domingo, 13 de abril de 2014

Dimensao social da paixao de Jesus

Dimensão política do Tríduo Pascal

Dentro de poucos dias estaremos celebrando a festa da Páscoa cristã. Desde a mais remota antiguidade a Páscoa cristã é a celebração do mistério da ressurreição de Jesus. Porém, a liturgia pascal, desde os primórdios, uniu a celebração da ressurreição de Jesus à sua paixão e morte. Num primeiro momento pode parecer estranho que a celebração pascal, enquanto festa da vida, esteja profundamente conectada com a paixão e a morte de Jesus. Mas nisso não há nenhum exagero e nem tão pouco algo fora de lugar.
A ressurreição acontece porque antes houve paixão e morte. Paixão entendida como a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai até as últimas consequências (Mc 14,34-36). Morte porque aquele galileu se tornara muito incômodo para o sistema religioso e político da época e era preciso eliminá-lo de uma só vez e para sempre (Jo 5,18). Torturado, e depois eliminado da pior forma possível para aquela época, Jesus ressuscita pelo poder de Deus (At 2,24). Sua ressurreição foi a resposta dada pelo Pai aos seus torturadores e aos seus algozes. Eles pensavam que tinham eliminado para sempre a sua memória, mas, de repente, Jesus ressuscita glorioso e torna-se mais incômodo e mais vivo do que antes, para desespero daqueles que o tinham torturado e matado (Mt 28,11-15; At 5,21-42).
Precisamos eliminar os resquícios de certa cristologia ainda presente em determinados ambientes, segundo a qual Jesus teria passado pela tortura e pela morte para aplacar a ira de seu Pai. Deus teria ficado muito zangado com os pecados da humanidade e exigia uma satisfação, uma reparação à altura. E para realizar tal reparação teria decidido desde toda a eternidade punir o próprio Filho, de modo que sua ira fosse aplacada. Chegou-se a atribuir a Santo Anselmo esse absurdo. Porém, a teoria da expiação não passa de uma falsa interpretação do pensamento deste grande teólogo. Na verdade o que Anselmo quis afirmar, com sua teoria, foi a plena e absoluta liberdade de Jesus e a plena e absoluta acolhida da decisão de Jesus por parte do Pai. O Filho decide ir até o fim e não recuar, mesmo diante da ameaça de morte. O Pai decide acolher a decisão do Filho até as últimas consequências. Não interfere e não impõe ao Filho um meio-termo, um compromisso para salvar a própria pele, como, às vezes, costumam fazer certos pais quando seus filhos são ameaçados.
A superação desse tipo de cristologia do conformismo do Filho e da brutalidade sanguinária do Pai é de fundamental importância para não obscurecermos e não negarmos as devidas responsabilidades. As lideranças religiosas judaicas e o império romano tiveram, sim, a sua responsabilidade na tortura e na morte de Jesus (Jo 19,11). O que aconteceu não foi fruto do acaso ou de um plano previamente estabelecido por Deus e do qual Jesus não pôde fugir. O que aconteceu foi um conluio entre o poder religioso e o poder político que predominavam na Palestina daquela época. O sistema religioso e o sistema político de então torturaram e mataram Jesus. É claro que isso não nos dá o direito de acusar todos os judeus de todas as épocas pelo assassinato de Jesus, como tristemente e lamentavelmente fez a Igreja Católica até pouco tempo atrás e como levianamente continuam fazendo alguns católicos de direita. Não podemos nem mesmo condenar todos os romanos daquela época. Mas é preciso deixar claro que a morte de Jesus não foi um desejo do Pai e do qual o Filho não teve como escapar. Dizer que tudo já estava previsto é transformar a fé cristã em puro fatalismo e em mero capricho de Deus. E isso seria um tremendo absurdo.
A paixão, a morte e a ressurreição de Jesus inspiraram homens e mulheres de todos os tempos. Essas pessoas, animadas pela fé em Cristo, assumiram corajosamente o projeto de Deus até as últimas consequências. Desde os primeiros mártires do cristianismo até os mais recentes como Santos Dias, Margarida Alves, Dorothy Stang, Josimo e Oscar Romero, homens e mulheres seguiram em frente e não arredaram o pé diante das ameaças dos poderosos, prepotentes e arrogantes. E faziam isso porque estavam convencidos de que entre paixão, morte e ressurreição existe uma profunda ligação. Estavam convencidos de que, mesmo triturados e assassinados pelos sistemas religiosos e políticos, continuariam vivos, ressuscitados pelo poder de Deus. Famosa é a frase de Dom Oscar Romero: “Se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”.
