quinta-feira, 24 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (4)

Como os operários da última hora (Mt 20,1-16):
Deixemo-nos fascinar pela gratuidade de Deus

Imaginemos a cena dos discípulos que, depois de estudar a parábola dos diaristas  contratados para trabalhar na vinha (Mt 20,1-16), agora sozinhos com o mestre, pedem que lhes explique o sentido. Talvez algum deles ousasse lembrar que, noutra versão conhecida por muita gente, quando os primeiros trabalhadores protestaram ao ver aquilo que os últimos haviam recebido, o patrão respondera: “Em apenas uma hora, aqueles últimos contratados produziram mais que vocês durante um dia inteiro...” Este sim seria um final sensato e justo, pois evidenciaria o mérito e a premiação pelo trabalho, enquanto que na insólita versão de Jesus isso sequer merece uma consideração do patrão (imagem velada de Deus Pai), que prefere concluir com uma pergunta: “Por acaso não posso fazer o que eu quero com aquilo que me pertence? Ou você está com ciúmes porque eu estou sendo generoso?” (Mt 20,15).
Podemos também imaginar a seguinte resposta de Jesus: “E se vocês fizessem parte do grupo de trabalhadores da última hora e recebessem o mesmo que os outros que labutaram o dia inteiro? Será que no dia seguinte vocês não chegariam mais cedo que os outros? E não tanto para acumular méritos, mas por pura gratidão, simplesmente porque a bondade do patrão conquistara e envolvera vocês naquela aspiral de gratuidade...” Um tal comentário de Jesus evidenciaria a mesquinhez de tantos, começando por nós mesmos, que murmuram interiormente: “Se eu fosse um daqueles que ganharam  uma moeda de prata tendo trabalhado o dia inteiro, considerando a generosidade do patrão, no dia seguinte eu também apareceria às cinco da tarde...”
Como a eles, também a nós a Palavra empurra para além dos limites que estabelecemos, e nos supera com a sua novidade. Quando lemos e meditamos o Evangelho, o maravilhoso toca a nossa existência, como um cometa que ilumina com sua órbita de luz um outro planeta escuro. E então aquilo que nos parecia razoável acaba sendo desafiado por propostas mais verdadeiras que, como numa epifania, rompem o nosso horizonte limitado e deixam entrever possibilidades inéditas e apaixonantes.
Sabemos que muitas vezes Jesus se expressa com um lúcido realismo e até com um certo pessimismo, como na passagem seguinte: “Mas Jesus não confiava neles, pois conhecia a todos. Ele não precisava de informações a respeito de ninguém, porque conhecia o homem por dentro” (Jo 2,24-25). Mas, ao mesmo tempo e de uma forma aparentemente inexplicável, Jesus é movido por uma ilimitada confiança na capacidade de reação e de mudança da pessoa humana. É como se ele não houvesse perdido e ingenuidade infantil e quisesse despertar em nós atitudes utópicas. Suas propostas contêm um grande potencial transformador, e quem as escuta e acolhe, renasce em Deus recebe o poder de se tornar discípulo. Nas suas propostas palpita um dinamismo que pouco a pouco transfigura nossas idéias sobre Deus e as faz semelhantes às dele.
Se a Palavra anunciada por Jesus nesta parábola completou seu trabalho, podemos imaginar que aqueles diaristas que haviam trabalhado apenas uma hora e recebido uma recompensa desproporcional começaram a conhecer o coração do patrão. E que tal se agora déssemos a eles a Palavra e escutássemos o que eles querem nos dizer?
Deixem-se seduzir e fascinar por este Deus privado de atributos divinos (imutabilidade, impassibilidade, inacessibilidade, onisciência, onipotência, etc.) e dominado por emoções autenticamente humanas: a inquietação de uma pessoa zelosa, cuidadosa com aquilo que lhe pertence (uma moeda, uma ovelha), incapaz de aceitar a mínima redução das suas posses, uma pessoa que vincula sua alegria ao reencontro daquilo que perdeu...” (cf. Lc 15,1-10).
“Não se surpreendam ao descobri-lo semelhante a um pai agitado e comovido, que deixa de lado as responsabilidades da casa e fica do lado de fora, procurando e esperando, como alguém que perdeu o centro da vida e, por isso, se sente transtornado...” (cf. Lc 15,11-32).
“Observem que ele é como um rei sem poder nem autoridade, incapaz de convencer seus próprios emissários, exposto à desilusão e ao fracasso diante da recusa ao convite para o seu banquete, mas surpreendentemente feliz em acolher à sua mesa aqueles que vagam pelas estradas...” (cf. Mt 22,1-14; Lc 14,15-24).
“Surpreendam-se ao saber que ele é também semelhante a um investidor ousado e temerário que corre o risco de dividir seu capital e confiar sua administração a pessoas que não lhe oferecem garantias de uma boa gestão... (cf. Lc 16,1-8; Mt 25,14-30). Ou como um fraco agricultor, demasiadamente paciente e instável nas decisões, que não aceita a sugestão de arrancar o joio do meio do trigo (cf. Mt 13,24-30) e se deixa convencer pelo vinhateiro a não cortar a figueira que não está dando fruto...” (cf. Lc 13,1-9).
“Abram-se às consequências de crer em um Deus que é um observador parcial, que vê aquilo que a maioria não vê: as pessoas feridas e abandonadas nas margens das estradas (cf. Lc 10,30), a porta da casa onde ninguém enxerga Lázaro (cf. Lc 16,20), os lugares onde os mais fracos são maltratados...” (cf. Mt 24,49).
Como os discípulos de Jesus, lentos e resistentes em aceitar um Deus assim insólito, provavelmente os diaristas que fizeram a experiência da novidade absoluta de Deus terão necessidade de muito tempo e de uma paciente catequese para eliminar as velhas idéias sobre Deus que povoavam seu imaginário e aceitar que ele não se identifica com as idéias e doutrinas que elaboraram sobre ele. Mas se nós permitirmos que a Palavra de Deus inicie e prossiga seu trabalho em nós, ela acabará por nos revelar também quem somos nós aos olhos desse Deus maravilhoso. Demos de novo a Palavra àqueles gratos trabalhadores da última hora...
“Não contabilizem méritos e créditos sobre o vosso empenho no trabalho. Deixem que Deus surpeenda vocês com seu amor desmedido e os encha de um amor que ultrapassa todos os méritos...”
Vocês são uma terra rica de sementes destinadas a dar frutos (cf. Mc 4,3-9). Existem em vocês gérmens de vida que o olhar do Pai sabe reconhecer (cf. Mc 13,28-29). Aquilo que ele semeou em vocês possui tal força de crescimento que germina e cresce fora do controle de vocês (cf. Mc 4,26-29). Não se preocupem com o joio misturado ao trigo, pois o Pai se importa apenas com aquilo que em vocês há de bom...”
“É verdade que vocês são pequenos e insignificantes, mas esta pequenez esconde uma força capaz de transformar-se numa grande árvore (cf. Mc 4,30-32). Talvez vocês cheguem à sala do banquete cobertos de trapos e de pó, mas serão comensais convidados e queridos do rei, que vos espera com a mesa preparada...” (cf. Mt 22,1-14).

