Cabeças de grileiro
“Justiça, não esbulhando mais os índios das
terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores.” (José
Bonifácio, diretriz historicamente derrotada do patriarca da independência à Assembleia
Nacional Constituinte do Brasil. Apontamentos para a civilização dos
índios bravos do Império do Brasil. 1º de junho de 1823.)
Imagine a
seguinte situação: você sempre viveu com todos os seus parentes em um prédio
legitimamente de sua família. Depois de incontáveis gerações, bandos começam a
cercá-lo, tentam invadi-lo, matam seus familiares, estabelecem um bloqueio e,
por fim, impõem uma condição: Todos devem ficar confinados em um só andar. Os
demais são loteados para outros moradores.
Como se está
em um Estado-nação, lavra-se escritura de que aquele andar é “legalmente” da
União e você pode tão-somente usá-lo. Passam os anos e os invasores decidem que
um andar é demais e reduzem novamente o espaço. Aqueles seus parentes
resistentes, não amanhecem, são mortos ou transladados para lugares distantes
ou largados a esmo. Do processo participam lideranças políticas, antigos
invasores, seus parentes e aliados, além de um movimento articulado do
colonato. Durante décadas, três governadores são aclamados e liberam o despejo
violento à Brigada Militar, bugreiros e assassinos.
O
Congresso Nacional acha uma demasia e abre uma CPI. Por você não ter nenhum
parente na magna casa, o silêncio continua habitando a sua alma, a sua dor,
indignação, e o país em que você vive permanece mudo, apenas alguns resmungos
representam sua tragédia. Maculado o país com a chancela da barbárie contra a
sua família, envergonhado pela cumplicidade do Estado-nação, depois de viver
uma ditadura militar que o dilacera, resolve amenizar alguns problemas.
Convoca
uma Constituinte e escreve uma nova Constituição. Nela, reconhece a sua
tragédia, mas permite que você só pode retornar para o andar de confinamento. O
restante do prédio, construído por incontáveis gerações de sua família já não
lhe pertence. Os demais locais, cemitérios, lavouras, etc., você pode
reivindicar apenas sob determinadas condições altamente comprobatórias. Mas
como a sua família tradicional registra sua existência pelas memórias, pelos
documentos materiais de seus artefatos nos territórios, sua probabilidade de
sucesso é pequena. Mas você acreditou que como o país chegou ao Estado de
Direito a reocupação do andar do prédio era líquido e certo. Ledo engano.
Tomemos o
processo acima como chave de entendimento. Como você se sentiria? Agora pegue o
seu sentimento e imagine, saia da esfera da suposição e entre no mundo real. E
coloque no seu lugar um índio. Troque o prédio por um território. Substitua os
apartamentos do andar de confinamento por reservas indígenas. Constate que os
apartamentos ou peças perdidas neste andar são reservas usurpadas ou reduzidas.
Mais surpreendentemente, parentes que acreditava exterminados emergem das
matas, sobreviventes e/ou alguns de seus descendentes retornam de longínquos
lugares para onde foram removidos. E imagine que você e seus parentes andam
desesperadamente em busca de seu direito, já não mais com a escritura de um
prédio, substituída pela de um andar. Porém os outros “condôminos” também estão
com escrituras chanceladas por governantes que ilegal e unilateralmente não
respeitaram as decisões legítimas do Estado, em seus níveis federal e estadual.
A única
saída que você tem para não se indignar, para não vomitar de asco, é imaginar
que você não é mais humano, ou você é um subumano; que você não pertence mais a
civilização. Quando a alteridade deixa de fazer parte da sua vida é assim que
você pensa, age e, o pior, fala, propagandeia. O mundo é você e a sua mente. Os
outros não existem, ou estão em cotação condenável, regida pelos seus paradigmas.
Você é o modelo para toda a terra. Dogmaticamente, o mundo é a sua perspectiva.
Conforme
neurocientistas, a mente é o cérebro funcionando. No Rio Grande do Sul – e em
muitas regiões do Brasil -, na questão indígena, o ódio é o combustível que
move esta engrenagem. O capitalismo grileiro, produtivista e agroexportador,
conquistou a mente da maioria da população. Na região colonial, norte e
noroeste do estado, seu imaginário abjeto possui ainda componentes racistas.
Empedrado em um conceito produtivista, aos indígenas, como sobreviventes,
vítimas de etnicídios, não se atribui nenhum direito à história; agigantam-se
contra eles as forças que negam-lhes a possibilidade de futuro; aos mais
destroçados, impedem que possam juntar os pedaços e reinventarem-se como povos.
Tau Golin
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