Meditar nestes termos sobre a paixão e a morte de Jesus é essencial, uma vez que corremos o risco de cultuar um Jesus açucarado, irreal e inexistente. De fato, ainda hoje não são poucas as pessoas e os movimentos de Igreja nos quais Jesus é visto sem nenhuma conexão com a sua história, com os fatos que antecederam a Páscoa. Isso leva a um cristianismo aguado e descomprometido, que se recusa a ver a realidade e se distancia propositadamente de um compromisso sério com a luta pela justiça e pela construção de um mundo mais humano e saudável. Nós cremos firmemente na ressurreição, no Cristo glorioso que venceu a dor, o sofrimento e a morte (Mc 16,6). Mas não podemos imaginar um Cristo ressuscitado diferente daquele que caminhou pelas estradas da Galileia e que enfrentou a paixão e a morte por causa da sua fidelidade ao projeto do Pai e por causa de seu amor pelo povo. As narrativas das aparições do Ressuscitado, mais do que evidenciar a reanimação de um cadáver – como se Jesus tivesse readquirido o mesmo corpo de antes da morte – querem evidenciar a relação entre o Jesus histórico e o Jesus ressuscitado (Lc 24,39-40; Jo 20,27). Querem mostrar que não é possível adorar o Ressuscitado negando aquele Jesus que caminhou pelas entradas empoeiradas da Palestina, anunciando a libertação aos pobres e oprimidos.
Neste sentido pode-se e deve-se dizer que o Tríduo Pascal possui uma dimensão política inegável. Celebrá-lo é reconhecer que Jesus, deliberadamente e conscientemente tomou partido, escolhendo ser fiel ao projeto do Pai, o qual incluía uma paixão pelo povo, um anúncio de libertação e uma rejeição radical do projeto do templo de Jerusalém que tinha se corrompido, transformando a religião num “mercado religioso”, num “covil de ladrões” (Jo 2,16). Celebrar o Tríduo Pascal é reconhecer que Jesus rejeitou o projeto político dos romanos, cujos chefes agiam como verdadeiras “raposas” (Lc 13,31-33), fazendo pesar sobre os ombros das pessoas, especialmente dos mais pobres, a tirania e a opressão (Mc 10,42-45).
Sem essa dimensão política, toda celebração pascal vira uma farsa, um ritual sacrílego que ofende a Deus, porque desprovido de consequências reais para a vida da humanidade. Ainda hoje existem aqueles que querem uma Semana Santa folclórica, com bastante emoção e choro diante de uma estátua de Nossa Senhora das Dores ou de um Senhor dos Passos branco, de olhos e sangue azuis. Mas não querem uma Semana Santa que associe as dores de Maria, mãe de Jesus, às dores de Cláudia Teixeira, negra, pobre, moradora de periferia, brutalmente arrastada e assassinada pela Polícia Militar do Rio. Não querem uma Semana Santa que ouse associar o Cristo amarrado na coluna da flagelação ao jovem negro amarrado a um poste por playboys brancos cariocas, num bairro chique do Rio de Janeiro.
É fácil comover-se diante de estátuas, mesmo que sejam estátuas “sagradas”. Elas estão lá imóveis. Não nos incomodam e não nos desinstalam. Não nos causam problemas, não nos provocam e nem exigem de nós conversão. Mas comover-se diante de estátuas não é cristão, não é evangélico e, de certa maneira, é uma idolatria. Idolatria porque Jesus não quer lágrimas para ele e nem tão pouco para uma estátua sua ou de sua mãe. Não foi isso o que ele disse a algumas mulheres enquanto se dirigia para o Calvário (Lc 23,27-32)? O que ele quer mesmo de nós é uma comoção que se transforme em ação em favor dos que estão oprimidos, sofridos, abandonados e excluídos do direito à vida plena (Mt 25,31-46). Urge, pois, celebrar o Tríduo Pascal com obras e gestos, fazendo o que pediu o papa Francisco na Evangelii Gaudium (EG), ou seja, “tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG, 24). Se a nossa celebração da Páscoa serve apenas para aderir a uma economia que mata, deixa do mesmo jeito a desigualdade social, ajuda a produzir uma sociedade de “pessoas descartáveis” e contribui para a globalização da indiferença (EG, 53-60), então é uma páscoa consumista, de supermercado, e não a Páscoa de Jesus. Para ser Páscoa de Jesus é preciso que ela não seja uma “espiritualidade do bem-estar”, uma “teologia da prosperidade” alienante, subjetiva, sem compromissos fraternos (EG, 89-90). Para ser a celebração da Páscoa de Jesus ela precisa ser política, ou seja, anunciar um caminho esperançoso e libertador que leve felicidade e alegria aos pobres. Para ser Páscoa de Jesus ela terá que ser uma verdadeira “caravana solidária” (EG, 87).

