quarta-feira, 10 de junho de 2015

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 14.06.2015)

A força do reino de  Deus desmente nossos falsos realismos.

O Tempo Comum não tem nada de comum e tem muito de comunidade. É o tempo da encarnação do Evangelho no cotidiano da vida pessoal, eclesial e social. Tempo de acolher e contemplar o mistério do Reino de Deus que vai lentamente adquirindo contornos e produzindo frutos. Tempo de cultivar pacientemente a esperança que, como o artista do circo, caminha sobre a corda bamba. Renovemos, pois, a consciência de que somos enviados para caminhar na esperança. E façamo-lo acolhendo e espalhando muitas sementes, mesmo que pareçam frágeis e insignificantes.
Isso é muito importante hoje, pois o realismo cínico nos é apresentado como a maior das virtudes e se torna uma tentação, inclusive para as pessoas que dizem acreditar num crucificado que ressuscitou. Querem nos convencer que nosso mundo sempre foi assim, e que não seremos nós os protagonistas de uma hipotética mudança. Um outro mundo não seria possível, e ponto final! A sabedoria então seria cada um cuidar da sua própria vida, não deixando escapar nenhuma oportunidade de derrotar os outros na competição pela sobrevivência, procurando sempre tirar o máximo de vantagem...
No entanto, como cristãos, fazemos parte de uma caravana que percorre os caminhos da história guiada por outras convicções: as sementes crescem por si mesmas, e as que parecem pequenas e insignificantes, como a de mostarda e de eucalipto, se tornam árvores frondosas. Partindo de sua própria experiência e escrevendo sobre a esperança da ressurreição, São Paulo diz que vivemos como se estivéssemos fora de casa, como peregrinos que buscam outra morada, outra cidade. Mas insiste que neste êxodo permanente estamos cheios de confiança.
A fé cristã se distancia tanto do delírio dos que ardem de paixão por um mundo fictício e ilusório depois da morte como do conformismo medroso daqueles que aparam as arestas do Evangelho e o acomodam a um mundo sem coração. Nossa confiança se inspira na sabedoria dos semeadores que sabem que a semente não é a colheita, mas isso não os impede de lançá-las generosamente na terra. E eles o fazem conscientes de que é falta de realismo contar apenas como as forças, confiar apenas nas nossas estratégias, esquecer a gratuidade e fechar-se às surpresas da vida.
O que acontece é que o medo e o controle costumam asfixiar e matar as sementes. “A terra produz o fruto por si mesma”, nos ensina Jesus, num dos contos populares que recolheu na zona rural da Palestina e nos oferece hoje. “A semente vai brotando e crescendo, mas o homem não sabe como isso acontece.” É possível que um processo de mudança se mostre verdadeiramente profundo quando nos leva à consciência dos próprios condicionamentos e limites, abrindo-nos a contribuições outras, iluminando-nos e fecundando-nos pela experiência da gratuidade.
Precisamos ser libertados da ilusão da grandeza e colocar no centro da nossa fé a memória da coragem dos escravos frente ao faraó, a memória da vida de Jesus de Nazaré, o mistério escondido na semente de mostarda. O Reino de Deus não brilhará apenas quando chegar o hipotético dia em que não haverá mais compradores de justiça, a liberdade não será uma ilusão, a verdade será a fonte das notícias e poderemos crer nas pessoas outra vez. O reino de Deus não é um particípio passado mas um gerúndio e um futuro: ele “vai sendo” nas milhares de ações de compaixão e de afirmação da dignidade do outro.
Alcançamos a desejada e difícil maturidade na fé quando conseguimos conjugar adequadamente paciência e urgência históricas. Os processos humanos e sociais também têm e seu ritmo de maturação. Conhecê-los sem controlá-los, e remover as forças que podem representar obstáculos ao seu desenvolvimento, é a arte das artes.  Mas eu acho que hoje o risco que nos ronda hoje é deixar passar o tempo propício da maturação e da colheita, fechar os olhos e os ouvidos a Deus, que pede com urgência que sejamos pessoas mais solidárias, Igrejas mais comunitárias e sociedade mais igualitária.
Jesus de Nazaré, semeador da Palavra que liberta e nos faz libertadores! Ajuda-nos a compreender que a fé é um dinamismo que nos abre à escuta de Deus, cria espaços de silêncio nos quais sua Palavra é acolhida e semeada. Frente às dores e esperanças que habitam o mundo, dá-nos o senso profundo da peciência e da urgência que tu mesmo exercitaste. Faz com que essa escuta abra em nós espaços de relação com os outros, fundamente a convivência de igual para igual, nos ajude a sair das nossas próprias certezas e nos comprometa numa dinâmica de comunhão e de solidariedade no interior da qual nasce, cresce e e frutifica o sonho do bem-comum da humanidade. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Ezequiel 17,22-24 * Salmo 91 (92) * 2ª Carta aos Coríntios 5,6-10 * São Marcos 4,26-34)

SOLENIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS (ANO B – 12.06.2015)

Que nosso coração seja como o de Jesus: grande e compassivo!

