Como o administrador esperto (cf. Lc 16,1-9)
Sejamos espertos e diligentes em fazer amigos
Em Lucas 16,1-9 temos uma história singular na qual,
diversamente daquelas mais apreciadas nos ambiantes devotos, o
personagem proposto como modelo inspirador se caracteriza pelo desperdício e
pela desonestidade. Jesus prescinde claramente de qualquer juízo sobre
sua conduta e se concentra unicamente naquilo que lhe parece digno de admiração
e imitação: aquele homem se mostra muito esperto e inteligente na conquista de
amigos, mesmo lançando mão de meios ilícitos. Aqui Jesus não nos
convida à simplicidade das pombas mas à astúcia das serpentes... E a
inteligência se evidencia no uso de bens, e a burrice se mostra no contrário.
E se ousássemos dar a este administrador o cargo de
conselheiro especial em nossas
paróquias, dioceses, comunidades ou congregações?! Se o convidássemos como
confessor ou orientador espiritual? Certamente ele nos diria algumas coisas
interessantes...
Para começar, ele nos diria que o bom andamento das
nossas intituições não depende apenas de “questões espirituais”, mas também do
uso que fazemos dos recursos materiais concretos dos quais dispomos. E para nos
convencer através da Palavra, talvez ele nos oferecesse uma lectio divina muito particular desta
parábola, sublinhando que quem nos dá acesso às “moradas eternas” são os amigos
que fazemos com os nossos bens.
Dir-nos-ia que o ingresso na festa do esposo que chega
depende da reserva de óleo dos discípulos prudentes. Ensinar-nos-ia que a
participação na alegria do Senhor que pede conta dos talentos depende do modo
como os servos os empregaram, arriscando a si mesmos. Insistiria também que o
lugar à direita do juiz é reservado àqueles que repartiram o pão, a água, a
casa e as vestes com os seus irmãos menores.
E talvez nos recordaria que que no Evangelho não
encontramos uma orientação para não nos ocuparmos do dinheiro, mas para
relacionarmo-nos com ele corretamente, com critérios evangélicos. E talvez
terminasse assim: “Não pensem que a espiritualidade consista em
desinteressar-se das coisas materiais ou no refúgio numa esfera separada das
coisas da terra. O mundo inteiro é confiado ao vosso talento, habilidade e
competência...” Talvez isso tudo nos levasse a deixar a sala pensativos,
perguntando-nos como poderemos ser espertos em fazer amigos...
De fato, como religiosos fizemos muitos progressos
organizativos e pastorais, mas ainda conservamos resquícios e entulhos de antigos
messianismos e iluminismos, e discretas (mas nem tanto!) atitudes
de superioridade em relação ao clero, aos leigos, às demais igrejas. E
somos mais habituados a dar que a receber, a ensinar que aprender, a falar que
escutar. Olhamos os outros mais como filhos e filhas que como verdadeiros irmãos
e irmãs, amigos e amigas com quem se pode manter relações de reciprocidade.
“Fazer amigos” não faz parte das nossas prioridades de vida... Somos formados
para ser agentes e professores, mestres e pregadores, formadores e
conselheiros... Mas a Palavra de Deus nos pede para fazer amigos, nos convida a ser
condiscípulos ao lado de outros na comunidade cristã, a escutá-los não como
especialistas mas como pessoas de coração humilde e aberto...
O melhor curso de introdução à Bíblia que podemos
fazer nos é oferecido pelo Evangelho que nos inicia na arte da escuta
de Jesus, no seu modo de reconhecer “o dialeto” ou “a gramtática” do
Pai nas pessoas que não significam nada para o mundo. Escutando a voz silenciosa dessas
pessoas, Jesus se familiarizou com a linguagem dos sinais mediante a qual Deus
se comunica com ele, e sintonizou com a sua frequência:
·
Percebeu que o Pai
lhe falava e chamava através daquela mulher encurvada, e foi em seu socorro (Lc
13,10-17);
·
Escutou o grito do
Pai na dor da mulher que sofria de hemorragia, e fez fluir em direção a ela a
força restauradora que vem de Deus pai (Mc 5,25-34);
·
Encheu-se de
alegria ao escutar no relato missionário dos discípulos os sinais da
preferência de Deus pelos pequenos (Lc 10,21-22);
·
Descobriu na
súplica da mulher sírio-fenícia que o Pai lhe pedia para ir além das ovelhas
perdidas do povo de Israel, e obedeceu-lhe curando a menina (Mt 15,21-28);
·
Deixou-se atrair
pelo chamado daquele personagem singular que subiu numa árvore para vê-lo, e se
auto-convidou para visitá-lo (Lc 19,1-10)...