José Lisboa Moreira de Oliveira

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Coluna Prestes

A epopéia da Coluna Prestes
O dia 11 de abril de 1927 marca o inicio da formação da Coluna Prestes, que percorreu 25 mil quilômetros, combatendo as milícias dos latifundiários. Foi um movimento liderado por militares, que faziam oposição à República Velha e às classes dominantes na época. Teve início em abril de 1925, no governo de Artur Bernardes (1922-1926).
Memorial que marca o ponto de partida da Coluna (S. Angelo, RS)
No início da década de XX, o Brasil vivia sob o domínio das oligarquias rurais e setores médios urbanos, como os militares, por exemplo, começaram a questionar este poder e a pressionar por mais investimentos nas forças armadas.
O primeiro levante militar ocorreu no Rio de Janeiro, liderado pelos tenentes do exército, que ficou conhecido comoTenentismo. Em 1924, surgiu uma nova rebelião, desta vez em São Paulo. Depois de muitos combates contra as tropas fiéis ao governo, os revoltosos se refugiaram no interior do Estado.
Enquanto isso, Luís Carlos Prestes, também militar, organizava outro grupo no Rio Grande do Sul. Em abril de 1925, as duas frentes de oposição, a Paulista liderada por Miguel Costa, e a Gaúcha, por Prestes, uniram-se em Foz do Iguaçu e partiram para uma caminhada pelo Brasil.
Com aproximadamente mil e quinhentos homens, a Coluna Prestes percorreu 25.000 quilômetros. Durante dois anos e meio atravessou 11 estados. Do sul, o grupo rumou para centro-oeste do país, percorreu o nordeste, até o estado do Maranhão. Na volta, os combatentes refizeram o caminho, até chegar à fronteira com Bolívia.
Nas cidades por onde passava, a Coluna Prestes despertava apoio da população e a atenção dos coronéis, que também eram alvo das críticas do movimento. Sempre vigiados por soldados do governo, os revoltosos evitavam confrontos diretos com as tropas, por meio de táticas de guerrilha.
Memorial à Coluna Prestes
projetado por Oscar Niemayer (S. Angelo, RS)
Por meio de comícios e manifestos, a Coluna denunciava à população a situação política e social do país. Num primeiro momento, não houve muitos resultados, porém o Movimento ajudou a balançar as bases, já enfraquecidas, do sistema oligárquico e a preparar caminho para a Revolução de 1930.
Luís Carlos Prestes tornou-se o ícone desta Marcha, ficando conhecido como “O cavaleiro da esperança”. Ele não foi o principal líder da Coluna. Quem tomou a frente do percurso foi Miguel Costa. Mas Prestes era o idealizador, aquele que alimentava o sentimento de liberdade política, voto secreto e justiça social.
Em fevereiro de 1927, a Coluna chegou à Bolívia, onde se desfez. Muitos combatentes se exilaram ali mesmo. Prestes foi para Rússia e, posteriormente, voltou ao país como um dos líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Domingo dos Ramos (Ano A - 2014)

A liberdade é um caminho de descida e de compaixão
Ouvindo o relato da entrada de Jesus em Jerusalém, somos forçados a abandonar toda fantasia de poder e de sucesso que alimentamos e projetamos nele. Nesta cena não há nada de triunfal. Jesus vem da Galiléia e entra na capital do seu país politicamente dominado montado numa jumenta. Nada de cortejos de honra, de generais e cavalos vistosos, de discursos oficiais de acolhida. Jesus chega a Jerusalém como sempre foi: um servidor, um reformador, um simples homem da Galiléia.
Ele chega à capital do seu país caminhando à frente de um numeroso e desconcertado grupo de discípulos e discípulas. O povo da capital não o conhece e o teme, mas o pessoal do campo o aclama com entusiasmo, como o Messias esperado. “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!” Como o velho Simeão, essa gente sabia reconhecer naquele homem que tinha ouvidos e palavras para os últimos o Enviado de Deus. E isso contrasta com a fria acolhida do povo de Jerusalém...
Na verdade, este grupo aclama o despontar do Reino messiânico inspirado em Davi e a chegada do líder enviado por Deus. Jesus, porém, não realiza as ações de poder que esta ideologia messiânica comportava. Ele é o servo paciente e o ouvinte atento da Palavra do qual fala Isaías, e é dessa escuta que brota uma palavra que desperta as pessoas adormecidas e encoraja as acorrentadas pelo medo. Sua ação não será outra que o dom incondicional e solidário de si mesmo na cruz.
O entusiasmo suscitado naquele pequeno grupo de gente que vinha do interior não se sustentará por muito tempo. Os próprios discípulos se unem às multidões e o saúdam como o Messias esperado, embora em seguida se sintam obrigados e voltar atrás. Os gritos de ‘hosana’ – Deus salva agora! – logo serão substituídos pelo insolente pedido ‘crucifica-o’, fruto da frustração popular e da manipulação interesseira das autoridades políticas e religiosas de Jerusalém.
A divisão que se criava entre os próprios discípulos, assim como a possibilidade concreta de traição, não fazem Jesus mudar de rumo. É verdade que ele se sente abatido e chega a se perguntar sobre o que fazer. Ele enfrenta um discernimento difícil. Pede aos discípulos que fiquem com ele e vigiem. “Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice...” A oração no Getsêmani foi um momento de confronto profundo com a vontade do Pai e com a traição que se desenhava entre os próprios discípulos.
Aquele que o cortejo havia saudado Jesus na entrada da cidade como quem vinha e agia em nome de Deus permaneceu fiel e acabou preso, abandonado pelos próprios discípulos, condenado e pregado na cruz. Tanto para os judeus como para os romanos, a crucifixão representava a completa negação do ser humano, o redundante fracasso da pretensão de liderança, a absoluta ausência de Deus, a mais radical falta de sentido. E para os discípulos, essa foi a pedra no meio do caminho...
As autoridades ridicularizam e desafiam Jesus a salvar a própria pele, e oele mesmo parece mergulhar num turbilhão escuro e protestar contra o abandono até por parte de Deus. “Desde o meio-dia até as três horas da tarde houve escuridão sobre toda a terra.” Mas Jesus acaba vislumbrando a suprema consolação na radicalização do dom de si mesmo: “E eis que a cortina do santuário rasgou-se de alto abaixo, a terra tremeu e as pedras se partiram...”
É da boca de um soldado pagão se ouve a palavra que faz brilhar uma pequena luz na escuridão que fazia em plena tarde. “Ele era mesmo Filho de Deus!” O que aquele soldado viu que os outros não viram? Viu aquilo Simeão reconhecera trinta anos antes: que Deus se revela na pequenez e na fidelidade daqueles que morrem defendendo a vida. Naquele homem anulado e descartado, mas absolutamente fiel no seu amor pelos últimos e senhor de si mesmo, o soldado viu a exaltação da humanidade de Deus, diante da qual todo corpo se inclina e todo poder despótico treme.
Jesus de Nazaré, humilde justiceiro dos pobres, herdeiro do pequeno Davi. Abre nossos ouvidos para que prestemos atenção como discípulos, e dá-nos palavras adestradas para confortar as pessoas abatidas. Envia-nos teu Espírito, para que te acolhamos em nossa cidade e em nosso coração, e permaneçamos firmes aos pés da cruz da irrelevância na qual os poderes te condenam ainda hoje. E agracia-nos com a alegria profunda que só experimentam aqueles que fazem contigo o caminho da descida que esvazia e despoja, o único que enriquece e liberta verdadeiramente. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 50,4-7 * Salmo 21 (22) * Carta aos Filipenses 2,6-11 * Mateus 21,1-11; 27,11-54)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Memoria de um martir do Nazismo