A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre a nos rondar. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na solenidade da Santíssima Trindade pode virar uma questão de matemática ou de metafísica. A boa notícia recordada na solenidade de Corpus Christi pode descambar para uma discussão polêmica e inoportuna. Na solenidade do Sagrado Coração de Jesus recordamos agradecidos que Deus tem um grande coração, um coração humano e compassivo. E isso não tem nada a ver com um Deus distante, abstrato e sádico.
Bem que o primeiro testamento proíbe que se faça imagens de Deus. Imaginar Deus é difícil, perigoso e pode ter consequências desastrosas. O caminho entre fazer imagens de Deus e a sua cooptação pelos poderosos e opressores de plantão, em prejuízo dos pobres, é apenas um passo. Nas últimas décadas, foram feitos esforços significativos para rever a noção de Deus nos parâmetros da cultura moderna, e ele foi denominado Absoluto, Transcendente, Divindade... Mas também estas imagens são abstratas e ambíguas, e podem ajudar a cavar ou ampliar uma espécie de abismo entre Deus e ser humano...
Nos séculos XVII-VIII nasceu e se espandiu um movimento espiritual que queria corrigir o formalismo da teologia e da espiritualidade cristãs e recolocar a experiência prática e o sentimento no centro da vida cristã. É neste contexto que nasce a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1675, Jesus teria aparecido a Santa Margarida Maria Alcoque e dito,  descobrindo seu Coração:  “Eis o coração que tanto tem amado aos homens e  em recompensa não recebe, da maior parte deles, senão ingratidões pelas irreverências e  sacrilégios, friezas e  desprezos que têm por Mim neste Sacramento de Amor”.
A perspectiva de um Deus com coração tem fundamento na Escritura, pois ela nos apresenta um Deus vivo, caracterizado pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. João nos fala de Jesus pendente da cruz, onde fora pregado depois de ter sido acusado, traído, condenado e torturado. Fazem-lhe companhia dois outros proscritos. O dia é soleníssimo, antecede a grande festa dos judeus. O que o fez chegar a este lugar e a este estado é de domínio público: ousou desafiar uma certa imagem de Deus, afirmando que ele é, antes e acima de tudo, Amor.
Sabemos que o coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma generosidade ingênua, Jesus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai premurosamente ao encontro das pessoas perdidas, reconduz as desgarradas, cuida das machucadas, fortalece as doentes, defende a dignidade de todas. No alto da colina, o corpo pendente da cruz proclama que Deus tem um coração: ele ama a justiça, estende sua misericórdia de geração em geração, se aproxima dos necessitados, com ternura de pai e mãe.
Tendo sido fariseu de estrita observância e implacável perseguidor dos seguidores de Jesus, Paulo repentinamente se descobre amado e escolhido para testemunhar Jesus como Messias de Deus e salvador da humanidade. O conhecimento e a observância da lei o havia fechado em si mesmo e feito dele um homem frio e orgulhoso. O conhecimento de Jesus Cristo o faz homem livre e frágil, próximo e servidor da humanidade. Paulo tem a impressão de que a grandeza dessa experiência não cabe nas palavras, mas faz de tudo para anunciar a eles a “riqueza insondável de Cristo”.
Por isso, Paulo sublinha que o desejo de Deus sempre foi que, pela fé e pela adesão a Jesus Cristo, todos sejam livres para se aproximar de Deus com confiança. É este o mistério que antes estava escondido e agora deve ser anunciado sem meias-palavras. Por isso, Paulo implora de joelhos que nossa humanidade amadureça e se desenvolva, enraizada e alicerçada em Jesus Cristo, para que tenhamos condições de “conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento”, de entender “a largura, o comprimento, a altura, a profundidade” desse amor gratuito e imerecido.
Jesus crucificado, terno coração de um Deus que é pai e mãe, sofrido coração de um homem incapaz de ser indiferente às dores e dramas humanos: neste dia em que tua Igreja proclama a sacralidade transcendente do amor, de todos os amores, dobramos os joelhos diante de ti e pedimos que o teu Espírito nos inunde, renove e guie nos caminhos do amor terno, despojado e serviçal. Acolhendo no teu coração sagrado o inteiro anúncio do Reino, dispo-mos a ser como és e a ir onde vais. Faz com que nosso instável coração adquira a altura, a profundidade e a largura do teu amor. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Oséias 11,1-4.8-9 * Isaías 12,2-6 * Carta aos Efésios 3,8-19 * Evangelho de São João 19,31-37)

"Eu creio na semente..:"

