Este
é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor
aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor.
Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que apresenta uma
reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.
3.3 O ensinamento libertador
do Magnificat (2)
Após estes elementos de natureza
propedêutica ao terceiro tópico, adentremos na análise específica do mesmo,
iniciando com algumas afirmações contundentes que servirão de inspiração para o
nosso intento: “O Magnificat (...) é um dos textos de maior conteúdo
libertador e político do Novo Testamento” (Gutiérez, apud AUTRAN, op. cit.,
p. 84). “Esse hino ressoa como a Marselhesa do front cristão de
libertação na luta entre as potências e os oprimidos deste mundo” (Moltmann,
apud AUTRAN, ibid., p. 85). “Nas comunidades de base, nos grupos onde a
dimensão política da fé se explicita e se exerce, apreciam-se de modo especial
os traços denunciadores, proféticos e libertadores de Maria, presentes em seu
hino de louvor, o Magnificat” (BOFF, op. cit., p. 196-197). “O
canto de Maria é um canto de combate de Deus travado na história humana,
combate pela instauração de um mundo de relações igualitárias, de respeito
profundo a cada ser, no qual habita a divindade” (GEBARA/BINGEMER, op. cit.,
p. 87).
À luz destes depoimentos, fica inteligível
e justificável nosso intento de explorar a dimensão libertadora do ensinamento
de Miriam de Nazaré contido no Magnificat. Sem dúvida, trata-se de um
procedimento teológico, exegético e histórico não corriqueiro, uma vez que a
dimensão política esteve praticamente ausente dos estudos mariológicos, antes
do advento da teologia da libertação. Surgida na América Latina, mas de
projeção e validade universal, já que os pobres e oprimidos existem em todos os
continentes, a teologia da libertação tornou-se uma práxis libertadora e um
ensaio de elaboração sócio-analítica do discurso teológico que tem como seu
ponto de partida a miserabilidade das condições sociais dos pobres e excluídos
e como meta última a libertação e redenção destes em Cristo. Metodologicamente ,
parte-se de uma rigorosa análise sociológica e histórica da realidade humana.
Prossegue-se, aprofundando esta análise, nela inserindo o discurso teológico
pelo recurso hermenêutico da releitura dos textos fundadores da nossa fé, isto
é, da Escrituras, tematizando a dimensão libertadora de toda a história da
salvação. A libertação que é visada não afeta apenas o destino escatológico dos
homens, mas também o seu presente histórico. Objetiva-se a libertação do homem
todo e de todos os homens, mas com uma “opção preferencial pelos pobres e
oprimidos”. A novidade metodológica é a introdução, nesta releitura dos textos
bíblicos, de um novo “círculo hermenêutico”, isto é, de um novo processo de
interpretação e de exegese, cuja fundamentação teórica foi elaborada, com muita
lucidez por Leonardo Boff, ao afirmar que:
“Lemos com os olhos de hoje as
Escrituras cristãs escritas ontem (...). Nossos olhos vêm carregados de
interrogações, expectativas e interesses, que despontam de nossa realidade. Com
eles acedemos aos textos marianos que nos falam de Maria. Os textos sagrados,
por sua vez, nos lançam sua mensagem que se depreende da sua letra. Mas nossos
olhos interessados destacam da totalidade dos textos escriturísticos aqueles
que se configuram como os mais relevantes para a nossa situação. Tais textos
são sublinhados com tinta vermelha, seus contextos são indicados à margem com a
observação: muito importante. Assumimos todos os textos fundadores da nossa fé,
Mas a situação do nosso tempo, com suas urgências e prioridades, privilegia
alguns textos e contextos. Neles houve uma voz que se endereça diretamente aos
nossos ouvidos atuais. O sentido de outrora ganha uma atualidade hoje.
Acolhemos um sentido que se deriva dos textos e criamos um sentido novo devido
à sua ressonância no contexto da nossa História” (Leonardo Boff, apud AUTRAN, op.
cit., p. 86-87).
Já Clodovis Boff, em sua obra Teologia
do Político e suas Mediações, procura fornecer um aparato mais científico
ao “círculo hermenêutico”: “Lemos os textos sagrados com nossos olhos atuais e
por isso sempre interpretamos ao ler; esses mesmos textos nos enviam sua
mensagem na direção do nosso ouvido histórico e são captados na onda sonora do
nosso tempo; recebem, portanto, uma interpretação condizente” (Clodovis Boff,
apud AUTRAN, op. cit., p. 87).