Dietrich Bonhoeffer

O pastor e teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer se envolveu decididamente na resistência contra o nazismo, razão pela qual foi preso, levado para um campo de concentração de e assassinado no dia 9 de abril de 1945. Um ano antes, já preso, Bonhoeffer  refletia com profundidade sobre o que se passava no seu íntimo e registrou suas interrogações no expressivo poema que transcrevo abaixo. É uma homenagem a este corajoso cristão e teólogo e um convite a sermos coerentes e superarmos a tentação de tomar a exterioridade pela inteira verdade do nosso ser.

Quem sou eu? Freqüentemente me dizem
Que saí da confinação da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão.

Quem sou eu? Freqüentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.
Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer.

Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves,
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto?

Quem sou eu? Este, ou o outro?
Sou uma pessoa hoje, e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo? Um hipócrita diante dos outros,
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debanda da vitória já alcançada?

Quem sou eu? Estas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!

(18 de julho de 1944).

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin (11)

A encarnação é condição para a missão

A encarnação é o divino dinamismo que leva Jesus e aqueles que o seguem, especialmente aqueles que se consagram como religiosos e Missionários da Sagrada Família, à inserção, à vida de família, ao discipulado e à missão.
Inserção no meio do Povo: A inserção é a humilde descida como Verbo à condição humana, mediante a resposta de Maria. Isso insere Jesus na realidade judaica, nazaretana, no mundo do trabalho. Pela encarnação, Jesus faz-se Povo e do Povo.
Vida familiar e comunitária: Encarnando-se, Jesus vive no seio da Sagrada Família de Nazaré a comunhão do mistério intra-trinitário. Ele inseriu-se antes de tudo no Lar de Nazaré, onde fez a experiência relacional e interpessoal com José e Maria. No ambiente familiar de Nazaré o Verbo se fez humano e não apenas submisso, mas também obediência afetuoso, dialogante e respeitoso. Ali ele viveu uma comunhão exemplar. Ali ele viveu e progrediu no amor fraternal com o povo de Nazaré.
Discipulado: Guiado pelo Espírito, Jesus cresce em idade, sabedoria e graça, em todos os níveis e dimensões da pessoa humana. Na oração assídua e na escuta da Palavra ele desenvolve ouvidos de discípulo, busca discernir a vontade do Pai, abraçando e assumindo a sua missão, para a qual nascera e fora enviado.
Missão: Plenamente senhor da própria identidade (“Eu sou!...”), Jesus se lança sem reservas no cumprimento do disígnio do Pai acerca do ser humano, da sociedade e do mundo: dedica-se ao anúncio e à edificação do Reino de Deus.  Para ele, o Reino de Deus é a igualdade de todos em tudo; a liberdade de ser, pensar e agir; a justiça para os pobres e explorados; a fraternidade universal, porque todos temos origem e meta no mesmo e único Pai. É dessa missão que nasce a comunidade, a Igreja.
A vida comunitária e o discipulado são meios, pois nos modelam para a missão inserida no anúncio e na construção do Reino de Deus. Por meio da vida fraterna e do discipulado, o dinamismo do Reino de Deus opera e acontece em nós. Assim, tornamo-nos agentes do Reino, mais pelo testemunho que pela palavra. O que anunciamos não é uma mera teoria! Nossa missão consiste em realizar e promover a práxis do Evangelho, encarnando-o em nós mesmos.
Assim, na missão não seremos apenas arautos, discursantes teóricos. Exerceremos a missão promovendo práxis novas. Seremos mais cronosféricos e bem menos simbolosféricos. É por isso que a inserção é conditio sino qua non para que a missão seja exitosa e eficaz.  Mas, enquanto estivermos em missão inserida, jamais podemos  descurar a vida comunitária e o discipulado individual e grupal. Nela é que aurimos forças, alento e inspiração (e até mesmo consolação nos revezes e embates inerentes à missão) para prosseguirmos com o Mestre, quiçá até à cruz.