PEQUENAS SEMENTES

Vivemos afogados pelas más notícias. Emissoras de rádio e televisão, noticiários e reportagens descarregam sobre nós uma avalanche de notícias de ódios, guerras, fomes e violências, escândalos grandes e pequenos. Os “vendedores de sensacionalismo” não parecem encontrar outra coisa mais notável no nosso planeta.
A incrível velocidade com que se difundem as notícias deixa-nos aturdidos e desconcertados. Que pode fazer alguém ante tanto sofrimento? Cada vez estamos melhor informados do mal que assola a humanidade inteira, e cada vez nos sentimos mais impotentes para afronta-lo.
A ciência quis-nos convencer de que os problemas se podem resolver com mais poder tecnológico, e lançou-nos a todos numa gigantesca organização e racionalização da vida. Mas este poder organizado não está já em mãos das pessoas mas nas estruturas. Converteu-se em um “poder invisível” que se situa mais para lá do alcance de cada individuo.
Então, a tentação de nos inibirmos é grande. Que posso eu fazer para melhorar esta sociedade? Não são os dirigentes políticos e religiosos que têm de promover as mudanças que se necessitam para avançar para uma convivência mais digna, mais humana e ditosa?
Não é assim. Há no evangelho uma chamada dirigida a todos, e que consiste em semear pequenas sementes de uma nova hu­manidade. Jesus não fala de coisas grandes. O reino de Deus é algo muito humilde e modesto nas suas origens. Algo que pode passar tão desapercebido como a semente mais pequena, mas que está chamada a crescer e frutificar de forma insuspeitada.
Quiçá necessitemos aprender de novo a valorizar as coisas pequenas e os pequenos gestos. Não nos sentimos chama­dos a ser hérois nem mártires cada dia, mas a todos se convida a viver colocando um pouco de dignidade em cada canto do nosso pequeno mundo.
Um gesto amistoso ao que vive desconcertado, um sorriso acolhedor a quem está só, um sinal de proximidade a quem começa a desesperar, um raio de pequena alegria num coração sobrecarregado... não são coisas grandes. São pequenas sementes do reino de Deus que todos podemos semear numa sociedade complicada e triste, que esqueceu o encanto das coisas simples e boas.

José Antonio Pagola

segunda-feira, 8 de junho de 2015

As parabolas do Reino de Deus

Marcos 4,26-34:
Com que coisa podemos comparar o Reino de Deus?
O texto de hoje traz à tona dois elementos muito importantes para o estudo dos Evangelhos: “o Reino de Deus” e “as parábolas”. Antes de olhar o texto mais de perto, convêm comentar algo sobre esses dois termos ou conceitos.
Existe um consenso entre os estudiosos modernos, sejam católicos ou protestantes, que existem duas palavras nos textos evangélicos que provém do próprio Jesus e que não dependem da reflexão posterior das comunidades: “Reino” e “Pai”, “Abbá” em aramaico.
Estamos tão acostumados de ter Jesus como “objeto” da nossa pregação que esquecemos que Ele não pregou a si mesmo, mas o “Reino de Deus” (geralmente citado em Mateus como o Reino dos Céus, para evitar o uso do nome de Deus, em uma comunidade predominantemente judeu-cristã).
A vida inteira de Jesus foi dedicada ao serviço desse Reino, que Ele nunca define, pois é uma realidade dinâmica, mas que Ele descreve por comparações, usando parábolas.
“Parábola” é um tipo de comparação, usando símbolos e imagens conhecidos na vida dos ouvintes, e que os leva a tirar as suas próprias conclusões (de fato, várias vezes temos a explicação de uma parábola nos evangelhos, mas essa nasceu da catequese da comunidade e não teria feito parte da parábola original). O Capítulo 13 de Mateus talvez seja o melhor exemplo do uso de parábolas para clarificar a natureza do Reino - ou Reinado - de Deus.
No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, os diversos grupos religiosos judaicos (com a exceção dos ultraconservadores e elitistas Saduceus), esperavam a chegada do Reino de Deus e achavam que poderiam apressar a sua chegada: os Fariseus, através da observância da Lei; os Essênios, através da pureza ritual; os Zelotas através de uma revolta armada.
O texto de hoje nos adverte que não é nem possível e nem necessário tentar apressar a chegada ou o crescimento do Reino de Deus, pois ele possui uma dinâmica interna própria de crescimento. Como a semente semeada cresce independente do semeador e sem que ele saiba como, assim o Reino cresce onde plantado, pois também tem a sua própria força interna que, passo por passo, vai levá-lo à maturidade.
Assim, o texto nos ensina o que Paulo ensina de uma maneira diferente aos coríntios, quando, referindo-se ao trabalho de evangelização desenvolvido por ele, Apolo e outros/as missionários/as; ele afirma “Paulo planta, Apolo rega, mas é Deus que faz crescer” (1 Cor 3, 6).
Uma das imagens que Jesus usa para caracterizar o Reino é a do grão de mostarda. Embora a semente seja minúscula, ela cresce até se tornar um arbusto frondoso. Assim Jesus quer que relembremos que é importante começar com ações pequenas e singelas, pois, pela ação do Espírito Santo, elas poderão dar frutos grandes.
Esta parábola é um lembrete para que não caiamos na tentação de olhar as coisas com os olhos da sociedade dominante, que valoriza muito a prepotência, o poder, a aparência externa. A nossa vocação é plantar e regar, nunca perdendo uma oportunidade de semear o Reinado de Deus: ou seja, criar situações onde realmente reine o projeto do Pai, projeto de solidariedade e amor, partilha e justiça, começando com sementes minúsculas, para que, não através do nosso esforço, mas da graça de Deus, eventualmente cresça uma árvore frondosa que abrigará muitos.
O desafio do texto é de que valorizemos o gesto pequeno, as duas moedas da viúva, a semente de mostarda, não nos preocupando com os resultados, mas, confiantes no poder transformador da semente, plantar e regar, para que Deus possa ter a colheita!
Tomaz Hughes