 “Alegrem-se de possuir dons e talentos para investir (cf. Mt 25,14-30) e façam amigos que acolherão vocês nas moradas eternas, porque vocês têm nas mãos aquilo em que vocês apostaram tudo: pão, água, teto e vestes para partilhar com aqueles que são privados de tudo (cf. Mt 25,31-46). Vocês se perdem, se afastam, dormem, endurecem o coração, mas alguém acredita na capacidade que vocês têm de se deixar encontrar e voltar para casa, de vigiar e de ser misericordiosos, de transformar os débitos em amor. E se ele ama e deseja vocês, procura e espera tanto, é porque para ele vocês são preciosos...”
Itacir Brassiani msf


(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (3)

Como o semeador tranquilo (cf. Mc 4,26-29):
Esperemos confiantes que a Palavra faça seu próprio trabalho
Em Mc 4,1-9 Jesus conta a parábola do semeador e, em Mc 4,10-25, a pedido dos discípulos, a explica. “Aqueles que receberam a semente em terreno bom são os que ouvem a Palavra, a recebem e dão fruto...” (Mc 4,20). Em seguida, Jesus insiste que quem tem ouvidos deve ouvir e entender, prestando atenção àquilo que ouve.
Em seguida, Jesus apresenta uma nova parábola: “Assim é o Reino de Deus: como se um homem tivesse lançado a semente na terra, dormisse e acordasse, noite e dia, e a semente germinasse e crescesse, sem que ele soubesse como. A terra dá fruto por si mesma: primeiro o caule, depois a espiga, e por fim a espiga cheia de grãos. E quando o fruto está no ponto, logo se passa a foice, porque a colheita chegou” (Mc 4,26-29). Jesus sublinha que “a terra produz fruto por si mesma”, e ao homem cabe semear, discernir o tempo oportuno e colher. Poderíamos dar a esta parábola e título de “O semador tranquilo”.
Parece que Jesus está querendo nos dizer o seguinte: “Olhem este homem. Ele age e decide intervir no momento oportuno, quando deve fazê-lo: espalha a semente na terra e corta com a foice quando chega o momento da colheita. Mas sabe muito bem que há um tempo no qual ele não pode fazer nada, pois compete à terra ‘produzir fruto por si mesma’: folhas, espigas e grãos. E tudo isso acontece enquanto ele ‘dorme e acorda noite e dia’, sem saber ‘como isso aconteceu’. Ele permanece tranquilo, sem tentar apressar o tempo e mudar o ritmo, que escapam ao seu controle.”
É difícil conseguir este equilíbrio numa cultura que sublinha a eficiência e numa pastoral que busca resultados imediatos e controláveis (para apresentar ao bispo, ao Superior). Desejamos medir e controlar tudo, e corremos a tentação de ser pessoas demasiadamente sérias, disciplinadas e responsáveis no trabalho, mas pessoas que não conseguem encontrar o justo equilíbrio entre trabalho e descanso, esforço e repouso. A maioria de nós foi formada numa mentalidade que supervaloriza o trabalho e o engajamento pastoral, acompanhado de uma espécie de “ansiedade apostólica” que nos leva a confundir zelo com contabilidade, eficiência e sucesso a curto prazo.
Penso que ainda não conseguimos aprender a discernir quando precisamos ser ativos e diligentes na construção do Reino e quando precisamos ser passivos e pacientes; quando devemos contribuir e quando devemos desaparecer do campo; quando a situação nos pede vigilância ou intervenção e quando a única coisa que devemos fazer é ir dormir; quando precisamos identificar e enalisar as causas e quando é necessário reconhecer que não sabemos tudo e que existem muitos “porquês” e muitos “comos” que fogem à nossa compreensão. O discípulo que passa neste exame é aquele que, depois de ter feito bem o que era de sua responsabilidade ou estava ao seu alcance, permanece tranquilo, pois está convicto de que o processo que Deus iniciou levará a semente a crescer durante a noite, enquanto ele dorme.
Também quando se trata de viver à escuta da Palavra e agir “por causa da Palavra” – somos ouvintes e servidores da Boa Notícia! – precisamos da disposição e da atitude do semeador tranquilo. Os orientais ensinam que não é preciso empurrar o rio, pois ele corre por si mesmo. E a nossa alma caipira convida a andar devagar porque o tempo da pressa é passado. Não podemos pretender controlar o dinamismo da Palavra. Ela sabe fazer seu próprio trabalho, tem forças para isso, e o levará a cabo se não a atrapalharmos, como diz o profeta Isaías (55,10-11). Não podemos confundir as responsabilidades: a nossa tarefa é criar espaço à Palavra, lê-la atentamente, meditá-la, acolhê-la com coração pobre e aberto, sussurá-la, enraizar-se nela; a tarefa da Palavra é alimentar, interpelar, guiar, iluminar, transformar, produzir frutos.
Deixar-se convocar pela Palavra é algo que pede de nós uma receptividade fundamental, a mesma que dá a um cristal, espelho ou à própria água tranquila a possibilidade de refletir a luz do sol ou da lua: não fazem nada para que a luz se reflita neles; simplesmente estão aí, tranquilos, como a terra que não faz nada para que a semente germine nas suas vísceras... O que precisamos fazer é frequentar a Palavra, girar em torno dela, cotejá-la, familiarizarmo-nos com ela, guardá-la na arca da memória como um tesouro as frases que fizeram arder o nosso coração num determinado momento...
Como estas, e tantas outras: “Javé é meu pastor; nada me falta!” (Sl 23,1)o do Reino e quando precisamos “Sou pobre e indigente, mas o Senhor cuida de mim!” (Sl 40,18) “Teu amor vale mais do que a vida!” (Sl 53,4) “Que a tua misericórdia venha até mim, e eu viverei” (Sl 119,77). “Felizes os que são misericordiosos...” (Mt 5,7) “Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso” (Mt 11,28). E você pode fazer sua própria lista...