Pe. Rodolpho Ceolin msf

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Quinto Domingo da Quaresma (Ano A - 2014)

A liberdade sem compaixão vira refém da indiferença

Neste último domingo da quaresma, somos convidados a avançar na descoberta do mistério humano e divino que se revela em Jesus de Nazaré. E o faremos tomando consciência das nossas fragilidades, possibilidades e esperanças. Sabemos que a vida é como a flor do campo, tão bela quanto vulnerável, mas desejamos ardentemente e escolhemos resolutamente a Vida para nós mesmos e para o nosso semelhante, mas sabemos das ameaças às quais ela é submetida.
A humana sensação de fracasso e de frustração se faz refrão acusatório na voz de Marta e de Maria. Elas têm a impressão de que Jesus havia feito pouco caso quando lhe avisaram: “Aquele que amas está doente”. Muitas vezes temos esta mesma sensação diante de doenças incuráveis, de acidentes trágicos, de mortes estúpidas, de catástrofes naturais. Na revolta gerada no ventre dor, chegamos a acusar Deus, pois ele nos parece ausente, desinteressado, cínico e sem coração.
Mas sabemos que “Jesus amava Marta, a irmã dela e Lázaro”, assim como ama apaixonadamente cada um e cada uma de nós. Nós somos sua família, seus irmãos e irmãs, seus amigos e amigas, ainda que não se deixe prender aos nossos desejos e interesses nem se submeta às urgências do nosso calendário. Jesus sempre chega para nos ajudar a mudar as coisas, e isso supõe e, ao mesmo tempo, desperta a fé. A fé é esta abertura radical para transcender o óbvio, o esperado, o devido.
Em Betância, Jesus encontra suas amigas em pranto, tristes pela perda do irmão e pela sua ausência injustificável. Mas ele nono é nem pse comove não é indiferente, e participa da dor das amigas, como faz também hoje diante de todos aqueles que choram, impotentes e inconsoláveis. “E Jesus começou a chorar...” É mediante sua compaixão que ele nos faz experimentar seu amor. “Vejam como ele o amava...” Eis aqui a porta que abre a possibilidade de mudança: o amor e a compaixão, tão divinos e tão humanos.
Acreditar em Jesus Cristo não significa acreditar ou apostar no poder de Deus, mas confiar na força do seu amor. Da parte de Jesus, o amor que se compadece; da nossa parte, a confiança que abre horizontes e possibilidades. Da fé e da abertura ao amor compassivo e solidário brotam novas possibilidades de Vida e a força da ressurreição. “Se você acreditar, verá a glória de Deus”. Marta e Maria provam a profunda e humana identificação de Jesus com suas dores. Esta é a glória de Deus: seu amor pela humanidade. A glória de Deus é o ser humano vivo, dizia Santo Irineu.
Jesus convida Maria a ultrapassar a dor que às vezes obscurece o olhar da fé. E Lázaro, no escuro da morte e no fundo da sepultura, também é interpelado: “Vem para fora!” O grito de Jesus, pronunciado como oração, chama à vida, a um novo olhar e um novo agir. É apelo a sair dos nossos interesses e projetos, geralmente nascidos no ventre do medo e da indiferença, um convite a sair da prisão dos sistemas de poder e de morte e emprender um caminho, a fazer a passagem-páscoa.
Mas nesta saída, como em todo caminho, nossos passos serão sempre necessariamente inseguros. Pertencemos à história e temos muitas amarras. Mas escutamos, de formas diversas, uma ordem: “Desamarrem e deixem que ele ande...” A fé em Jesus Cristo não é doutrina que fecha, peso que oprime, laço que amarra. Oxalá toda a Igreja aprenda esta lição! Como diz Paulo, crer significa deixar-se conduzir pelo Espírito de Deuse superar a busca compulsiva dos interesses egoístas.
Marta e Maria acreditaram e por isso viram a glória de Deus patente e potente na compaixão que resgata a vida. E muitos judeus que “viram o que Jesus fez, acreditaram nele”. Mas o que é que eles realmente viram? Contemplaram e testemunharam a profunda humanidade de Deus e este incrível dinamismo que o aproxima das suas criaturas machucadas e oprimidas, sem se importar se cheiram mal. Viram isso na relação de Jesus com Lázaro, com Maria e com Marta, e por isso acreditaram!
Voltemo-nos a Deus inspirados na oração de Bonhoefer (+09.04.1945) na prisão. Senhor, as trevas nos envolvem, mas em ti há luz. Sentimo-nos sozinhos, mas tu não nos abandonas. Sentimo-nos desfalecer, mas em ti encontramos socorro. Estamos inquietos, mas em ti encontramos a paz. A amargura nos devora, mas em ti encontramos a paciência. Não compreendemos teus caminhos, mas tu sabes qual é a boa estrada. Acolhe-nos como membros vivos do teu corpo e assim te ajudaremos a chamar para fora, a resgatar os homens e mulheres vítimas do tráfico humano. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Ezequiel 37,12-14 * Salmo 129 (130) * Carta aos Romanos 8,8-11* João 11,1-45)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Um testemunho do Pe. Ceolin

Hoje lembramos nove meses da partida do nosso amigo Pe. Ceolin. Celebremos a data recordando mais um dos seus inesqueciveis testemunhos.