domingo, 7 de junho de 2015

Demarcação de terras indígenas

Documento final do Encontro sobre demarcação de terras indígenas

Nós, representantes dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Mayoruna, Apurina, Paumari, Nawa, Mura, Maraguá, Tariana, Baré, Macuxi, reunidos no Centro de Formação Xare, nos dias 30 e 31 de maio de 2015, no Encontro sobre a demarcação das terras indígenas, socializamos as lutas e desafios enfrentadas pelas comunidades indígenas das regiões do Alto Solimões, Médio Solimões, Beruri, Lábrea, Nova Olinda do Norte, Autazes e Barcelos no Amazonas e rio Moa, no município de Mâncio Lima no Acre. Foi socializada também a experiência de luta para a conquista de demarcação da Terra Indígena raposa Serra do Sol, localizada em Roraima, por duas lideranças Macuxi e feita uma análise mais ampla da política indigenista e da realidade amazônica.
Denunciamos a omissão do governo federal na demarcação das terras indígenas como determina a Constituição Federal OIT. Numerosas comunidades indígenas, na região, anos a fio, vem reivindicando a demarcação de suas terras sem nenhuma resposta por parte da Funai. Só no estado do Amazonas, existem mais de 80 terras indígenas sendo reivindicadas, que sequer tiveram iniciado o procedimento de demarcação. Esta omissão por parte do governo federal coloca nossas comunidades numa situação de extrema insegurança e vulnerabilidade, expostas a violência dos invasores de todo tipo: madeireiros, garimpeiros, peixeiros e caçadores e outros que afrontam as nossas lideranças e desrespeitam nossas formas de vida e os nossos direitos. A não demarcação das terras tem sido usada inclusive como desculpa pela Sesai para negar a atenção a saúde das nossas comunidades. Ela deve ser responsabilizada judicialmente por esta renúncia aberta de suas atribuições legais. Essa atitude de discriminação para com nossas comunidades revela um profundo desprezo pela vida dos cidadãos indígenas.
Exigimos respeito aos nossos direitos. Queremos  que de forma imediata os procedimentos de demarcação das nossas terras sejam retomados, com a criação dos Grupos de Trabalho (GTs) da Funai para a identificação dos limites e a prática dos demais atos oficiais necessários para garantia de nossas terras.
Reafirmamos a disposição das comunidades de lutar até que todas as terras indígenas na região tenham sido demarcadas, articulando-nos entre nós, com nossas organizações e com movimento indígena de forma mais ampla e com outros setores da sociedade e a determinação de fazer o que for preciso para que este nosso direito, fundamental para o futuro de nossos povos, seja assegurado.

Manaus, 31 de maio de 2015.

