A
compaixão é o mais belo retrato do ser humano.
(Jr 23,1-6; Sl 22/23; Ef 2,13-18; Mc
6,30-34)
Somos filhos/as do nosso tempo, mas na nossa memória
coletiva pulsam os ideais dos nossos antepassados. Deles e dos/as pensadores/as
ocidentais aprendemos que é refletindo, dobrando-nos sobre nós mesmos/as, que saberemos
quem somos. Mas a tradição bíblica tem uma perspectiva diferente: descobrimos e revelamos nossa identidade
respondendo a quem nos interpela, tomando
uma atitude diante do rosto do outro que está diante de nós, assumindo nossa responsabilidade na história.
Somos a resposta que damos aos dilemas do mundo e aos múltiplos chamados que
nos solicitam. Como cristãos, encontramos e realizamos nossa identidade na
medida em que nos tornamos sinais de salvação para nossos irmãos, instrumentos
de sua liberdade e cidadania. Bartolomeu de las Casas (morto aos 17.07.1566) e
Pe. Ezequiel Ramin (assassinado aos 24.07.1985) testemunharam isso com a
própria vida.
“O
Senhor é meu pastor, nada me falta.”
Um dos aspectos mais profundos e pacificadores da fé
que herdamos dos judeus é a imagem de um Deus que cuida de nós como um pastor
toma conta das suas ovelhas. Ele nos guia por caminhos seguros, nos conduz a
pastagens abundantes, nos concede a felicidade e o amor como companheiros que
vão à nossa direita e à nossa esquerda... Basta que vejamos, mesmo de longe,
seu cajado e seu bastão e as escuridões e medos se dissipam.
“O Senhor é meu pastor, nada me falta.” Assim começa
uma das mais belas orações que o judaísmo nos presenteou. Esta é uma afirmação
de resistência, uma convicção de um povo que sente falta de quase tudo, mas
resiste teimosamente. Não nos deixemos enganar pela teologia da prosperidade,
pela ideologia que ensina que basta confiar em Deus e pagar um dizimo generoso
à Igreja para receber gratuíta e abundantemente tudo o que necessitamos e
desejamos.
“Colocarei
à frente delas pastores que delas cuidem...”
Deus é pastor é nós somos seu rebanho. “Ele é nosso
Deus e nós somos o seu povo, o rebanho que ele conduz” (Sl 95,7). A bíblia nos
ensina que Deus não vem pessoalmente tomar conta do seu povo. Ele nos conduz e
cuida de nós através de mediadores/as, mediante homens e mulheres que chama e
estabelece como responsáveis pela vida dos seus filhos e filhas. “Vou dar-lhes
pastores que cuidem deles...” Deus nos envia como ‘executivos’ do seu
empreendimento libertador.
O que acontece é que as pessoas que fazem a experiência de serem amadas e guiadas por Deus
se descobrem também chamadas a amar e cuidar do povo de Deus. Na maioria
das vezes, descobrimos que Deus está conosco, nos ama e nos conforta no próprio
exercício da missão de anunciar o Evangelho e defender nossos irmãos e irmãs
mais fracas. Isso está bastante claro na história do povo de Deus, desde Moisés
até os apóstolos, passando pelos profetas, profetizas e juízes/as.
É isso que Deus tem em mente quando decide criar-nos à
sua imagem e semelhança. Ele não cria seres carentes e eternamente dependentes,
criaturas que permanecem sempre crianças e esperam que Deus e tudo o mais
estejam a seu serviço. Como pastor generoso e solícito, ele cria homens e
mulheres capazes de generosidade e solicitude, de compaixão e solidariedade,
livres frente a si mesmos, prontos/as a dar a própria vida por aqueles/as com
quem partilham a carne e o sonho.
“Vinde
a sós, para um lugar deserto, e descansai um pouco.”
Em Jesus de Nazaré, filho de Maria e José e filho de
Deus, o dom de Deus à humanidade e a
resposta humana ao dom de Deus se encontram e chegam à máxima expressão.
Nele Deus mostra até onde vai seu cuidado de pastor. Nele fica claro para
sempre que o amor e seu cuidado de Deus não têm limites. Ele não só nos orienta travessias perigosas, mas vai à frente e nos carrega nos braços, desce até o mais profundo dos abismos
humanos para nos acompanhar e resgatar.
