Uma
pessoa que morre de fome é uma pessoa assassinada!
(2Rs 4,42-44; Sl 144/145; Ef 4,1-6; Jo
6,1-15)
Há uma lei que entre nós é mais aplicada que de todas
as outras. É uma lei que não está escrita na Constituição nem na Bíblia, mas é
ensinada em lições que vão do berço à sepultura. Esta lei diz, com algumas
variações: “cada um pra si e Deus por todos”. Um complemento mais violentoensina
que “quem pode mais, chora menos”. Não é difícil perceber que este princípio
vai sendo assimilado tranquilamente na arena política, no sistema econômico, na
área cultural e até no âmbito da religião. Basta prestar atenção para as
ofertas de programas e celebrações que prometem bênçãos em forma de imediata prosperidade
econômica. E não faltam testemunhos televisionados de pessoas que enriqueceram
rapidamente por causa de uma suposta entrega a Jesus, sem qualquer atenção ao
sofrimento e à pobreza das maiorias. Mas isso não se opõe frontalmente à fé em
Jesus Cristo?
“Depois
disso, Jesus foi para o outro lado do lago da Galiléia.”
Quem nos conta é o evangelista São João. Jesus estava
em plena ação missionária. Já havia realizado três sinais que demonstravam a
chegada dos tempos esperados, a utopia do Bem-viver, da Vida plena e gratuita
para todos: ransformara água em vinho numa festa de casamento fadada ao
fracasso; curara o filho de um funcionário do rei e um paralítico que há 38
anos não abandonava a esperança de recuperar a saúde e a plena cidadania.
Impactada por esses sinais, uma grande multidão segue
Jesus por onde ele anda. Como sempre, o povo intui que é da periferia, do
ensino e da proposta desse galileu desprezado, que pode nascer a novidade. Sabe
que os centros de poder são como uma figueira estéril, ou pior, estão
pavimentados com o trabalho dos pobres e pintados com o sangue dos inocentes. “Jesus
ergueu s olhos e viu uma grande multidão que vinha ao seu encontro.”
O evangelista não diz que Jesus tem compaixão pelo povo,
mas esta está subentendida. A compaixão parece filha da fraqueza, da humana
vulnerabilidade, das periferias anônimas, enquanto que os palácios se sustentam
sobre o poder e o medo. A compaixão supõe travessias, muitas travessias. Quando
as Igrejas levarão a sério esta verdade? Para ver o povo e resgatar a compaixão
ativa e redentora é preciso migrar para as periferias, deixar as discussões
abstratas e estéreis, sair da própria barca.
“Onde
vamos comprar pão para que estes possam comer?”
Ao entardecer das possibilidades de ajuda, quando as
leis do mercado mostram que não têm coração, Jesus percebe a fome do povo e desperta
os discípulos da insuportável indiferença que os envolvia inteiramente. “Onde
vamos comprar pão para eles comerem?” Os discípulos não conseguem ver saída
para o drama do povo a não ser dentro da lógica do império. Sem um plano
alternativo, constatam desolados: “Nem meio ano de salário bastaria...”
Avaliando com um pouco mais de atenção suas próprias possibilidades,
aquele grupo de homens e mulheres descobre que entre eles há alguém que tem
cinco pães e dois peixes que providenciara para as necessidades da comunidade. “Mas
o que é isso para tanta gente?”, questionam-se eles. Com essa pergunta parece
que eles querem disfarçar o egoísmo elitista daqueles/as que pensam apenas nos
seus direitos e privilégios, ou, ao menos, nas próprias necessidades.
Como está longe de Jesus uma Igreja e uma comunidade
cristãs feita apenas de palavras e de ritos religiosos, que se compraz em lavar
as mãos diante das tragédias que se abatem sobre o povo. Basta de instituições
que entregam seus membros à implacável lógica dos impérios! E não nos
desculpemos perguntando o que representam cinco pães e dois peixes para uma
multidão de famintos... “O pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada”,
ensina a sabedoria popular.
“Mas o que é isso para tanta gente?”
De repente o mundo parece ter acordado para a escassez
de alimentos e a ONU convocou, há alguns, uma conferência urgente para discutir
a questão e traçar soluções. Mas os países que comandam o organismo recusam-se
a tirar a venda dos olhos e reconhecer as verdadeiras causas da emergência. São
eles mesmos que, por mecanismos diversos e perversos, subtraem à mesa dos
países pobres o alimento por eles mesmo produzido.