Povos da Amazônia

Carta Aberta dos Povos da Amazônia ao Povo Brasileiro
Nós, representantes dos Povos indigenas Kokama, Apurinã, Miranha, Kaixana, Kambeba, Witoto, Maraguá, Baré, Sateré, Tikuna, Tariano, Baniwa, Tukano, Dessano, Karapana, Piratapuia, Munduruku, Mura, Nawa, Bará e Paumari; Representantes das Organizações Indigenas: Kambeba, do Alto Solimões; OKAS, União dos Povos Indigenas do Médio Solimões e Afluentes; UNIPI-MAS; Organização Kambeba Paulivense Omágua do Amazonas; Okopam, União dos Povos Indigenas do Coari Amazonas UICAM;  Conselho Indígena de Roraima, CIR; Coordenação dos Povos Indigenas de Manaus e Entorno, COPIME;  Coordenação das Organizações Indigenas Kaixana do Alto Solimões, COIKAS; Coordenação dos Povos Indigenas do Amazonas, COIPAM; Organização Indígena Kokama do Amazonas, OIKAM;  Associação dos Moradores Indigenas Kokama da Cidade de Tabatinga, AMIKCT;  Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus FOCIMP; Ribeirinhos do Alto Rio Madeira atingidos pelas barragens de Jirau e Santo Antonio em Rondônia; Pastorais e Organizações da Sociedade Civil: Pastoral Indigenista – PIAMA; Conselho Indigenista Missionário - CIMI,  Equipe Itinerante;  Cáritas; Articulação pela Convivência com a Amazônia - ARCA, Fórum da Amazônia Oriental - FAOR,  Serviço e Cooperação com o povo Yanomami - Secoya, Comissão Pastoral da Terra – CPT e Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, Casa da Cultura do Urubuí; Participantes  do Encontro de Articulação dos Povos e Comunidades Indigenas em Luta pela Terra e da Semana dos Povos da Amazônia, nos dia 30 e 31 de maio e de 01 a 04 de junho de 2015, em Manaus -AM,
Vimos a público denunciar:
a) A eminente ameaça de despejo pela qual passam as 300 famílias da Comunidade das Nações Indígenas, localizada no bairro do Tarumã, em Manaus - AM;
b) A situação de abandono e inadequação dos programas de saúde e educação, a qual estão submetidos os Povos da Amazônia;
c) A ameaça de remoção forçada que se impõe ao Povo Indígena Munduruku, da TI Sawré Moybu, no médio Tapajós, devido a intenção do Governo Federal de construir a UHE de São Luiz do Tapajós, em sua terra.
d) A tentativa da bancada ruralista no congresso nacional em aprovar a PEC 215 e outros projetos legislativos, que atentam contra os direitos dos povos indigenas e comunidades tradicionais;
e) A mineração em terras indígenas;
f) A exploração ilegal dos recursos naturais em terras indigenas, o que tem provocado a expulsão de famílias de seus territórios;
g) A paralisação dos processos de demarcação de TI em todo o Território Nacional;
h) A discriminação religiosa sofrida pelos indigenas e povos de terreiros;
Dito isso, exigimos:
a) A imediata paralisação da ação de reintegração de posse da Comunidade Nações Indigenas, em Manaus, assim como a desapropriação das áreas ocupadas por populações indígenas, quilombolas  e ribeirinhas, na cidade de Manaus,  para o assentamento dos moradores e o início urgente de serviços públicos, de forma a garantir os seus direitos constitucionais;
b) Políticas púbicas efetivas, específicas e diferenciadas nas áreas de saúde e educação para atender os povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia;
c) Políticas públicas de moradia, saúde e educação, adequadas a realidade dos moradores das cidades amazônicas.
d) Demarcação imediata das terras de direito dos povos indígenas e das comunidades tradicionais;
e) Suspensão dos projetos de infraestrutura, energia, hidrovias, portos, ferrovias, rodovias, monocultivos e do agronegócio na Amazônia Brasileira;
f) Arquivamento imediato da PEC 215 e a garantia dos direitos históricos e constitucionais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais;
Declaramos  ainda  que:
a) Não aceitaremos nenhuma medida que ameace os direitos constitucionais dos povos indigenas e comunidades tradicionais;
b) A PEC 215 representa uma sentença de morte aos povos indígenas e comunidades tradicionais;
c) Apoiamos incondicionalmente a ação de autodemarcação da TI Sawré Moybu do Povo Munduruku;
d) Somos solidários com os povos do Xingu atingidos pela construção da UHE de Belo Monte.
e) Nenhuma Organização pode negociar em nome dos povos indigenas com empresas, governos e outras organizações, sem antes ouvir o que esses povos e suas comunidades têm a dizer, e sempre levando em consideração suas opiniões.
Nenhum Direito a menos! Não a PEC 215! Demarcações já! Rios da Amazônia, livres de mineradoras e hidrelétricas!

Manaus - Amazonas, 03 de junho de 2015

quinta-feira, 4 de junho de 2015

DÉCIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 07.06.2015)

Pertence à família de Jesus quem faz a vontade de Deus!