A princípio, estas frases podem parecer sementes inúteis, mas de repente percebemos que elas cresceram espontaneamente, começaram a fazer parte de nós mesmos e se tornaram nosso respiro. Se estivermos dispostos a abandonar os velhos pavimentos que sustentavam o nosso eu, fixar-nos-emos noutro centro e respiraremos outros ares. “Vocês não podem servir a Deus e às riquezas!” (Mt 6,24). “Eu era estrangeiro e me receberam em sua casa...” (Mt 25,35). “Não fiquem preocupados com a vida, com o que comer...” (Lc 12,22). “Tenham coragem, eu venci o mundo!” (Jo 16,33).
Pensemos em Maria. Ela reconhece que é do olhar de Deus que nasce o seu júbilo. “Ele olhou para a humildade da sua serva..:” E por isso ela fixa o próprio olhar lá onde Deus fixou e contempla a história com o mesmo olhar que sentiu envolvê-la. A Palavra que ela tantas vezes escutara na sinagoga de Nazaré fez seu percurso e ajudou a ver a realidade com olhos novos (cf. VD 108). Por isso, ao lado de um realismo consciente da ambiguidade e da precariedade das coisas e da dureza da vida (existem realmente famintos, pobres e oprimidos), Maria não se deixa enganar pelas aparências, vai além do realismo e vê as coisas, pessoas e acontecimentos como Deus mesmo os vê: ela vê os famintos saciados, os humildes exaltados, e os ricos e poderosos despedidos de mãos vazias...
Assim como Maria e sem saber como, podemos num certo momento perceber com surpresa que reagimos e agimos orientados por critérios, desejos e inclinações que não vêm de nós mesmos mas dAquele que imprimiu a sua Palavra como um carimbo no nosso coração e no nosso braço. E nos damos conta, com surpresa e alegria que, mesmo que de modo fugaz, estamos sintonizados com Ele, compartilhamos seus sentimentos. E a nossa vida será uma vida cativada pela Palavra.
Em termos pessoais é isso: precisamos permanecer sob a influência da Palavra todos os dias, com abertura de mente e de coração, com desejo e sede: “Tu és o meu Deus, por ti madrugo. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como a terra seca, esgotada e sem água!” (Sl 63,2) “Pela manhã te apresento a minha causa, e fico esperando...” (Sl 5,4) Trata-se daquela familiaridade com a Palavra que nos pede Bento XVI (cf. VD, 79-80; EG 149; 175): “Abeirar-se da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos sentimentos e pensamentos e gere em nós uma nova mentalidade, o pensamento de Cristo.”
Acolher o Verbo que se fez carne “significa deixar-se plasmar por Ele, para se tornar, pelo poder do Espírito Santo, conforme a Cristo, ao Filho Único que vem do Pai (Jo 1, 14). É o início de uma nova criação: nasce a criatura nova, um povo novo. Aqueles que crêem, ou seja, aqueles que vivem a obediência da fé nasceram de Deus (Jo 1, 13), são feitos participantes da vida divina: filhos no Filho (cf. Gl 4, 5-6; Rm 8, 14-17). (...) Vemos esboçar-se aqui o rosto da Igreja como realidade que se define pelo acolhimento do Verbo de Deus, que, encarnando, colocou a sua tenda entre nós (cf. Jo 1, 14). Esta morada de Deus entre os homens – a shekinah (cf. Ex 26, 1) – prefigurada no Antigo Testamento, realiza-se agora com a presença definitiva de Deus no meio dos homens em Cristo.” (VD, 50)
O Sínodo recomendou vivamente a lectio divina das Sagradas Escrituras, e Bento XVI reforça esta recomendação: “Todos os fiéis debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração” (VD, 86). Mas sem esquecer também, que o estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta e acessível a todos os crentes (cf. EG 175).
Mas da Palavra, além de ouvintes, somos servidores (jamais proprietários ou controladores!). A nós é confiada a bela missão de anunciar e distribuir a Palavra, torná-la acessível e compreensível ao povo. Nada pode nos impedir de levar a termo essa missão! Deixemo-nos inspirar pela comunidade apostólica que, diante da urgência de socorrer as viúvas estrangeiras necessitadas, inventa novos ministérios para não abandonar o serviço à Palavra. “Não está certo que nos deixemos a pregação da Palavra de Deus... Desse modo, nós poderemos dedicar-nos inteiramente à oração e ao serviço da Palavra” (At 6,2.4). E esta atenção à Palavra nos faz atentos à história, não necessariamente para condenar seus estreitamentos e desvios, mas para descobrir e aderir às novidades que estão germinando nela (cf. VD, 105).
Mas não nos esqueçamos que, apesar dos 25 parágrafos da Evangelii Gaudium que o Papa Francisco dedica à homilia (cf. EG 135-159), a pregação litúrgica é apenas uma das formas de servir à Palavra. E além da insubstituível presença da Palavra em todos os serviços e pastorais, é mais que chegado o tempo de abrir amplas estradas à Palavra (cursos, círculos, jornadas). Se a eucaristia é fonte e ápice da vida cristã, a Palavra é seu fundamento e seu coração, diz a exortação de Bento XVI (cf. VD, 86). Portanto, absolutamente indispensável, como o chão que pisamos e o coração que bombeia o sangue em todo o corpo.
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

Alimentando-nos da Palavra de Deus (2)

 Como o porteiro encarregado de vigiar (cf. Mc 13,33-36):
Sejamos especialistas na arte de escutar