E isso sem reserva de horário e sem entrevista com
hora marcada. Hoje o evangelista nos conta que, depois de enviar os discípulos
para um estágio missionário e depois
de saber do assassinato do seu amigo João Batista, é tanta gente que procura
Jesus e os apóstolos que eles não têm mais tempo nem para comer. O cansaço da
missão recém concluída e a tensão provocada pelo martírio de João pediam um
descanso, um retiro mais tranqüilo. E isso parece prudente e mais que merecido...
Mas um verdadeiro
pastor não consegue dar as costas às suas ovelhas. Pela boca do profeta
Jeremias, Deus lamenta os pastores que extraviam e dispersam seu rebanho. E,
através do profeta Ezequiel, ameaça os pastores que se aproveitam e se beneficiam
das ovelhas, sem se importarem com as mais frágeis e exploradas. Jesus não é
assim, e ensina seus discípulos a não se contentarem com a contabilização de
pequenos sucessos pastorais.
“Jesus
viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles...”
Como sempre, a necessidade faz o povo apressar o
passo, e muita gente, vendo Jesus e os discípulos partirem de barco, correm por
terra e, à pé, chegam ao lugar do descanso antes deles. Assim acontece com os
retiros dos/as verdadeiros/as missionários/as: eles se afastam geograficamente para se aproximar de forma mais profunda e
apaixonada das tristezas e angústias, alegrias e esperanças do povo que
amam.
Diante de uma multidão que nos procura e vem ao nosso
encalço, podemos ter atitudes diversas: orgulho pelo sucesso da nossa pregação;
indiferença e desprezo diante do que pode ser somente busca de milagres e
vantagens fáceis; desejo de aumentar nosso prestígio e manter o povo dependente
sob controle; irritação por causa da perturbação da nossa agenda e do nosso
tempo de descanso...
A atitude de Jesus é diferente. Ele desce do barco e
lê no rosto daquela multidão o abandono por parte daqueles que deveriam conduzi-la
e defendê-la. “Quando saiu da barca, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão, porque estavam como ovelhas
sem pastor.” Compaixão é a
atitude profunda e quase orgânica de quem assume as dores dos outros como e
fossem suas, de quem assume como próprias as lutas daqueles/as que são mais
vulneráveis.
“De dois povos fez um só povo, em sua carne
derrubando o muro da inimizade...”
A compaixão é uma força que destrói os muros que, por
medo, comodismo ou egoísmo, os povos, religiões, Igrejas e indivíduos vão
construindo em torno de si. Por isso, a
compaixão é também o dinamismo que tira os cristãos dos castelos construídos
pelo individualismo e os coloca na estrada da missão. E isso que Jesus
demonstra ao longo de toda a sua vida e é isso que ele propõe para aqueles/as
que seguem seus passos.
Escrevendo aos efésios, Paulo sublinha que, a partir
de Jesus Cristo, acabaram os privilégios de raça e de religião que definiam
quem está mais perto ou mais longe de Deus. Privilégios estabelecem
hierarquias, classes, muros; privilégios perpetuam dominações. Pregado na cruz
junto a dois criminosos, Jesus derruba os muros que separam, elimina as
distâncias e hierarquias culturais e sociais, assina o tratado de paz que faz de todos os povos uma única família.
O evangelista diz que a primeira ação de Jesus diante
do povo abandonado por seus pastores foi “ensinar muitas coisas para eles”.
Tendo presente o conjunto dos evangelhos, podemos imaginar o que ensinou: que
eles sofrem porque foram abandonados pelas autoridades políticas e religiosas;
que os muros que separam povos e classes são invenções humanas e devem acabar;
que Deus não é um cobrador de contas, mas um pastor amigo e compassivo.
“Vou morar na casa do Senhor por muitíssimos anos.”
Jesus, belo e amado pastor, peregrino no santuário das dores humanas:
atravessamos hoje os sombrios vales da indiferença, da opressão e da discriminação
transformadas em estrutura e em cultura, inclusive nas comunidades e estruturas
eclesiais. Que a simples visão do teu bastão e do teu cajado nos reanimem.
Desperta também hoje na tua Igreja, homens e mulheres que, como tu, diante das
dores e misérias humanas, se deixam consumir e guiar pela compaixão. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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