Depois de quase três meses marcados por liturgias muito especiais, dinamizadas pelo espírito da quaresma e da páscoa, voltamos ao tempo comum, ao belo e exigente desafio da vida cotidiana. Abramos a mente e o coração ao ensinamento de Jesus, mesmo que inicialmente nos choque e escandalize. Jesus não tem prazer em colocar pedras na estrada do nosso amadurecimento na fé... Na verdade, ele quer nos ajudar a perceber as lutas que este percurso exige e as amarras que precisamos desfazer, inclusive aquelas inconscientes ou que assumem a aparência de piedade.
O atual e inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo, acompanhadas de um indisfarçável desejo de amedrontar e dominar, podem nos induzir a pensar que o núcleo do evangelho deste domingo seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na narração de Marcos é a radicalização e a explicitação do conflito entre a prática libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites religiosas, agarradas à defesa do seu poder de domínio. Precisamos distinguir entre a realidade e a linguagem: a linguagem é apocalíptica, mas a realidade é um conflito político e social.
Jesus havia desmascarado a escravidão mantida pela ideologia do templo curando um paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e expulsando o expírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam... Os escribas contra-atacam para neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando Jesus com o o diabo, protótipo dos inimigos do ser humano. Pretendendo ser os únicos representantes de Deus, os escribas e doutores da lei dizem que aquele que os desmascara é guiado e motivado por um espírito diabólico...
Jesus entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como a acentuação simbólica das práticas opressoras da sociedade judaica. Ele se defende atacando com as armas dos próprios adversários! Entra no jogo linguístico dos seus opositores para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão atolados. Ironicamente, diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino de satanás estaria dividido e fadado à ruína. Jesus e os pobres libertados interpretam sua ação como obra libertadora e regeneradora de Deus.
Mas o clímax da disputa está na afirmação indireta de que os verdadeiros pecadores, aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios escribas e doutores da lei, a elite que desqualifica a ação divinamente libertadora de Jesus dizendo que é diabólica. Esse grupo é réu de um pecado eterno, está coberto de impureza e envolvido numa cegueira que não permite que veja um palmo à frente do nariz. Os membros dessa elite pecam contra o Espírito Santo, iludem a si mesmo e aos outros dizendo que é mau e escravizador aquilo que na realidade é bom e libertador.
É no quadro deste conflito que podemos compreender a tensão de Jesus com seus familiares. Eles haviam tomado conhecimento daquilo que Jesus fazia e dizia, sentem-se importunados pela multidão que invade sua casa, e começam a temer pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida impressão de que Jesus enloqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo. Parece que a mãe e os irmãos evitam ultrapassar o círculo dos discípulos e chegar perto de Jesus. Dão até a impressão compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer Jesus interromper ou desistir da sua missão.
A família patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de sangue, era um dos eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação, uma célula de reprodução de uma sociedade excludente e intolerante. Jesus dá mais um passo na superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo, mas não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos de relacionamento. Ele coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal; substitui a estreiteza dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana compartilhada. Do ponto de vista do Evangelho, Deus e o seu Reino são absolutos, e todas as instituições e autoridades são transitórias.
A ti, Jesus de Nazaré, irmão de todos os homens e mulheres que se regeneram à luz do Reino, dirigimos nosso olhar e nossa prece. Fortalece nossa vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com os laços que nos amarram a nós mesmos e aos sistemas que oprimem. Amplia o círculo da nossa comunhão, para que inclua todos os seres humanos, começando pelas vítimas da seca de nordeste e chegando aos povos ribeirinhos atingidos pela cheia do rio Amazonas. E faz com que nossas comunidades sejam uma família de homens e mulheres iguais. Assin seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 3,9-15 * Salmo 129 (130) * 2ª Carta aos Coríntios 4,13-5,1 * São Marcos 3,20-35)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Repensar a Ceia de Jesus

A ceia do Senhor

Os estudos sociológicos destacam-no com dados contundentes: os cristãos das nossas igrejas ocidentais estão abandonando a missa dominical. A celebração, tal como ficou configurada ao longo dos séculos, já não é capaz de alimentar a Sua fé nem de vincular à comunidade de Jesus.
O surpreendente é que estamos deixando que a missa «se perca» sem que este fato provoque reação alguma entre nós. Não é a eucaristia o centro da vida cristã? Como podemos permanecer passivos, sem capacidade de tomar qualquer iniciativa? Porque a hierarquia permanece tão calada e imóvel? Porque os crentes não manifestam a preocupação com mais força e dor?
A indiferença pela missa está crescendo inclusive entre quem participa nela de forma responsável e incondicional. É a fidelidade exemplar destas minorias a que sustenta as comunidades, mas poderá a missa continuar viva só à base de medidas protetoras, que asseguram o cumprimento do rito atual?
As perguntas são inevitáveis: A Igreja não está precisando colocar no seu centro uma experiência mais viva e enraizada da ceia do Senhor, mais significativa daquela que possibilita e oferece a liturgia atual? Estamos tão seguros de estar fazendo hoje bem aquilo que Jesus quis que fizéssemos em Sua memória?
A liturgia que estamos repetindo de modo quase invariável há vários séculos é a que melhor pode ajudar os crentes a viverem hoje o que Jesus viveu naquela ceia memorável onde se concentra, se recapitula e se manifesta como e para que viveu e morreu Jesus? É esta a liturgia que mais nos pode atrair a viver como Seus discípulos ao serviço do Seu projeto do reino do Pai?
Hoje tudo parece opor-se à reforma da missa. No entanto, essa reforma será cada vez mais necessária se a Igreja quer viver do contato vital com Jesus Cristo. O caminho será longo. A transformação será possível quando a Igreja sentir com mais força a necessidade de recordar Jesus e viver do Seu Espírito. Por isso, também agora a postura mais responsável não é abandonar a missa, mas contribuir para a conversão a Jesus Cristo.