Vai acontecer como um  homem que partiu para o estrangeiro. Ele deixou a casa, distribuiu a tarefa a cada um dos empregados, e mandou o porteiro ficar vigiando. Vigiem, portanto...” (Mc 13,33-36).
Comecemos prestando atenção aos dois personagens desta brevíssima parábola. Antes de sair de casa, o dono dá responsabilidades a duas categorias de servidores: confia tarefas gerais aos servos; ao porteiro, pede especificamente que vigie.
O porteiro é ao mesmo tempo um personagem de dentro e de fora da casa, e sua missão tem algo de fronteira, de limiar. Ele pertence à casa e, mesmo não sendo patrão, conhece os tesouros que ela guarda e tem a responsabilidade de protegê-los. Enquanto os demais servos realizam seus trabalhos no interior da casa, o porteiro está na fronteira entre o interior e o exterior, com a atenção voltada para além dos muros, atento para proteger a casa e reconhecer com a vista e com o ouvido os sinais que anunciam o esperado retorno do patrão ou as notícias que alguém pode trazer sobre ele. Ao porteiro cabe abrir ou fechar a porta da casa, permitir ou negar o acesso a ela, e isso é muito importante!
Francisco pede que os cristãos sejam guardiães da beleza e da alegria, e não fiscais do perigo. A Igreja é mais uma enfermaria que uma alfândega! (cf. 47-49; 168). Como religiosos, podemos nos compreender como porteiros, convocados pela Palavra a ser pessoas da porta, pessoas situadas na fronteira entre o dentro e o fora, pessoas que são chamadas a ser especialistas na atenção, na escuta, na acolhida, no olhar amplo e perspicaz. E penso que a nossa atenção fundamental se volta antes de tudo à Palavra viva de Deus. Se ela é o coração da vida cristã (cf. VD, 3), merece esta atenção, inclusive nos pequenos detalhes, como a reverente atenção que dispensamos às migalhas do pão eucarístico... Trata-se de permanecer como que pendentes da Palavra que sai da boca de Deus, alimento que pode saciar nossa fome e sede de vida.
Eis o que diz Bento XVI sobre a nossa relação com a Palavra de Deus: “O Sínodo lembrou em primeiro lugar que esta (a vida consagrada) «nasce da escuta da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de vida». Deste modo, viver no seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma «“exegese” viva da Palavra de Deus». O Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo que ilumina «a Palavra de Deus, com nova luz, para os fundadores e fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer ser expressão», dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade evangélica. [...] A grande tradição monástica sempre teve como fator constitutivo da própria espiritualidade a meditação da Sagrada Escritura, particularmente na forma da lectio divina. De igual modo, hoje, as realidades antigas e novas de especial consagração são chamadas a ser verdadeiras escolas de vida espiritual onde se há-de ler as Escrituras segundo o Espírito Santo na Igreja, de modo que todo o Povo de Deus disso mesmo possa beneficiar. Por isso, o Sínodo recomenda que nunca falte nas comunidades de vida consagrada uma sólida formação para a leitura crente da Bíblia” (VD, 83). Ou seja: somos convidados a cultivar uma profunda familiaridade com a Palavra de Deus!
Mas a tradição cristã ousa proclamar em alto e bom som que a Palavra de Deus se fez carne, pão e cruz. Por isso, a atenção e a sensibilidade devem ser ainda maiores. “A fé apostólica testemunha que a Palavra de Deus se fez um de nós. A Palavra de Deus exprime-se (no presente!) em palavras humanas” (VD, 11). Em Jesus de Nazaré, a Palavra de Deus se fez urgente, breve, concreta, pequena; “tão pequena que cabe numa manjedoura”. Mas, na cruz, “o Verbo emudece, torna-se silêncio de morte, porque se disse até calar, nada retendo do que nos deveria comunicar”. Na cruz a Palavra torna-se gemido, grito lancinante e clamor surdo na garganta da vida. E é concretamente na garganta da humanidade – nas suas dores e angústias, esperanças e alegrias – que Deus continua nos falando com eloquência, insistência e urgência.
Foi escutando os homens e mulheres cansados e abatidos, esquecidos e tratados como ‘últimos’ que Jesus descobriu a Palavra da misericórdia do Pai. Foi na acolhida do espantoso grito do crucificado de Nazaré e dos os crucificados de todos os tempos e latitudes que aos discípulos se abriu a boa notícia do Reino de Deus e da Ressurreição. Por isso, cultivemos a atenção própria dos porteiros, atenção ao que acontece no interior (no nosso interior, no interior da Igreja) e àquilo que acontece além dos muros, no exterior (nosso e da nossa Igreja).
A atenção à interioridade e a espera não são atitudes muito apreciadas na cultura que predomina hoje, inclusive em alguns setores da vida religiosa. Somos mais atraídos pelas “grandes questões” e discussões, pelas atividades e diversões. Também nós corremos o risco de entrar num dinamismo centrífugo, enveredar pelo caminho do barulho, da pressa, da quantidade, do stress. E o resultado nefasto poderá ser uma geração de pessoas adormecidas e surdas, cegas e mudas, absorvidas e inertes, privadas de horizontes significativos, prisioneiras nas redes vazias da banalidade, superficiais e incapazes de viver a interioridade e a compaixão. Como latas que, quanto mais vazia mais barulho faz...
Ninguém de nós está livre dessa pressão do ambiente. A disciplina da atenção e da vigilância nos parece difícil. Somos constantemente assediados por mil convites para que permaneçamos na periferia de nós mesmos, na superfície da onda. Parece que tudo quer nos empurrar para fora, tudo faz pressão para que vivamos distraídos e ambalados por uma música que é tanto mais bela e envolvente quanto mais vem de fora...