Pistas para encarnar a espiritualidade da Sagrada Família

No início do ano 2000, respondendo à pergunta sobre quais seriam as atitudes e práticas mais importantes a serem desenvolvidas pelos junioristas na dimensão da espiritualidade, o Pe. Rodolpho Ceolin, então formador dos junioristas em Santo Ângelo, propunha uma lista interessante, mesmo sem a pretensão de ser sistemático nem exaustivo. Um denominador comum: “Para que vivam de acordo com sua identidade de consagrados e Missionários da Sagrada Família.”
Um primeiro conjunto de capacidades e atitudes está mais ligado ao aspecto propriamente teologal da espiritualidade. “A capacidade de contemplação do mistério e da ação da Trindade. A escuta, o silêncio e o diálogo com Deus (deserto interior). A prática do abandono dócil e amoroso ao Espírito. Exercitar-se na leitura orante da Bíblia.”
Mas há um segundo bloco, mais relacionado com uma espiritualidade humanista e encarnada na vida pessoal. “O hábito de confrontar-se com Jesus Cristo e, à luz da sua Palavra e da sua Ação, aprender a discernir evangelicamente (à maneira dele)  o próprio viver. Ações concretas de amor-doação aos coirmãos como humilde servidor. A prática do perdão. Simplicidade, cordialidade, respeito com os demais (ser deveras humano). Hábito de cultivo pessoal e comunitário a partir do Plano de Formação, do Projeto Político-Pedagógico, do Projeto de Vida e do Plano Estratégico da Província.”
E há um terceiro conjunto de atitudes e capacidades, este mais vinculado ao mundo social e pastoral, o que revela uma concepção de espiritualidade que tem a ver também com a dimensão socio-pastoral da vida cristã e com a ação. “Inserção pastoral evangelizadora entre as pessoas mais humildes e pobres. Engajamento em pastorais sociais e movimentos populares. Ardor missionário e gosto pelo Carisma, prontidão para ir “àqueles que estão longe”.
Interrogado sobre o sabor, o sentido e a força que estes valores e práticas tinham na sua própria caminhada de vida, o Pe. Ceolin dá um belo testemunho, que merece ser relido e recordado frequentemente. Este testemunho pessoal é ainda mais relevante se levarmos em conta que ele estava então com 70 anos, e era, de longe, o mais idoso em meio a um grupo de formadores cuja idade não passava dos 40 anos.
“Confesso que vivo muito aquém do que proponho e almejo aos demais. Todavia, sou sincero em dizer que sempre que tenho assumido com determinação o cultivo pessoal, o silêncio, a oração, a entre-ajuda fraterna, encontrei luzes e forças para ser fiel à Vida Consagrada e superar crises cruciais. Testemunho também que vi muitos coirmãos fraquejarem vocacionalmente em razão do abandono ou do desleixo em se cultivarem com afinco.”
E continua, com uma bela afirmação sobre o caráter pedagógico e espiritual da inserção nos meios populares: “O fato de, no passado recente, ter ido à inserção e me aproximado bastante do povo sofrido, contribuiu muito para que me sinta mais Missionário da Sagrada Família. Com isso cresceu em mim grande apreço à vida religiosa. Antes, me sentia muito padre; hoje, mais religioso, mesmo sendo presbítero.”
Em seguida, sempre recorrendo à experiência pessoal, o Pe. Rodolpho estabelece um vínculo entre o crescimento no seguimento de Jesus Cristo e frente aos superiores: “Vem crescendo em mim a postura de discípulo de Jesus. E em meu viver sempre procurei ser dócil ao Espírito. Isto me tem sido de grande valia. Por experiência, tornei-me convicto de que, sendo dócil aos “superiores” e à voz dos coirmãos, Deus age providencialmente na nossa vida.”
E conclui, com uma serena consciência de si mesmo e reconhecida ponderação: “Reconheço e confesso que, tanto eu como qualquer coirmão, quando assumimos o que somos e zelamos pelo nosso cultivo, tornamo-nos instrumentos mais valiosos nas mãos de Deus e da Província. Também nos tornamos pessoas mais felizes e realizadas.” Belo testemunho que pode nos alimentar e iluminar no próximo encontro dos formadores da Província.