José Antônio Pagola

Jesus ea sua familia

Marcos 3,20-35: Voz de Deus e vozes demoníacas
Distinguir a voz de Deus das vozes diabólicas nem sempre é tão simples! Muitas violências e injustiças já foram cometidas “em nome de Deus”, desde os “tempos de Adão e Eva”... E, ao que tudo indica, esse “filme” está longe do seu fim! E certamente esse não é um problema apenas de facções radicais do Islamismo...
Confundir as vozes demoníacas ou diabólicas com a voz de Deus pode acontecer com inocentes ou ingênuos. Talvez esse tenha sido o caso daquele homem “possuído por um espírito impuro” que viu em Jesus uma ameaça aos sagrados costumes do povo dominado pelas autoridades da sinagoga (Mc 1,21-28). Pode ter sido o caso também dos familiares de Jesus que aparecem no Evangelho deste domingo.
Mas pessoas que pretendem ser as mais religiosas e santas não estão imunes a essa teologia ao avesso, que vê como divino aquilo que é diabólico e como demoníaco aquilo que é divino. Pode ocorrer com pessoas que se agarram à bíblia, pessoas muito piedosas, ou gente que não aceita as crenças dos outros. Tais pessoas acham que o diabo está agindo sempre nos outros, isto é, naqueles que pensam de maneira diferente ou que questionam as incoerências da sociedade, de sua Igreja ou religião.
Foi isso que também aconteceu com Jesus. No Evangelho de hoje, aparecem dois grupos de pessoas que, em nome de Deus, têm dificuldades para aceitar os comportamentos e as ideias de Jesus. Em primeiro lugar, entram em cena os parentes de Jesus. Eles vão ao seu encontro para segurá-lo, para impedir que ele continue sua missão, porque pensam que Jesus tinha ficado louco. Em outras palavras, eles não dizem, mas pensam que um demônio tomou conta de Jesus. Por isso, era preciso agir: levar Jesus para casa e dar-lhe umas boas lições... tentar convencê-lo de que estava, no mínimo, equivocado ou que estava se excedendo e prejudicando, com isso, também todos os seus parentes...
Outro grupo, com ótima formação bíblica e teológica (mestres da Lei ou escribas), vai mais longe e diz que “Ele está possuído por Belzebu”, e que “é pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios”. Eles justificam, assim, a sua perseguição contra Jesus. Aí já não se trata mais de ingenuidade ou inocência. E o julgamento é explícito: Jesus seria uma peça na estratégia do chefe dos demônios (Belzebu), talvez uma vítima inocente dele... Eles acusam Jesus de se fazer de “santo”. Por isso, o povo ingênuo estaria correndo atrás dele. Mas, segundo os mestres da Lei o acusam de estar sutilmente a serviço do poder do mal, destruindo as coisas sagradas de Deus... Na verdade, Jesus seria um charlatão, um enganador do povo.
Jesus desmascara essa inversão que acha que é diabólico aquilo que vem de Deus. Ele mostra que esses seus adversários estão pecando contra o Espírito Santo, justamente porque invertem o que é de Deus e o que é diabólico. A avaliação de Jesus é muito grave, porque esse pecado contra o Espírito Santo impede as pessoas de ouvirem o que Deus tem a dizer, porque elas estão vendo tudo com os olhos de seus próprios interesses. Como podem tais pessoas estar em comunhão com Deus? Aqueles que pretendem ter o direito de condenar Jesus em nome de Deus revelam que eles mesmos é que estão dominados pelo poder da ideologia, numa cultura e religião que transformaram em ídolo seus interesses excludentes e discriminadores.
Os conflitos de Jesus iniciam muito cedo. Estamos ainda no capítulo 3 do Evangelho de Marcos. Aliás, já no início desse capítulo, fariseus e herodianos haviam decretado seu fim, por verem nele um perigo que tinha de ser cortado pela raiz.
O Evangelho deste domingo termina com um anúncio esperançoso: há novos irmãos, irmãs e mães de Jesus que não o consideram louco. São aqueles que aprendem com Jesus um novo jeito de entender e fazer a vontade de Deus. A vontade de Deus vai muito além do cumprimento de alguns ritos e leis, como pretendiam os “piedosos” adversários de Jesus; ela tem seu foco na vida e na libertação das escravidões e dominações sofridas pelos filhos e filhas de Deus. É por isso que Jesus expulsa tantos demônios no Evangelho de Marcos. E quem vive fazendo assim a vontade de Deus, diz Jesus, “esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. Que Deus nos conceda estarmos sempre entre esses novos familiares de Jesus!
Léo Zeno Konzen

terça-feira, 2 de junho de 2015

SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO (ANO B – 04.06.2015)

O Corpo de Cristo nos chama à liberdade e à fraternidade.