Às vezes este tsunami de distração parece ter um bom objetivo. Em vez de sermos posteiros vigilantes que acolhem a Palavra, abandonamos nosso posto de guarda e corremos de curso em curso, de palestra em palestra; acumulamos livros e livros, carroçadas de fotocópias e anotações que jamais iremos ler; gravamos tudo em CDs e pen-drives que dormirão imperturbáveis nalguma gaveta; as palavras se acumulam nas prateleiras do nosso coração e da nossa mente; as idéias, discursos, opiniões, raciocínios e comentários vão ocupando todos os espaços e acabam devorando os ângulos de silêncio e deserto nos quais Deus deseja nos conduzir... E então a sua Palavra permanece no umbral da nossa casa, porque a porta está fechada e ninguém atende Aquele que bate...
Se perdermos ou deixarmos subdesenvolvida a atitude de atenção e se ignorarmos nossos desejos mais profundos, podemos ler muitos textos bíblicos, mas jamais seremos surpreendidos por Deus. A Palavra de Deus se parecerá a um palito de fósforo já riscado, velho e usado... Cresceremos em idéia, mas não em sabedoria. Seremos consultados como especialistas, mas nossas respostas não terão aquela vibração que pulsa atrás das palavras de uma pessoa fascinada e apaixonada. Nessa situação, o que poderia nos dizer e ensinar este porteiro da parábola, homem habituado a vigiar e esperar?
Talvez ele começasse convidando-nos a abrir a porta que nos conecta à nossa própria interioridade; a desobrir novamente que somos habitados e chamados a viver em contato com o nosso coração; a descobrir e dar nome aos medos e desejos que nos habitam. Talvez ele nos tomasse pela mão e nos conduzisse às complexas estradas do mundo, onde homens e mulheres roubados e machucados jazem nas margens; onde samaritanos e cirineus resgatam e sustentam os sutis fios da vida. Em todos os casos, ele não deixaria de pedir que sintonizemos nossos ouvidos à Palavra viva de Deus, aquela Palavra que precede e excede as escrituras... E pediria que não esqueçamos que Jesus nos pede que, quando quisermos rezar, devemos entrar no nosso quarto e fechar a porta (cf. Mt 6,6), porque a iniciativa é sempre daquele que chama e atrai.
Às vezes penso que cultivamos uma secreta mas intensa resistência em aceitar que somos queridos e desejados por Deus, que é ele que desde sempre nos busca... Mas é exatamente sobre isso que os autores bíblicos querem nos convencer, do Gênesis ao Apocalipse. “Em seguida, eles ouviram o Senhor Deus passeando no jardim à brisa do dia. Então o homem e a mulher se esconderam... E o Senhor Javé chamou o homem: “Onde está você?” (Gn 3,8-9). Santo Ambrósio diz que quando tomamos nas mãos e lemos com fé as Sagradas Escrituras, voltamos a passear com Deus no paraíso! “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele e ele comigo” (Ap 3,20). E nessa ceia, nossos olhos e nossa inteligência podem se abrir, e então nos poderemos reconhecer a presença de Deus nos companheiros de viagem, nos lutadores e crucificados, como ocorreu com os discípulos no caminho de Emaús.
Tanto no texto do Apocalipse como no de Mateus aparece uma porta que separa dois âmbitos: o exterior e o interior. No Apocalipse se fala da “testemunha fiel” que está fora e convida a abrir aquela porta que a separa daquele que está dentro. Em Mateus, Jesus convida a fechar a porta. Mas em ambos os casos, o encontro ocorre no espaço interno, e as imagens que expressam intimidade são a ceia partilhada, a troca de olhares e o diálogo.
A experiência de ser atraído nos ajuda a descobrir que somos habitados, e que quando conseguimos entrar em contato com a nossa interioridade descobrimos que ali Alguém está nos esperando. Não somos vazios; somos habitados! Não chegamos por primeiro, nem estamos sozinhos! “Se alguém me ama, guarda a minha Palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Trata-se da mesma experiência que Jacó fez em Betel: “De fato, Javé está presente neste lugar e eu não sabia disso...” (Gn 28,16).
A partir dessa certeza de fé, podemos perder o medo de entrar em contato com tudo o que é obscuro, inquietante ou desordenado em nós (cf. Rm 8,15-26). O Espírito derramado em nós ajuda na aceitação positiva da nossa fragilidade e dos nossos limites porque, encarregando-se de nós, ajuda-nos a não considerá-los obstáculos entre Deus e nós. E então começamos a alegrarmo-nos por não sermos nem puro espírito nem espíritos puros, mas algo muito melhor: filhos amados do Pai!
Não seria esta uma dimensão importante da nossa missão de pessoas consagradas hoje: propor percursos para acessar a interioridade, percursos diversos daqueles badalados pela new age? A missão de porteiros nos convida a olhar para fora, a identificar as buscas anônimas do povo inquieto e insatisfeito, a abrir as portas das nossas comunidades e oferecer a nossa companhia a quem deseja ir além da realidade e da aparente banalidade. E a experiência nos ensina que quando abrimos as portas, entra por elas muita gente ferida pelo fracasso e pela solidão, pela fragilidade e pelo amor doentio. Nosso mundo aparentemente satisfeito e cheio de mercadorias é habitado por muita gente acorrentada ao medo da doença, da loucura, do sofrimento, do silêncio, da velhice, da exclusão, da morte. Hoje a Palavra nos pede para abrir as portas e oferecer escuta, acolhida, calor e companhia a um mundo que corre o risco de se congelar...