Itacir Brassiani msf

Canonização do Pe. José de Anchieta

José de Anchieta, Apóstolo do Brasil
Hoje, 2 de abril, diia em que recordamos o falecimento do saudoso Papa João Paulo II, a Igreja está reconhecendo oficialmente e proclamando a santidade do beato Padre José de Anchieta. Este é um momento de graça para o povo brasileiro.
O padre José de Anchieta nasceu em 19 de março de 1534, nas ilhas Canárias, Espanha. Seu primeiro contato com os jesuítas foi quando estudava filosofia na universidade de Coimbra, Portugal. Em 1551, Anchieta entrou na Companhia de Jesus.
A missão no Brasil começou em 1553, quando, ainda noviço, aos 19 anos, desembarcou em Salvador (BA) para trabalhar com padre Manuel da Nóbrega e outros missionários. A fundação da cidade de São Paulo está relacionada à primeira missa celebrada na missão de Piratininga, em 25 de janeiro de 1554, festa litúrgica da Conversão do apóstolo São Paulo. Ali, os jesuítas fundaram um colégio, o primeiro da Companhia de Jesus na América Latina.
Outros elementos são marcantes na história do beato José de Anchieta, no Brasil. Ele ensinou a língua portuguesa aos filhos de índios e de portugueses; aprendeu a língua indígena; escreveu gramática, catecismo, peças de teatro e hinos na língua dos índios, além de outras obras em português, latim, tupi e guarani; participou de negociações de paz em conflitos entre índios e portugueses; fundou outro colégio no Rio de Janeiro, no qual foi reitor; foi responsável por outras missões e também Superior provincial dos jesuítas no Brasil; e escreveu muitos relatos sobre a missão e particularidades da terra e do povo brasileiros.

José de Anchieta morreu em 9 de junho de 1597, em Reritiba, cidade fundada por ele no Espírito Santo que futuramente recebeu o nome de Anchieta. O título de “Apóstolo do Brasil” foi dado pelo prelado do Rio de Janeiro, dom Bartolomeu Simões Pereira, durante a homilia do funeral.

terça-feira, 1 de abril de 2014

CNBB se pronuncia sobre os 50 anos do golpe militar

DECLARAÇÃO
POR TEMPOS NOVOS, COM LIBERDADE E DEMOCRACIA
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB faz memória, neste 1º de abril, com todo o Brasil, dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964, que levou o país a viver um dos períodos mais sombrios de sua história. Recontar os tempos do regime de exceção faz sentido enquanto nos leva a perceber o erro histórico do golpe, a admitir que nem tudo foi devidamente reparado e a alertar as gerações pós-ditadura para que se mantenham atuantes na defesa do Estado Democrático de Direito.
Se é verdade que, no início, setores da Igreja apoiaram as movimentações que resultaram na chamada “revolução” com vistas a combater o comunismo, também é verdade que a Igreja não se omitiu diante da repressão tão logo constatou que os métodos usados pelos novos detentores do poder não respeitavam a dignidade da pessoa humana e seus direitos.
Estabeleceu-se uma espiral da violência com a prática da tortura, o cerceamento da liberdade de expressão, a censura à imprensa, a cassação de políticos; instalaram-se o medo e o terror. Em nome do progresso, que não se realizou, povos foram expulsos de suas terras e outros até dizimados. Ate hoje há mortos que não foram sepultados por seus familiares.
Ainda paira muita sombra a encobrir a verdade sobre os 21 anos que fizeram do Brasil o país da dor e da lágrima. Ajuda-nos a pagar essa dívida histórica com as vítimas do regime a Comissão da Verdade que tem por objetivo trazer à luz, sem revanchismo nem vingança o que insiste em ficar escondido nos porões da ditadura.
Graças a muitos que acreditaram e lutaram pela redemocratização do país, alguns com o sacrifício da própria vida, hoje vivemos tempos novos. Respiramos os ares da liberdade e da democracia. Porém, é necessário superar a injustiça, a desigualdade social, a violência, a corrupção, o descrédito com a política, o desrespeito aos direitos humanos, a tortura... A democracia exige participação constante de todos.
Fiel à sua missão evangelizadora, a CNBB reafirma seu compromisso com a defesa de uma democracia participativa e com justiça social para todos. Conclama a sociedade brasileira a ser protagonista de uma nova história, livre do medo e forte na esperança.
Nossa Senhora Aparecida, padroeira de nossa Pátria, nos projeta com seu manto, ilumine nossas mentes e corações a fim de que trilhemos somente os caminhos da paz, da justiça e do amor.

Cardeal Raymundo Damasceno Assis, Arcebispo de Aparecida, Presidente da CNBB
Dom José Belisário da Silva, OFM, Arcebispo de São Luís do Maranhão, Vice Presidente da CNBB
Dom Leonardo Ulrich Steiner, Bispo Auxiliar de Brasília, Secretário Geral da CNBB


