sábado, 28 de julho de 2012

Miriam de Nazaré (12)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que apresenta uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.

3.3    O ensinamento libertador do Magnificat (2)

Após estes elementos de natureza propedêutica ao terceiro tópico, adentremos na análise específica do mesmo, iniciando com algumas afirmações contundentes que servirão de inspiração para o nosso intento: “O Magnificat (...) é um dos textos de maior conteúdo libertador e político do Novo Testamento” (Gutiérez, apud AUTRAN, op. cit., p. 84). “Esse hino ressoa como a Marselhesa do front cristão de libertação na luta entre as potências e os oprimidos deste mundo” (Moltmann, apud AUTRAN, ibid., p. 85). “Nas comunidades de base, nos grupos onde a dimensão política da fé se explicita e se exerce, apreciam-se de modo especial os traços denunciadores, proféticos e libertadores de Maria, presentes em seu hino de louvor, o Magnificat” (BOFF, op. cit., p. 196-197). “O canto de Maria é um canto de combate de Deus travado na história humana, combate pela instauração de um mundo de relações igualitárias, de respeito profundo a cada ser, no qual habita a divindade” (GEBARA/BINGEMER, op. cit., p. 87).

À luz destes depoimentos, fica inteligível e justificável nosso intento de explorar a dimensão libertadora do ensinamento de Miriam de Nazaré contido no Magnificat. Sem dúvida, trata-se de um procedimento teológico, exegético e histórico não corriqueiro, uma vez que a dimensão política esteve praticamente ausente dos estudos mariológicos, antes do advento da teologia da libertação. Surgida na América Latina, mas de projeção e validade universal, já que os pobres e oprimidos existem em todos os continentes, a teologia da libertação tornou-se uma práxis libertadora e um ensaio de elaboração sócio-analítica do discurso teológico que tem como seu ponto de partida a miserabilidade das condições sociais dos pobres e excluídos e como meta última a libertação e redenção destes em Cristo. Metodologicamente, parte-se de uma rigorosa análise sociológica e histórica da realidade humana. Prossegue-se, aprofundando esta análise, nela inserindo o discurso teológico pelo recurso hermenêutico da releitura dos textos fundadores da nossa fé, isto é, da Escrituras, tematizando a dimensão libertadora de toda a história da salvação. A libertação que é visada não afeta apenas o destino escatológico dos homens, mas também o seu presente histórico. Objetiva-se a libertação do homem todo e de todos os homens, mas com uma “opção preferencial pelos pobres e oprimidos”. A novidade metodológica é a introdução, nesta releitura dos textos bíblicos, de um novo “círculo hermenêutico”, isto é, de um novo processo de interpretação e de exegese, cuja fundamentação teórica foi elaborada, com muita lucidez por Leonardo Boff, ao afirmar que:

“Lemos com os olhos de hoje as Escrituras cristãs escritas ontem (...). Nossos olhos vêm carregados de interrogações, expectativas e interesses, que despontam de nossa realidade. Com eles acedemos aos textos marianos que nos falam de Maria. Os textos sagrados, por sua vez, nos lançam sua mensagem que se depreende da sua letra. Mas nossos olhos interessados destacam da totalidade dos textos escriturísticos aqueles que se configuram como os mais relevantes para a nossa situação. Tais textos são sublinhados com tinta vermelha, seus contextos são indicados à margem com a observação: muito importante. Assumimos todos os textos fundadores da nossa fé, Mas a situação do nosso tempo, com suas urgências e prioridades, privilegia alguns textos e contextos. Neles houve uma voz que se endereça diretamente aos nossos ouvidos atuais. O sentido de outrora ganha uma atualidade hoje. Acolhemos um sentido que se deriva dos textos e criamos um sentido novo devido à sua ressonância no contexto da nossa História” (Leonardo Boff, apud AUTRAN, op. cit., p. 86-87).

Já Clodovis Boff, em sua obra Teologia do Político e suas Mediações, procura fornecer um aparato mais científico ao “círculo hermenêutico”: “Lemos os textos sagrados com nossos olhos atuais e por isso sempre interpretamos ao ler; esses mesmos textos nos enviam sua mensagem na direção do nosso ouvido histórico e são captados na onda sonora do nosso tempo; recebem, portanto, uma interpretação condizente” (Clodovis Boff, apud AUTRAN, op. cit., p. 87).