Talvez o porteiro encarregado de vigiar a porta esteja a nos dizer: “Vivam despertos e esperem. Não deixem diminuir vossa atenção. É na espera vigilante e na escuta atenta que se revela o imenso e silencioso trabalho de Deus no coração de vocês e do mundo. Deixem a porta entre-aberta, para que por ela entrem aqueles que vivem ao relento. O Senhor que vocês esperam virá escondido entre estes últimos e lhes abrirá a mente para que entendam o Verbo que se fez carne, pão e cruz...”
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Alimentando-se da Palavra de Deus (1)

Como os pescadores cansados (cf. Lc 5,1-11):
em atenção à Palavra, lançamos de novo as redes

Sabemos todos que a matáfora que fala de Jesus como ‘mestre’ domina os evangelhos e todo o Novo Testamento. De fato, uma das principais atividades de Jesus durante o seu ministério foi ensinar as multidões e aos discípulos. ‘Mestre’ é o título mais utilizado tanto pelo povo como pelos discípulos para se dirigir a Jesus. Diz-se frequentemente que ele ‘ensinava’ como quem tinha autoridade (Mt 7,29). E nós, religiosos e ministros ordenados, nos entendemos como pessoas chamadas a prosseguir no tempo o ensinamento de Jesus.
Infelizmente esta ênfase em Jesus Mestre nos levou a praticamente esquecer que Jesus é também ouvinte, aprendiz, discente. É claro que as referências bíblicas a essa dimensão da sua vida não são muito numerosas, e a maior parte delas é indireta. Mas existem e merecem ser levadas em conta. Recordemos alguns exemplos:
·  Lc 2,41-52: Jesus senta em meio aos doutores, escutando e fazendo perguntas; desce a Nazaré e permanece obediente (ob-audire!) aos pais e, assim, cresce em sabedoria e graça diante de Deus e dos homens;
·  Lc 4,14-21: Jesus frequenta a Sinagoga e busca nas escrituras sagradas inspiração e orientação para discernir a própria missão;
·      Mt 8,5-13: Jesus se mostra admirado e surpreso diante da fé de um pagão;
·      Mc 6,1-6: Jesus se mostra admirado e surpreso com a falta de fé dos conterrâneos;
·     Jo 15,15: Jesus diz que comunica aquilo que ouve e aprende do Pai, que é mestre enquanto permanece discípulo;
·   Jo 5,19: Jesus diz que aprende do Pai, que só faz aquilo que vê o Pai fazer, aquilo que aprende dele;
·     Jo 8,26-28: Jesus diz que anuncia ao mundo aquilo que ouviu do Pai, que fala apenas aquilo que o Pai lhe ensina;
·      Hb 5,8: Mesmo sendo filho de Deus, Jesus aprendeu a ser obediente através dos sofrimentos.
E não podemos esquecer que Jesus rezava constantemente, retirado. O que é a oração senão o exercício de abrir horizontes, compreender e acolher o caminho de acordo com o querer do Pai? Jesus viveu em primeira pessoa aquilo que o profeta Isaías escreveu: “O Senhor Javé me deu capacidade para falar como um discípulo... Toda a manhã ele faz meus ouvidos ficar atentos para que eu possa ouvir como discípulo...” (Is 50,4-11). O Papa Francisco lembra que este olhar de discípulo é essencial também na contemplação e discernimento da realidade (cf. EG 50).
Prestar atenção à Palavra de Deus e ao Deus que fala e dialoga conosco: este será o fio condutor destes dias de exercício espiritual, de silêncio e de partilha de vida. E podemos começar trazendo à memória o acontecimento que Lucas nos apresenta no capítulo 5 (versos 1-11) do seu livro. Jesus está na margem do lago de Genesaré, a multidão se aperta ‘para ouvir a Palavra de Deus’, um grupo de pescadores lava as redes. Suas barcas estão ancoradas, seguras e vazias. Jesus entra na barca de Simão, pede que ele se afaste da margem e, de dentro da barca vazia, ensina as multidões. Depois pede que Simão avance para águas mais profundas e lance de novo as redes. E é unicamente ‘em atenção à Palavra de Jesus’ que Pedro tenta de novo. Ele passa de pescador que sabe tudo e não tem nada a aprender a discípulo que faz da Palavra do Mestre seu alimento. A atitude de escuta é o ponto de partida para o caminho da fé.
É esta inaudita fecundidade da Palavra que estimula e sustenta o subsequente diálogo de Jesus com Pedro. Diante do resultado inesperado da pescaria, Pedro se joga aos pés de Jesus, reconhecendo os próprios limites e incapacidades: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador...” Mas Jesus, vendo o espanto que tomara conta de todos, procura recompô-los: “Não tenham medo! De hoje em diante vocês serão pescadores de homens...” Pedro descobre a missão de reunir homens e mulheres para conduzi-los à vida abundante. E então os barcos ficaram esquecidos na praia e, com Jesus, aqueles pescadores buscaram outros mares. Tudo por causa daquela Palavra...
Será que aquele punhado de gente que começou a seguir os passos de Jesus, chamada e atraída pela sua Palavra, tinha consciência de que se tornariam ícones nos quais fixaríamos o nosso olhar? O que teriam pensado e feito se soubessem que nos espelharíamos neles, nos altos e baixos do percurso que fizeram, nos entusiasmos e desânimos deles, nas alegrias e medos da caminhada deles? Se soubessem disso, talvez não tivessem discutido sobre quem era o maior, não teriam abandonado Jesus no calvário e Tomé não teria dito “se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos, eu não acreditarei!” (Jo 20,25). Mas, para nossa sorte e consolação, eles discutiram, fugiram, desanimaram e mereceram a advertência de Jesus: “Como vocês custam para entender e como custam a acreditar em tudo o que os profetas falaram!...” (Lc 24,25). E também para o nosso bem, foram capazes de dizer um dia: “A quem iremos, Senhor? Tu tens Palavras de vida eterna!” (Jo 6,68).
Mas não é apenas sobre este grupo concreto e histórico de homens e mulheres movidos pela Palavra que fixaremos nossa atenção. Somos convidados a olhar para outros personagens que só aparecem nos evangelhos graças à imaginação de Jesus. Pedro, Madalena, Mateus, Zaqueu, Bartimeu e tantos outros personagens tiveram uma vida própria antes de encontrar Jesus. Mas os personagens que povoam as parábolas só ‘existem’ porque foram ‘chamados’ pela sua Palavra e ‘criados’ por ela. Nenhum deles, com exceção de Lázaro, têm nome próprio, como se estivessem esperando assumir o nosso nome para se transformar em ícones que, ao serem contemplados, nos ensinam belas lições de vida.
Graças a Deus, há cinquenta anos o Concílio Vaticano II ‘democratizou’ o acesso à Palavra de Deus e pediu que o povo de Deus tivesse acesso a ela e que o Magistério se colocasse a seu serviço. Nela e por ela, o próprio Deus estabelece um diálogo vivo conosco e nos constitui como povo da Aliança, peregrino do seu Reino. Recentemente, acolhendo a contribuição do Sínodo dos Bispos, Bento XVI confirmou: não existe nada mais prioritário que abrir ao homem de hoje o acesso a Deus, ao Deus que fala e nos comunica seu amor para que tenhamos vida abundante (cf. Verbum Domini, 2). A Palavra de Deus é fundamento e base da espiritualidade cristã (VD 72; 121), o coração da vida cristã (cf. VD, 3) e nos possibilita um novo olhar sobre o mundo (cf. VD, 108).
É claro que não foi sempre assim! Nos primeiros séculos do cristianismo, as comunidades cristãs se guiavam basicamente pela Palavra de Deus. Na patrística, Biblia e Tradição andavam de mãos dadas. A título de exemplo: escrevendo a Eustáquio, no ano 420, São Jerônimo insistia: “Lê com frequência e aprende o melhor que possas. Que o sono te encontre com o livro nas mãos e a página sagrada acolha o teu rosto vencido pelo sono.”
Mas, no século XIII, o movimento dos cátaros começou a interpretar alguns livros da Bíblia de modo próprio e polêmico, o que levou o Concílio de Toulouse (1229) a proibir o uso de traduções vernáculas (esta proibição foi revogada em 1235, pelo Concílio de Tarragona). Jonh Wyclife (1320-1384) afirmava que somente a tradução inglesa da Bíblia era regra de fé. O movimento dos valdenses começou a interpretar as escrituras numa perspectiva subjetiva e a negar alguns dados da fé católica tradicional. Lutero e seus seguidores definiram a Biblia como única autoridade para orientar e julgar a fé e os costumes. Então, o Concílio de Trento reagiu, confirmando a autenticidade e a inerrância da tradução vulgata da Bíblia, rejeitou a livre interpretação, estimulou os estudos bíblicos nos colégios e conventos, incluiu novos livros no cânon católico (Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico e Macabeus). Mas declarou também que somente os bispos e inquisidores poderiam autorizar a leitura da Bíblia em vernáculo. Consequentemente, os católicos se afastaram da Bíblia e esta perdeu sua influência salutar sobre a piedade e a espiritualidade.
Livre das tensões com o protestantismo, o jansenismo e algumas heresias, o século XX trouxe consigo significativas mudanças em relação ao uso da Bíblia. Pio X (1903-1914) sugere o uso constante da Sagrada Escritura na liturgia. Bento XV, em 1920, recomenda aos fiéis a leitura diária dos evangelhos. Em 1940, Pio XII recomenda a difusão da Bíblia entre os fiéis, nas línguas vernáculas autorizadas. E o Vaticano II falará da mesa da Palavra ao lado da mesa da Eucaristia; recordará que é preciso venerar a Sagrada Escritura como regra suprema da fé, e que ignorá-la significa ignorar Jesus Cristo; e pedirá que se faça a Bíblia chegar ao povo de Deus.