DITADURA NUNCA MAIS

DECLARAÇÃO PÚBLICA
COMPROMISSO COLETIVO PELA DEMOCRACIA
BRASIL: DITADURA NUNCA MAIS

“Ah! Se conhecesses também tu, ainda hoje, o que serve para a paz” (Lc 19,42)
Há 50 anos, o presidente João Goulart foi deposto e instaurou-se uma ditadura no Brasil que durou 21 anos. Ao longo deste período, movimentos estudantis, de trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, intelectuais e grupos religiosos lutaram arduamente pela democracia. Muitos foram assassinados, torturados, exilados e “desaparecidos”. São páginas ainda pouco esclarecidas de nossa história recente. O aprofundamento do direito à memória e à verdade é condição para a edificação da sociedade, pois garante que pessoas que sofreram violência por parte de agentes de Estado sejam reconhecidas como vítimas e suas histórias sejam resgatadas.
Grupos ligados às Igrejas, em conjunto com muitos movimentos da sociedade,foram imprescindíveis para a superação deste período. Ressalta-se a mobilização para a denúncia e registro dos crimes de tortura que resultou no Projeto Brasil: Nunca Mais, protagonizado pelo movimento ecumênico com o apoio do Conselho Mundial de Igrejas. O acervo foi recentemente repatriado e contribuirá para elucidar fatos e histórias esquecidas.
Apesar de todo o aparato político, econômico e religioso da ditadura que gerou repressões, censuras, prisões, assassinatos, exílios políticos e sofrimentos foram dados passos significativos em direção à abertura democrática. Conquistamos parcialmente a Anistia, inundamos as praças nas Diretas Já. O processo constituinte foi iniciado, possibilitando que questões antigas fossem colocadas em debate como a Reforma Agrária, os direitos sociais, os direitos humanos, a soberania nacional com a necessidade de uma auditoria da dívida externa e a ideia do controle social do Estado.
Os fatos por si confirmam que nossa democracia é limitada e inconclusa. A Reforma Agrária não foi realizada de forma plena e efetiva, o fosso entre ricos e pobres é uma realidade em ascensão, assistimos a vertiginoso enfraquecimento e criminalização dos movimentos sociais. Apesar de políticas públicas importantes como a garantia de saúde e educação para todos, das políticas de cotas e das compensatórias, entre outras, todavia percebe-se um hiato grande quando estão colocadas na pauta questões para a melhoria do bem-comum e as de interesse de grandes grupos econômicos. Os interesses populares são relativizados quando os interesses de grandes grupos econômicos entram em cena.
As ameaças à democracia são constantes. Na América Latina, lembramos a deposição de presidentes democraticamente eleitos, como no Paraguai e em Honduras. Recentemente, novas tentativas de deposição de líderes eleitos pelo povo têm acontecido em países vizinhos.
Nossas Igrejas e organismos ecumênicos têm um compromisso histórico com a democracia. Por isso, reafirmamos o nosso compromisso com os movimentos sociais que permanecem firmes no ideal de uma sociedade com justiça que respeite e garanta os direitos humanos, culturais, sociais, econômicos e ambientais. A luta por estes direitos demonstra a nossa opção preferencial pelas pessoas mais vulneráveis de nossa sociedade. Por isso, nos sentimos desafiados a nos pronunciar sobre o atual momento pelo qual passa nosso país.
Os limites e esgotamento do atual modelo de democracia representativa se revelam na privatização das decisões do Congresso com a crescente subordinação do interesse público aos interesses privados das empresas e organizações do poder econômico. O afastamento dos representantes eleitos das demandas da sociedade é resultado da natureza do sistema político, cujo processo eleitoral depende dos recursos financeiros privados e do lobby do poder econômico.
Juntam-se a isso as iniciativas que pretendem formalizar a criminalização dos movimentos sociais. Preocupa-nos o fato de que representantes do poder legislativo tentem introduzir em nossa legislação, através do PLS 499/2012, o chamado “AI 5 da Democracia”, a concepção de “crimes de terrorismo”. Sabe-se que a intenção é coibir a livre manifestação popular.
É inquietante a falta de conhecimento dos processos históricos da América Latina. Grupos se organizam através das redes sociais para reivindicar o retorno a regimes autoritários e de exceção.  Isso revela a permanência de uma cultura punitiva e de violência como forma de resolução dos problemas sociais. Esta cultura, em parte, é herança dos anos de ditadura.
Outros obstáculos impedem o aprofundamento da democracia, entre eles, o não cumprimento de Convenções e Acordos internacionais firmados pelo país, como por exemplo, a Convenção 169 da OIT. Grandes empreendimentos como os da Copa do Mundo não obedecem aos critérios de diálogo e respeito às populações afetadas. Ao contrário, privilegiam o lucro de grandes empresas, atropelando o direito à existência em especial das populações tradicionais.
Diante deste contexto, como Igrejas e organizações que acreditam que a democracia significa uma sociedade que garanta direitos e oportunidade a todas as pessoas afirmamos nosso compromisso com:
Uma Reforma do sistema político, com vistas a garantir que os processos decisórios não se deem apenas pela via eleitoral, pois o exercício do poder deve estar alicerçado na soberania popular como prática cotidiana de tomada de decisões. Não aceitamos que o poder econômico defina os resultados das eleições. Repudiamos a sub-representação de vários grupos nos espaços de poder. Motivo pelo qual, nos somamos às estratégias construídas pela sociedade civil organizada, a exemplo da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas e do Plebiscito Popular pela convocação de uma Constituinte exclusiva e soberana do sistema político.
Sublinhamos a necessária separação entre Estado e Religião prevista na Constituição Brasileira, sem desconhecer como é importante a cooperação entre Estado e Religião com vistas ao bem comum. Repudiamos quaisquer instrumentalizações entre religião e política para fundamentar a discriminação e incitar a violência.
Neste tempo em que cristãos e cristãs celebram a quaresma, período de profunda reflexão sobre as consequências da ruptura com a aliança entre Deus e sua criação, estejamos atentos e vigilantes.
Reafirmamos o nosso compromisso com o aprofundamento da democracia plena. O processo eleitoral deste ano deve ser permeado por estas questões centrais que garantam a qualidade da democracia em nosso país.

CONIC, CESE, CLAI e INESC