Contemplando os encontros de Jesus com o povo,
aprendemos pouco a pouco o que significa conhecer a Escritura e alimentar-se da
Palavra. Nesses encontros, Jesus se
comporta como um autêntico escriba: ele não se dedica a pesquisar e destrinchar
velhos manuscritos, mas a traduzir, decodificar, discernir, intuir e
compreender a Palavra de Deus que lhe chega mediante os clamores silenciosos,
as súplicas, a gratidão ou os lamentos que brotam do ventre das pessoas que
se aproximam dele. Sua missão consiste em ser para elas alguém capaz de
compreendê-las e responder-lhes, em ser um hermeneuta sábio e capaz de
interpretar aquilo que elas sequer eram capazes de expressar claramente...
Se desejamos ser recebidos “nas moradas eternas” junto
com o administrador esperto, precisamos começar a ser desde agora
especialistas em escuta e humanidade, peritos no olhar e na atenção seletiva
para fazer muitos amigos nos lugares onde tanta gente “sem eira nem
beira” pode nos ensinar a balbuciar a linguagem secreta do Evangelho. São
eles que nos ajudam a escutar a Palavra, porque dela são os portadores
anônimos. E então escutaremos uma versão maravilhosa e adaptada de
Mateus 25,31-46: “Vinde, benditos do meu Pai, porque me descobristes naqueles
que não tinham voz e me escutates; porque vos falei através de quem não tinha
palavra nem direitos, e me respondestes...”
Isso tudo não é exagero militante ou espiritualista! O
magistério da Igreja reafirmou recentemente que, embora a Sagrada Escritura
contenha de fato a Palavra divina, esta precede e excede aquela (cf. VD,
17); que a Palavra divina se exprime (no presente!) verdadeiramente nas
palavras humanas (cf. VD, 11); que a Bíblia é precisamente a voz do povo de
Deus peregrino, e é somente no interior da fé deste povo que estamos em
condições de entender a Sagrada Escritura (cf. VD, 30). Por isso, é necessário
respeitar a natureza específica do texto sagrado e evitar leituras arbitrárias,
subjetivantes ou espiritualizantes.
Verbum Domini afirma também que a revelação está “profundamente
radicada na história” e representa várias e sucessivas etapas da educação do
povo de Deus (cf. VD, 42), e que “o sujeito vivo da Escritura é o povo de Deus”.
E é por isso que a Bíblia deve ser lida comunitariamente, na perspectiva do povo,
que é seu sujeito original e permanente. “A Palavra está sempre viva no sujeito
vivo” (cf. VD, 86), e não no texto frio ou nas explicações doutrinárias!
Permanecendo verdade que precisamos ler e interpretar
a Palavra de Deus em comunhão com a Igreja (com todas as testemunhas desta
Palavra, começando pelos primeiros pais e chegando aos santos e santas de hoje
e ao Magistério eclesial), é também certo que “os pastores são chamados a ouvir
os pobres, a aprender deles, a guiá-los na sua fé e a motivá-los para
serem construtores da própria história (cf. VD, 107) social e eclesial. Sim,
ouvir os pobres, porque neles ressoa a Palavra viva de Deus!
Finalmente, Santo Agostinho nos recorda: a
plenitude da lei e das Escrituras é a vivência do amor. “Por isso, quem
julga ter compreendido as escrituras ou uma parte delas mas não se empenha a
construir, através da sua inteligência, este duplo amor a Deus e ao próximo, demonstra
que ainda não as compreendeu” (VD, 103). Fazer amigos, construir fraternidade, reunir
todos os homens e mulheres na única família do Pai ou num povo unido e
solidário: eis a urgência e a finalidade das Escrituras, mas também a
prova de que a compreendemos realmente!
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência
“Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è
giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia
Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências
da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii
Gaudim, do Papa Francisco)
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