No procedimento metodológico da releitura das Escrituras, do “círculo hermenêutico”, no âmbito do discurso teológico, não se pode perder de vista a relação dialética entre Escritura e espírito da comunidade viva dos fiéis (o sensus fidelium). A rigor, o caráter de Palavra de Deus não se encontra nem só na letra da Escritura e nem só no espírito da comunidade ouvinte e leitora, e sim, precisamente na reciprocidade do movimento de vaivém dinânimo entre ambos. Cabe, por isso, fugir da armadilha de dois riscos: procurar na Bíblia aprioristicamente o que nos interessa (pragmatismo hermenêutico) ou mostrar obediência cega e servil ao positivismo literal (arqueologismo bíblico). Também na semiologia bíblica importa observar a regra hermenêutica: o sentido surge da relação permanente entre leitor e texto, isto é, o sentido não é algo reificado e deposto no texto que seria preciso passivamente recolher pela leitura; esta é também sempre produção de sentido. Em razão desta regra hermenêutica e semiológica, o texto bíblico está sempre aberto às sucessivas interpretações históricas. Ele nos remete à palavra atual e atualizante do Deus feito “lógos” (Palavra revelada) e à voz do Espírito sempre presente na comunidade dos que crêem.

Conclui-se desta regra teórica que o texto do Magnificat é fonte de sentido; é grávido de sentidos que virão à luz quando forem colocados em contato com a realidade histórica. Seu sentido literário, literal e histórico, enriquecido com as dimensões da simbologia e da teologia, é o fundamento de todos os sentidos que ele encerra e libera: a Palavra continua se revelando através das palavras que falam de Miriam de Nazaré e que o evangelista Lucas a ela atribui. Como Miriam, somos provocados e induzidos a dar nossa resposta, nossa palavra à Palavra revelada. O sentido liberado na leitura se concretiza somente na e pela resposta do leitor à interpelação. Por isso, a decodificação do sentido pleno do Magnificat ocorre apenas no “sim” intuído e vivido na concretude histórica da vida.

Para apreender o sentido libertador, profético e mesmo contestador do ensinamento do Magnificat, cumpre, de um lado, partir da realidade em que se vive e, de outro, inserir a dimensão libertadora na perspectiva totalizando do cântico. Comecemos pela primeira. Não é preciso ser um grande cientista social para concluir que nossa situação atual, na América Latina e em grande parte do mundo, se caracteriza sócio-político-economicamente como de cativeiro e opressão. A situação opressora atual é o lugar hermenêutico privilegiado da libertação. Esta situação de injustiça, opressão e exclusão já não afeta apenas as minorias étnicas, comportamentais ou de gênero, mas imensas maiorias de povos e populações. Pequenas elites detêm o poder, o saber e o ter e impõem seus interesses excludentes e exclusivos. Os poderosos possuem poder efetivo; os ricos detêm não só terra, capital e tecnologia, mas também o conhecimento e o saber. No pólo oposto, os famintos passam efetivamente privação e fome; os humildes são realmente oprimidos e humilhados, enquanto os excluídos sequer têm direito a uma vida de dignidade e de respeito.

Neste contexto histórico opressor e excludente, ecoa sempre a voz forte e rebelde de protesto e de contestação do Magnificat, desenvolvendo o tema central da magnificência de Deus que se revela gratuitamente e que inverte os valores deste mundo. Em apenas dez versículos, fornece uma insuperável filosofia e teologia da história, unificando o temporal e o eterno, o contingente e o absoluto, e o passado, o presente e o futuro. Três campos semânticos diferentes e complementares emergem da centralidade teológica e filosófica do Magnificat: o da transcendência, o da misericórdia e o da força. Miriam proclama que Deus é o Senhor (Kýrios), cujo nome é santo. O “nome” designa o mistério da proximidade do Deus transcendente. A divina transcendência constrói suatenda” (skenè) entre os homens, mas a sua santidade marca a diferença radical do Totalmente Outro, do Inefável incapaz de ser contido numa representação verbal. A despeito da sua transcendência e santidade inomináveis, a proximidade do Deus do Magnificat desvenda a sua misericórdia (éleos) que perdura porque está enraizada na fidelidade da promessa e da aliança. Por um misterioso paradoxo, a transcendência se fez condescendência amorosa e misericordiosa manifestada na intervenção e irrupção da divindade na humanidade, tomando forma concreta na concepção extraordinária do Emanuel e Salvador. Deus santo e misericordioso manifesta sua força (krátos) salvadora, fazendo maravilhas (megála) na humilde serva (doulè) de Deus. “O Deus de Maria, tal como aparece no Magnificat, é poderoso porque transforma criadoramente a realidade, manifesta sua força salvadora; santo, cumpre o plano de Deus, santifica o seu povo; misericordioso, recorda-se dos pobres e perdidos com amor que é fidelidade e perdão, bondade maternal e amor totalmente gratuito” (AUTRAN, op. cit., p. 94).
Bertilo Brod

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