No procedimento metodológico da releitura
das Escrituras, do “círculo hermenêutico”, no âmbito do discurso teológico, não
se pode perder de vista a relação dialética entre Escritura e espírito da
comunidade viva dos fiéis (o sensus fidelium). A rigor, o caráter de
Palavra de Deus não se encontra nem só na letra da Escritura e nem só no
espírito da comunidade ouvinte e leitora, e sim, precisamente na reciprocidade
do movimento de vaivém dinânimo entre ambos. Cabe, por isso, fugir da armadilha
de dois riscos: procurar na Bíblia aprioristicamente o que nos interessa
(pragmatismo hermenêutico) ou mostrar obediência cega e servil ao positivismo
literal (arqueologismo bíblico). Também na semiologia bíblica importa observar
a regra hermenêutica: o sentido surge da relação permanente entre leitor e
texto, isto é, o sentido não é algo reificado e deposto no texto que seria preciso
passivamente recolher pela leitura; esta é também sempre produção de sentido.
Em razão desta regra hermenêutica e semiológica, o texto bíblico está sempre
aberto às sucessivas interpretações históricas. Ele nos remete à palavra atual
e atualizante do Deus feito “lógos” (Palavra revelada) e à voz do
Espírito sempre presente na comunidade dos que crêem.
Conclui-se desta regra teórica que o texto
do Magnificat é fonte de sentido; é grávido de sentidos que virão à luz
quando forem colocados em contato com a realidade histórica. Seu sentido
literário, literal e histórico, enriquecido com as dimensões da simbologia e da
teologia, é o fundamento de todos os sentidos que ele encerra e libera: a
Palavra continua se revelando através das palavras que falam de Miriam de
Nazaré e que o evangelista Lucas a ela atribui. Como Miriam, somos provocados e
induzidos a dar nossa resposta, nossa palavra à Palavra revelada. O sentido
liberado na leitura se concretiza somente na e pela resposta do leitor à
interpelação. Por isso, a decodificação do sentido pleno do Magnificat
ocorre apenas no “sim” intuído e vivido na concretude histórica da vida.
Para apreender o sentido libertador,
profético e mesmo contestador do ensinamento do Magnificat, cumpre, de
um lado, partir da realidade em que se vive e, de outro, inserir a dimensão
libertadora na perspectiva totalizando do cântico. Comecemos pela primeira. Não
é preciso ser um grande cientista social para concluir que nossa situação
atual, na América Latina e em grande parte do mundo, se caracteriza
sócio-político-economicamente como de cativeiro e opressão. A situação opressora atual é o lugar
hermenêutico privilegiado da libertação. Esta situação de injustiça,
opressão e exclusão já não afeta apenas as minorias étnicas, comportamentais ou
de gênero, mas imensas maiorias de povos e populações. Pequenas elites detêm o
poder, o saber e o ter e impõem seus interesses excludentes e exclusivos. Os
poderosos possuem poder efetivo; os ricos detêm não só terra, capital e
tecnologia, mas também o conhecimento e o saber. No pólo oposto, os famintos
passam efetivamente privação e fome; os humildes são realmente oprimidos e
humilhados, enquanto os excluídos sequer têm direito a uma vida de dignidade e
de respeito.
Neste contexto
histórico opressor
e excludente , ecoa sempre
a voz forte
e rebelde de protesto
e de contestação do Magnificat,
desenvolvendo o tema central da magnificência de
Deus que
se revela gratuitamente e que inverte os valores
deste mundo . Em
apenas dez
versículos , fornece uma insuperável filosofia
e teologia da história ,
unificando o temporal e o eterno , o contingente
e o absoluto , e o passado ,
o presente e o futuro .
Três campos
semânticos diferentes
e complementares emergem da centralidade
teológica e filosófica do Magnificat:
o da transcendência , o da misericórdia e o da força .
Miriam proclama que
Deus é o Senhor
(Kýrios), cujo nome é santo . O
“nome ” designa o mistério
da proximidade do Deus
transcendente . A divina
transcendência constrói sua “tenda ” (skenè)
entre os homens ,
mas a sua
santidade marca
a diferença radical
do Totalmente Outro ,
do Inefável incapaz
de ser contido numa representação
verbal . A despeito
da sua transcendência
e santidade inomináveis ,
a proximidade do Deus
do Magnificat desvenda a sua misericórdia (éleos) que
perdura porque está enraizada na fidelidade da promessa e da
aliança . Por
um misterioso paradoxo ,
a transcendência
se fez condescendência amorosa
e misericordiosa manifestada na intervenção
e irrupção da divindade
na humanidade , tomando forma
concreta na concepção
extraordinária do Emanuel e Salvador . Deus santo e misericordioso manifesta
sua força
(krátos) salvadora, fazendo maravilhas
(megála) na humilde serva (doulè) de Deus .
“O Deus de Maria, tal
como aparece no Magnificat, é poderoso porque
transforma criadoramente a realidade , manifesta sua força salvadora; santo ,
cumpre o plano de Deus ,
santifica o seu povo ;
misericordioso, recorda-se dos pobres
e perdidos com amor
que é fidelidade
e perdão , bondade
maternal e amor totalmente
gratuito ” (AUTRAN, op. cit., p.
94).
Bertilo Brod
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