É verdade que nos últimos 40 anos a população da
humanidade duplicou. Mas não podemos esquecer que , no mesmo período, a produção
de alimentos triplicou! E se a fome vem crescendo, onde foi parar esse
excedente? Soa como cínica, para não dizer diabólica, a ideologia que propõe
resolver a fome dos pobres com a aprovação dos OGMs. Este projeto deseja subordinar
a produção alimentar à padronização e às leis do mercado, destruindo assim a
soberania e da segurança alimentar dos povos.
Jean Ziegler, ex-relator da ONU para o direito à
alimentação, escreve: “O extermínio, a cada ano, de dezenas de milhões de homens,
mulheres e crianças por causa da fome é o escândalo do nosso século. A cada 5
segundos uma criança de menos de 10 anos morre de fome. E isso num planeta no
qual os recursos são abundantes e sobram... A agricultura mundial poderia
alimentar sem dificuldades 12 bilhões de seres humanos... Uma criança que morre
de fome é uma criança assassinada.”
“Fazei
as pessoas sentar-se.”
A saída não é cada um cuidar de si, nem considerar
povo faminto um simples objeto de caridade. O povo é soberano, e as autoridades
devem colocar-se a seu serviço. E não se trata de povos nacionais, mas de um
único povo, aquele que congrega todos os homens e mulheres. Paulo enfatiza que
há um só corpo e um só espírito, uma só fé, uma só esperança, um só batismo, um
só Senhor... Ou seja: odas as divisões são arbitrárias e fadadas a desaparecer.
A solução para esta crise alimentar sistêmica não está
ao alcance de um país ou de uma Igreja particular. O caminho de saída começa
com a adoção de um consumo moderado pelos ricos e com a erradicação da exploração
comercial por parte dos países poderosos. Eles não precisam dar de comer: basta
que não expropriem aos países pobres aquilo que lhes pertence por direito, e
não lhes imponham receitas econômicas e padrões de consumo insustentáveis.
Eis aqui uma missão irrenunciável das Igrejas cristãs
e de cada discípula/o de Jesus Cristo: estabelecer e defender profética e
politicamente a soberania alimentar dos povos e exigir dos organismos
multilaterais medidas concretas que possibilitem a toda a humanidade comer com
dignidade. Essa não é de modo algum uma tarefa estranha à fé. Ou seremos
surpreendidos pela terrível sentença: “Afastem-se de mim, malditos, porque eu
estava com fome e vocês não me deram de comer...”
“Eles
juntaram os pedaços e encheram doze cestos...”
A comida suficiente para alimentar os que têm fome – e
para encher muitos cestos para os que ainda virão – aparece quando Jesus assume
o protagonismo e os discípulos se associam à sua ação. Se ele deixasse a
solução às ‘leis do mercado’ teríamos assistido à tragédia de um povo, ao
cinismo da religião e ao enriquecimento dos astutos. O Espírito nos conduz do
pão eucarístico ao pão para os famintos, da mesa da comunhão com Jesus Cristo à
aliança com os oprimidos, do pão recebido à vida doada.
Encarcerado, mas livre, Paulo pede que os cristãos de
Éfeso e também a nós que nos comportemos de modo digno da vocação que
recebemos: que sejamos humildes, amáveis, pacientes. Que sejamos suportes uns
para os outros no amor. “Mantenham entre vocês laços de paz para conservar a
unidade e o Espírito.” Certamente a luta pelo pão na mesa de todos não pode ser
estranha à unidade do gênero humano. E isso inclusive com o bravo trabalho dos
pequenos agricultores cujo dia celebramos ontem.
Jesus de Nazaré,
peregrino incansável no santuário das dores humanas, Deus compassivo e próximo
de todos os sofredores/as, próximo também dos sonhadores/as e construtores de
um mundo outro: Dá-nos olhos abertos e inteligência arguta para localizar os
recursos necessários para evitar as tragédias que golpeiam teus irmãos e irmãs.
Dá-nos um coração humanamente sensível, que nos conduza perto deles para
servi-los com tudo o que somos e temos. Dá-nos um coração forte, próprio
daqueles/as que se enamoram de ti, que não nos permita aceitar ou pregar
meias-verdades, soluções cínicas e violentas, que nada têm a ver contigo e com
tua Boa Notícia. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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