1,31), afirmação da maternidade integral e física, e sim à modalidade extraordinária da concepção do “Filho do Altíssimo” (cf. Lc 1,32).
O questionamento de Miriam a respeito da modalidade da concepção do “Filho do Altíssimo” no período do seu noivado, isto é, antes de coabitar com seu marido José, não revela o propósito de um casamento virginal[iii], muito menos voto de virgindade perpétua. Dando ênfase ao caráter simbólico e teológico da concepção virginal de Jesus e deixando num plano secundário a questão da biologicidade da virgindade, bem como da historicidade do evento da anunciação, admitimos a teoria de que não estamos diante de frases formuladas literalmente pela mãe de Jesus, e sim de palavras redigidas pelo evangelista para simbolizar o significado e o alcance salvíficos da intervenção especial de Deus na redenção da humanidade. A objeção de Miriam de Nazaré em Lc 2,34 significa disponibilidade plena aos desígnios divinos, mas dentro de uma busca de compreensão da modalidade de realização dos mesmos. A atitude pedagógica expressa na pergunta e no questionamento do versículo em análise expressa seu desejo de aderir conscientemente ao projeto de Deus.

b) “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). Este versículo integra a perícope da perda e reencontro de Jesus no Templo de Jerusalém (Lc 2,41-52). Já vimos que este relato, acentuadamente pascal, está redigido segundo um “esquema de revelação”, isto é, Jesus revela sua sabedoria, como algo intrínseco à sua identidade messiânica de Filho do Altíssimo. Neste contexto, o questionamento que Miriam dirige a seu filho exprime a postura natural de uma mãe que se afligiu com o desaparecimento de seu filho. De maneira delicada, mas firme, reprova o comportamento de Jesus. De acordo com o estilo do evangelista Lucas, é Miriam, e não José, que toma a palavra. A discreta repreeensão da mãe ilustra significativamente uma atitude educativa que poderíamos denominar “pedagogia dos limites” ou “pedagogia da repreensão”. O traço humaníssimo da aflição e reação dos pais diante de um gesto incompreensível do filho, adolescente de doze anos, decorre dos direitos e deveres dos pais em relação à educação e formação dos filhos.

Mesmo não se tratando do tema teológico central, a discussão que o evangelista estilizou, independente da sua facticidade histórica ou meramente literária, coloca os fundamentos de uma genuína pedagogia do diálogo entre pais e filhos, que não precisa ser sempre de total consenso ou submissão calada. As divergências, os conflitos e as discussões são pedagogicamente instrutivas e formativas para ambos os pólos interlocutores, não apenas em decorrência de um natural “conflito de gerações”, mas também, de um natural “conflito de opiniões”. Neste sentido, a reação espontânea e de recriminação dos pais de Jesus diante da postura do seu filho espelha o lado humano da família de Nazaré e uma experiência pedagógica paradigmática de educação familiar. Nem sempre as “explicações” dos filhos são assimiladas pelos pais. Foi o que ocorreu com a resposta de Jesus: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Ou, de acordo com outra tradução viável: “...ocupar-me com as coisas de meu Pai?” (Lc 2,49). Estamos diante do primeiro lógion, da primeira palavra de Jesus referida nos evangelhos. Jesus afirma, aqui, sua verdadeira identidade. Apesar dos laços familiares naturais, ele pertence à ordem sobrenatural da filiação divina. Não surpreende que os pais “não compreenderam a palavra que ele lhes dissera” (Lc 2,50). Também para Miriam de Nazaré, a compreensão da missão de seu filho Jesus não decorreu de uma ciência intelectual infusa, mas foi sendo construída ao longo do progressivo “avanço na peregrinação da fé”.
Bertilo Brod



[i] A obra clássica que pesquisou a estrutura e a teologia do Evangelho da Infância de Lucas é a de LAURENTIN, René. Structure et Théologie de Luc 1-2. Paris: Gabalda, 1957. Em um trabalho posterior (Les Évangiles de l’Enfance du Christ: vérité de Noël au-delà des mythes. Paris: Desclée, 1982), o mesmo autor modificou parcialmente sua opinião quanto ao gênero midráxico da perícope da anunciação, afirmando tratar-se de uma combinação de gêneros literários de vocação profética, com fórmulas de aliança e anúncio de nascimento, comportando ainda elementos escatológicos e teofânicos (p. 117-124).
[ii] Continua sendo válida e atual a pesquisa exegético-teológica empreendida, a este propósito, por LAURENTIN, René. Jésus au Temple: mystère de Pâques e foi de Marie en Luc 2,48-50. Paris: Gabalda, 1966).
[iii] Cf. SCHILLEBEECKX, Edouard. Marie, Mère de la Rédemption. Paris: Cerf, 1963, p. 65-77. Existe tradução em língua portuguesa: Maria, Mãe da Redenção. Petrópolis: Vozes, 1968.

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