Tudo isso é muito importante, mas precisamos ter presente que a Bíblia não pode ser simplesmente identificada sem mais com a Palavra de Deus. A Palavra de Deus desborda o livro, embora nele se expresse de modo importante. Temos também a tradição viva da Igreja e os sinais dos tempos. A Palavra de Deus precede e excede a Sagrada Escritura (cf. VD, 17). E o estudo da Bíblia, graças a Deus hoje muito estimulado, não é tudo. Por isso, aqui estamos para, como Maria de Nazaré, crescer na familiaridade com a Palavra de Deus, entrar nela, indentificarmo-nos com ela (cf. VD, 28). Mas, para tanto, precisamos fazer as pazes com o mundo, amá-lo e escutá-lo, habitá-lo guiados pela fé.
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

sábado, 19 de julho de 2014

Maria e o evangelho da alegria

Missão e evangelização em chave Mariana

Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O invocarem (At 1, 14), e assim tornou possível a explosão missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27).
Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19, 28).
Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). (...)
Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os corações à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. (...)
À Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação feita de serviço e fecundidade.
Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os novos discípulos se tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova.
Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. Foi deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».
Há um estilo mariano na atividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto. N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19).
Maria sabe reconhecer os vestígios do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação para ir ajudar os outros.
Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). 
Papa Francisco

(Evangelii Gaudium, 284-288)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

16° Domingo do Tempo Comum (Ano A - 2014)

A sabedoria da paciência e a seriedade da urgência.
Como a parábola do semeador, as parábolas do trigo e do joio, da semente de mostarda e do fermento estão situadas na parte do evangelho de Mateus que trata do dinamismo do Reino de Deus. Os discípulos se perguntam se o Reino inaugurado por Jesus Cristo é realmente uma boa semente, se tem força e futuro. A experiência deles e nossa é de que, apesar de todos os esforços e bons propósitos, o resultado do nosso empenho generoso é ambivalente, insuficiente e preocupante.
A ambiguidade tem suas raízes nas dimensões inconscientes do ser humano. A oposição faz parte da condição humana e coexiste com as boas iniciativas. Existem forças que se opõem ao processo de libertação, mas so incapazes de impedir seu florescimento. Jesus não se preocupa em pesquisar e debater a origem do mal que contamina as iniciativas e projetos humanos.  Ele simplesmente diz que numa noite, “quando todos dormiam” um adversário semeou joio no meio do trigo.
É interessante destacar que é apenas quando a boa semente do Reino se desenvolve que a presença do mal se faz notar. O mal que se opõe à justiça do Reino não é uma força absoluta, comparável ou superior ao bem: é uma força sempre relativa, identificável no confronto com os valores e práticas de Jesus Cristo e seus discípulos. Ela provoca confusão e nos rouba forças que poderiam ser empenhadas noutras coisas, mas não tem futuro.
O zelo pela casa de Deus às vezes provoca em nós uma santa ira, e nosso desejo é pegar foices e facões e extirpar da sociedade a injustiça e da Igreja a ambiguidade, cortando o mal pela raiz. Esta seria uma solução relativamente fácil se o joio estivesse apenas no nosso exterior, se fôssemos pessoas incorruptíveis, sem ambivalências e sem contradições. Mas o integrismo costuma se mostrar irracional e violento. É preciso ter paciência e esperar que as coisas fiquem mais claras...
Jesus propõe duas outras parábolas, nas quais contrapõe a notável pequenez da semente de mostarda e do fermento ao arbusto frondoso e à massa levedada que produzen. Estas parábolas são uma resposta às perguntas que frequentemente nos fazemos: será que o amor, a ternura e a compaixão não são ações insignificantes, pequenas e demasiadamente frágeis frente à injustiça e à opressão? Teremos que nos contentar em ser sempre uma minoria que age apenas reparam danos?
Para os grandes Roma, de Jerusalém e de todos os centros de poder, a semente e o fermento do Reino de Deus é insignificante e sem futuro. Não faltam aqueles que, em nome da eficácia histórica, propõem uma Igreja mais forte e potente, capaz de medir forças ou negociar com os impérios de plantão. Mas a proposta de Jesus é outra: trata-se de crer na força dos fracos, na fecundidade invencível do amor solidário, no dinamismo revolucionário da profecia e do testemunho.
Mas a pergunta ressurge insistente: isso não foi sempre um romantismo inconsequente? Jesus responde a este questionamento chamando nossa atenção ao mundo doméstico e feminino. Precisamos aprender da ação silenciosa, escondida e demorada do fermento que a cozinheira mistura à farinha. Ninguém ousaria afirmar que a ação do fermento é ineficaz! Mas, para ser eficaz, o fermento do Reino de Deus precisa entrar em contato e perder-se na farinha.
Esta parábola do Reino completa o que naturalmente falta às anteriores. Cada parábola quer evidenciar um aspecto do dinamismo do Reino de Deus. Aquela do trigo e do joio nos chamam à paciência e ao discernimento; a da semente de mostarda nos ensina a confiaça nos meios aparentemente pequenos e frágeis; e a parábola do fermento nos interpela ao engajamento lúcido e transformador, a gastar-se na ação de solapar as bases de impérios que excluem e matam.
Jesus de Nazaré, incansável pregador do Reino de Deus, teimoso construtor de um Novo mundo! Ensina aos teus filhos e às Igrejas que anunciam teu Reino um zelo sábio e respeitoso. Ensina-nos a atuar como o fermento, a “corromper” o tecido social que mantém o reino dos mais fortes, a criar micro-organismos portadores de uma nova ordem social, geradores de novos homens e novas mulheres. Dá-nos a coragem de perdermo-nos na luta, como fermento que transforma a massa, com a força do teu Espírito e da tua Palavra, sem medos, mas também sem integrismos nem totalitarismos. E ajuda-nos a descobrir o infinito e fecundo valor dapequenez, da minoridade.  Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

(Sabedoria 12,13-19 * Salmo 85 (86) * Carta aos Romanos 8,26-27 * Mateus 13,24-43)

sábado, 12 de julho de 2014

Sétimo dia de falecimento de Dom Estanislau

Dom Estanislau Amadeu Kreutz,
um dom que fará muita falta!