Quem é cristão e católico não tem dúvidas: a Eucaristia faz a Igreja e ocupa um lugar central na sua espiritualidade. Mas nunca é demais lembrar também que quem faz a Eucaristia é a Comunidade eclesial: foi ela que, partindo do evento Jesus Cristo, definiu seu sentido teológico, estabeleceu regras e barreiras e colocou-a sob o controle dos ministros ordenados. Ao celebrarmos a festa popular do Corpus Christi não podemos esquecer que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, remete a Jesus Cristo, mediador da Aliança, horizonte da nossa vocação à liberdade e ao serviço.
Depois de séculos de um perigoso processo de distanciamento do Reino de Deus e de uma intensa teologização, é difícil libertar a Eucaristia da noção de sacrifício da qual se tornou refém. A noção de Aliança, anterior e mais fundamental que a de Sacrifício, foi diminuída e quase eliminada. E acabamos esquecendo que, mesmo na tradição judaica, o sangue dos animais sacrificados aspergido sobre o povo era memória da Aliança entre Javé e seu povo. O centro do rito não era o sacrifício de animais mas a Aliança entre Deus e o seu povo escolhido. E Jesus é mediador de uma aliança nova e superior...
Damos por descontado que a última ceia de Jesus, base narrativa e simbólica sobre a qual se construirá a Eucaristia, foi uma celebração pascal no horizonte da tradição judaica, memória do êxodo e da Aliança que constituiu um povo. Mas um olhar atento aos relatos de Marcos nos revelará que Jesus e seus discípulos não celebraram a páscoa conforme as prescrições do judaísmo: não se fala do cordeiro pascal, nem se diz que ele fora sacrificado no templo. E ao invés de descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve o clima de tristeza e apreensão frente às traições que se insinuavam.
É verdade que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de tomar o alimento e a bebida, proferir a oração de bênção e de agradecimento e servi-los aos comensais. Mas ele introduz duas novidades que divergem das prescrições rituais: não serve o cordeiro e não relaciona o pão e o vinho com o evento do êxodo, mas com a sua história pessoal, com os passos que estava para dar. Repartindo o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e, passando o cálice de vinho, anuncia “este é o meu sangue da nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus vincula a ceia consigo mesmo e com uma Aliança nova.
Ademais, Marcos insinua que este cordeiro é o próprio Jesus, e nos apresenta três elementos simbólicos que são mais que simples detalhes. O primeiro: a comunidade dos discípulos se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos (uma comunidade ameaçada). O segundo: a senha que Jesus dá para que os discípulos encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa: um homem carregando uma bilha de água (tarefa própria das mulheres!). O terceiro, mais importante e fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de Jesus com os discípulos não termina em festa, mas em jejum!  Jesus diz que não beberá mais vinho até que chegue o vinho novo do reino de Deus.
Aqui aparece o vínculo essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia presente e o advento do Reino de Deus. A Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do futuro, do Reino. A libertação celebrada na Eucaristia não é memória de um passado glorioso, mas tarefa empenhativa que engendra o futuro, Aliança nova e irreversível mediante a qual Deus avalisa nossos anelos de liberdade e de vida plena. Jesus liberta a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o que foi e nos engaja na construção daquilo que virá, mesmo que isso exija renúncia às atrações dos velhos vinhos.
A festa do Corpo de Deus lembra e afirma que Jesus se entrega a nós como comida e bebida e nos convoca às ruas para proclamar que a liberdade está na frente e no futuro, e não atrás, num passado idealizado. Ele pede que levemos a sério que a Ceia não é mera memória, mas também antecipação simbólica do Reino de Deus, que construiremos com criatividade e ousadia. Por mais nobre que seja o ostensório e por mais belos que sejam os desenhos e ornamentos que enfeitam as ruas, a Eucaristia não está aí para ser adorada e incensada, mas para ser tomada como comida e bebida.
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e Espírito feito carne, pão partilhado e vinho da amizade: transforma nossa vida em Eucaristia e dá-nos uma insaciável fome de comunhão. Dá-nos um coração grande para amar e forte para lutar, tanto no acolhedor ambiente dos nossos templos como no espaço aberto das ruas e avenidas. E não permitas que reduzamos tua ceia a uma simples memória e tranformemos o pão em amuleto. Ensina-nos a celebrar a ceia com os pés prontos caminhar e os olhos fixos no Reino que sempre está vindo. Assem seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Êxodo 24,3-8 * Salmo 115 (116) * Carta aos Hebreus 9,11-15 * Evangelho de Marcos 14,12-16.22-26)