Como o semeador
tranquilo (cf.
Mc 4,26-29):
Esperemos confiantes que a Palavra faça seu próprio
trabalho
Em Mc 4,1-9 Jesus conta a parábola do semeador e, em
Mc 4,10-25, a pedido dos discípulos, a explica. “Aqueles que receberam a
semente em terreno bom são os que ouvem a
Palavra, a recebem e dão fruto...” (Mc 4,20). Em seguida, Jesus insiste que
quem tem ouvidos deve ouvir e entender, prestando atenção àquilo que ouve.
Em seguida, Jesus apresenta uma nova parábola: “Assim é o Reino de Deus: como se um homem
tivesse lançado a semente na terra, dormisse e acordasse, noite e dia, e a
semente germinasse e crescesse, sem que ele soubesse como. A terra dá fruto por
si mesma: primeiro o caule, depois a espiga, e por fim a espiga cheia de grãos.
E quando o fruto está no ponto, logo se passa a foice, porque a colheita chegou”
(Mc 4,26-29). Jesus sublinha que “a terra produz fruto por si mesma”, e ao
homem cabe semear, discernir o tempo oportuno e colher. Poderíamos dar a esta
parábola e título de “O semador tranquilo”.
Parece que Jesus está querendo nos dizer o seguinte:
“Olhem este homem. Ele age e decide intervir no momento oportuno, quando deve
fazê-lo: espalha a semente na terra e corta com a foice quando chega o momento
da colheita. Mas sabe muito bem que há um tempo no qual ele não pode fazer nada,
pois compete à terra ‘produzir fruto por si mesma’: folhas, espigas e grãos. E
tudo isso acontece enquanto ele ‘dorme e acorda noite e dia’, sem saber ‘como
isso aconteceu’. Ele permanece tranquilo, sem tentar apressar o tempo e mudar o
ritmo, que escapam ao seu controle.”
É difícil conseguir este equilíbrio numa cultura que
sublinha a eficiência e numa pastoral que busca resultados imediatos e
controláveis (para apresentar ao bispo, ao Superior). Desejamos medir e
controlar tudo, e corremos a tentação de ser pessoas demasiadamente sérias,
disciplinadas e responsáveis no trabalho, mas pessoas que não conseguem
encontrar o justo equilíbrio entre trabalho e descanso, esforço e repouso.
A maioria de nós foi formada numa mentalidade que supervaloriza o trabalho e o
engajamento pastoral, acompanhado de uma espécie de “ansiedade apostólica” que
nos leva a confundir zelo com contabilidade, eficiência e sucesso a curto
prazo.
Penso que ainda não conseguimos aprender a discernir
quando precisamos ser ativos e diligentes na construção do Reino e quando
precisamos ser passivos e pacientes; quando devemos contribuir e quando devemos
desaparecer do campo; quando a situação nos pede vigilância ou intervenção e
quando a única coisa que devemos fazer é ir dormir; quando precisamos
identificar e enalisar as causas e quando é necessário reconhecer que não
sabemos tudo e que existem muitos “porquês” e muitos “comos” que fogem à nossa
compreensão. O discípulo que passa neste exame é aquele que, depois de ter
feito bem o que era de sua responsabilidade ou estava ao seu alcance, permanece
tranquilo, pois está convicto de que o processo que Deus iniciou levará a
semente a crescer durante a noite, enquanto ele dorme.
Também quando se trata de viver à escuta da Palavra e
agir “por causa da Palavra” – somos ouvintes e servidores da Boa Notícia! –
precisamos da disposição e da atitude do semeador tranquilo. Os orientais
ensinam que não é preciso empurrar o rio, pois ele corre por si mesmo. E a
nossa alma caipira convida a andar devagar porque o tempo da pressa é passado. Não podemos pretender controlar o dinamismo
da Palavra. Ela sabe fazer seu próprio trabalho, tem forças para isso, e o
levará a cabo se não a atrapalharmos, como diz o profeta Isaías (55,10-11). Não podemos confundir as responsabilidades:
a nossa tarefa é criar espaço à Palavra, lê-la atentamente, meditá-la,
acolhê-la com coração pobre e aberto, sussurá-la, enraizar-se nela; a tarefa da
Palavra é alimentar, interpelar, guiar, iluminar, transformar, produzir frutos.
Deixar-se convocar pela Palavra é algo que pede de nós
uma receptividade fundamental, a mesma que dá a um cristal, espelho ou à própria água tranquila a
possibilidade de refletir a luz do sol ou da lua: não fazem nada para que a luz
se reflita neles; simplesmente estão aí, tranquilos, como a terra que não faz
nada para que a semente germine nas suas vísceras... O que precisamos fazer é
frequentar a Palavra, girar em torno dela, cotejá-la, familiarizarmo-nos com
ela, guardá-la na arca da memória como um tesouro as frases que fizeram
arder o nosso coração num determinado momento...
Como estas, e tantas outras: “Javé é meu pastor; nada
me falta!” (Sl 23,1) “Sou pobre e indigente, mas o Senhor cuida de mim!” (Sl
40,18) “Teu amor vale mais do que a vida!” (Sl 53,4) “Que a tua misericórdia
venha até mim, e eu viverei” (Sl 119,77). “Felizes os que são misericordiosos...”
(Mt 5,7) “Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do
seu fardo, e eu lhes darei descanso” (Mt 11,28). E você pode fazer sua própria
lista...