As Sagradas Escrituras nos convidam a cultivar a memória das pessoas queridas porque nelas, assim como nos acontecimentos históricos, Deus revela a si mesmo, sua bondade e sua fidelidade. “Vamos fazer o elogio dos homens ilustres, nossos antepassados, através das gerações. O Senhor neles criou imensa fama, pois mostrou sua grandeza desde os tempos antigos... Uns guiaram o povo com suas decisões, compreendendo os costumes de sua gente e tendo palavras sábias para instruí-la... Todos  foram honrados por seus contemporâneos e glorificados enquanto viviam. Alguns deixaram o nome que ainda é lembrado com elogios... Na sua descendência, eles têm uma rica herança, que é a sua posteridade... A descendência deles permanecerá para sempre, e sua fama jamais se apagará. Seus corpos foram sepultados em paz, e o nome deles viverá através das gerações. Os povos proclamarão a sabedoria deles, e a assembléia celebrará o seu louvor” (Eclesiástico 44,1-15).
Elogiar as pessoas ilustres, honrar os líderes que nos dirigiram e os pastores que nos guiaram, reconhecer e proclamar a bondade e a sabedoria daqueles que estiveram à nossa frente e caminharam ao nosso lado não significa ignorar os limites próprios da condição humana. Significa glorificar o próprio Deus, que se dignou revelar neles sua graça e sua bondade. Significa acolher o legado espiritual e humano que nos deixam e fazer com que a memória e o nome deles permaneça viva e continue frutificando em nós. E é isso que queremos fazer recordando e celebrando a vida de Dom Estanislau Amadeu Kreutz.
Dom Estanislau Kreutz, dom e graça de Deus na caminhada do Povo de Deus de Santo Ângelo, foi presença que marcou minha vida em três dimensões: como pastor na animação incansável e coordenação lúcida da diocese; como bispo sempre disponível e solidário com os Missionários da Sagrada Família; como amigo sábio e compreensivo, especialmente depois que deixou a responsabilidade pastoral da diocese de Santo Ângelo.
Como pastor da parcela do Povo de Deus que está na diocese de Santo Ângelo, Dom Estanislau marcou pelo apreço pelo clero e pela vida religiosa, pela serena firmeza e pela presença humana e humilde. Ele amou intensamente os padres e diáconos, e não apenas os da sua diocese, e não perdia nenhuma oportunidade demonstrá-lo: nas ordenações, votos e celebrações jubilares; por ocasião do falecimento dos familiares deles; em momentos exigentes da vida pessoal e pastoral. Dom Estanislau demonstrou sua firmeza serena e profética especialmente mediante a presença e o apoio solidário às lutas dos pobres e oprimidos da diocese, mesmo com o risco de perder a boa fama de que gozava, e na defesa madura e equilibrada das decisões e práticas de abertura e renovação da Igreja diocesana.
Sem abrir mão daquilo que é essencial no ministério episcopal, e que às vezes pede presença e intervenções oficiais, Dom Estanislau também sabia ser presença discreta e fraterna, e o fazia com notável satisfação. Muitas vezes me senti comovido observando sua presença discreta e tremendamente estimulante nos encontros de Comunidades, especialmente das CEB’s. Issso deixa claro que o apreço de Dom Estanislau pelo clero não significava menosprezo pela atuação eclesial e social dos leigos e leigas. Mas recordo também tantas celebrações em que ele renunciava à presidência e se colocava como concelebrante para permitir que um padre vivesse intensamente um momento especial do seu ministério. Jamais esquecerei a primeira eucaristia que presidi no Instituto Missioneiro de Telogia, apenas uma semana depois da ordenação presbiteral: Dom Estanislau pediu que eu presidisse a celebração, e ele permaneceu ao meu lado, servindo ao altar, como se fosse um sacristão...
Um segundo aspecto marcante da personalidade e do ministério de Dom Estanislau que desejo ressaltar é sua presença amiga e solidária nos diversos momentos da vida dos Missionários da Sagrada Família. Experimentei isso de um modo muito vivo e intenso no período em que estive à frente da Coordenação Provincial. Foram incontáveis os eventos e momentos em que ele se fez gentilmente presente: ordenações diaconais e presbiterais; jubileus de coirmãos, da Província e da Congregação; visitas ao Governo Geral, em Roma; exéquias de coirmãos ou seus familiares; ordenação episcopal de Dom Guilherme Werlang; romarias de Nossa Senhora da Salette... Nisto também se sacramentalizou a perspectiva profundamente eclesial na qual ele situava o ministério episcopal.
Quero falar ainda sobre uma terceira dimensão da vida de Dom Estanislau: a atenção e o relacionamento fraterno e amigo que experimentei da parte dele. Já mencionei a delicadeza do gesto de permitir que eu presidisse, ao lado dele, minha primeira missa no IMT, evento que se completou com uma festa patrocinada por ele para todos os alunos e professores. Quando eu era pároco em Santo Ângelo, algumas pessoas apresentaram a Dom Estanislau algumas queixas e acusações sobre o meu trabalho pastoral; ele me chamou para um diálogo fraterno, apresentou as questões e concluiu com um sorriso acolhedor e um grande senso pastoral: “Eu conheço você e confio plenamente no seu bom senso!” Livre da responsablidade primeira pela Diocese, os encontros, visitas e partilhas se multiplicaram, e ele não perdia oportunidade de proporcioná-los. No período que passei em Roma, seguidamente Dom Estanislau me surpreendia chamando-me pelo Skipe, e então conversávamos longamente. Um privilégio que valorizo muito.
Por isso que assinalei, e por muitos outros aspectos igualmente importantes, a partida de Dom Estanislau fará muita falta. Mas creio também que a preciosa semente que ele espalhou enquanto viveu frutificará abundantemente. Como diz a Escritura: seu corpo foi sepultado em paz e o seu nome viverá através das gerações. Proclamemos a sabedoria e a bondade que ele recebeu de Deus, e celebremos juntos o louvor por sua vida.

Pe. Itacir Brassiani msf