A princípio, estas frases podem parecer sementes
inúteis, mas de repente percebemos que elas cresceram espontaneamente, começaram
a fazer parte de nós mesmos e se tornaram nosso respiro. Se estivermos
dispostos a abandonar os velhos pavimentos que sustentavam o nosso eu,
fixar-nos-emos noutro centro e respiraremos outros ares. “Vocês não podem
servir a Deus e às riquezas!” (Mt 6,24). “Eu era estrangeiro e me receberam em
sua casa...” (Mt 25,35). “Não fiquem preocupados com a vida, com o que
comer...” (Lc 12,22). “Tenham coragem, eu venci o mundo!” (Jo 16,33).
Pensemos em Maria. Ela reconhece que é do olhar de Deus que nasce o seu júbilo.
“Ele olhou para a humildade da sua serva..:” E por isso ela fixa o próprio olhar lá onde
Deus fixou e contempla a história com o mesmo olhar que sentiu envolvê-la.
A Palavra que ela tantas vezes escutara na sinagoga de Nazaré fez seu percurso
e ajudou a ver a realidade com olhos novos (cf. VD 108). Por isso, ao lado de
um realismo consciente da ambiguidade e da precariedade das coisas e da dureza
da vida (existem realmente famintos, pobres e oprimidos), Maria não se deixa
enganar pelas aparências, vai além do realismo e vê as coisas, pessoas e
acontecimentos como Deus mesmo os vê: ela vê os famintos saciados, os humildes
exaltados, e os ricos e poderosos despedidos de mãos vazias...
Assim como Maria e sem saber como, podemos num certo
momento perceber com surpresa que reagimos e agimos orientados por critérios,
desejos e inclinações que não vêm de nós mesmos mas dAquele que
imprimiu a sua Palavra como um carimbo no nosso coração e no nosso braço. E nos
damos conta, com surpresa e alegria que, mesmo que de modo fugaz, estamos
sintonizados com Ele, compartilhamos seus sentimentos. E a nossa vida será uma
vida cativada pela Palavra.
Em termos pessoais é isso: precisamos permanecer sob a
influência da Palavra todos os dias, com abertura de mente e de coração,
com desejo e sede: “Tu és o meu Deus, por ti madrugo. Minha alma tem sede de
ti, minha carne te deseja com ardor, como a terra seca, esgotada e sem água!”
(Sl 63,2) “Pela manhã te apresento a minha causa, e fico esperando...” (Sl 5,4)
Trata-se daquela familiaridade com a Palavra que nos pede Bento XVI (cf. VD,
79-80; EG 149; 175): “Abeirar-se da Palavra com o coração
dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos sentimentos e pensamentos
e gere em nós uma nova mentalidade, o pensamento de Cristo.”
Acolher
o Verbo que se fez carne “significa deixar-se plasmar por Ele, para se tornar,
pelo poder do Espírito Santo, conforme a Cristo, ao Filho Único que vem do Pai
(Jo 1, 14). É o início de uma nova criação: nasce a criatura nova, um
povo novo. Aqueles que crêem, ou seja, aqueles que vivem a obediência da fé
nasceram de Deus (Jo 1, 13), são feitos participantes da vida divina: filhos
no Filho (cf. Gl 4, 5-6; Rm 8, 14-17). (...) Vemos esboçar-se
aqui o rosto da Igreja como realidade que se define pelo acolhimento do Verbo de Deus,
que, encarnando, colocou a sua tenda entre nós (cf. Jo 1, 14).
Esta morada de Deus entre os homens – a shekinah (cf. Ex 26, 1) –
prefigurada no Antigo Testamento, realiza-se agora com a presença definitiva de
Deus no meio dos homens em Cristo.” (VD, 50)
O Sínodo recomendou vivamente a lectio divina das Sagradas Escrituras, e
Bento XVI reforça esta recomendação: “Todos os fiéis debrucem-se, pois,
gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de
palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se
vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo
dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura
deve ser acompanhada de oração” (VD, 86). Mas sem esquecer também, que o estudo
da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta e acessível a todos os crentes (cf.
EG 175).
Mas da Palavra, além de ouvintes, somos servidores
(jamais proprietários ou controladores!). A nós é confiada a bela missão de anunciar e
distribuir a Palavra, torná-la acessível e compreensível ao povo. Nada
pode nos impedir de levar a termo essa missão! Deixemo-nos inspirar
pela comunidade apostólica que, diante da urgência de socorrer as viúvas
estrangeiras necessitadas, inventa novos ministérios para não abandonar o
serviço à Palavra. “Não está certo que nos deixemos a pregação da Palavra de
Deus... Desse modo, nós poderemos dedicar-nos inteiramente à oração e ao
serviço da Palavra” (At 6,2.4). E esta atenção à Palavra nos faz atentos à história,
não necessariamente para condenar seus estreitamentos e desvios, mas para
descobrir e aderir às novidades que estão germinando nela (cf. VD, 105).
Mas não nos esqueçamos que, apesar dos 25 parágrafos
da Evangelii Gaudium que o Papa
Francisco dedica à homilia (cf. EG 135-159), a pregação litúrgica é apenas uma
das formas de servir à Palavra. E além da insubstituível presença da Palavra em
todos os serviços e pastorais, é mais que chegado o tempo de abrir
amplas estradas à Palavra (cursos, círculos, jornadas). Se a eucaristia
é fonte
e ápice da vida cristã, a Palavra é seu fundamento e seu coração,
diz a exortação de Bento XVI (cf. VD, 86). Portanto, absolutamente
indispensável, como o chão que pisamos e o coração que bombeia o sangue em todo
o corpo.
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)
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