Como os pescadores cansados (cf. Lc 5,1-11):
em atenção à Palavra, lançamos de novo as redes
Sabemos todos que a matáfora que fala de Jesus como ‘mestre’ domina os evangelhos e todo o Novo Testamento. De fato, uma das principais atividades de Jesus durante o seu ministério foi ensinar as multidões e aos discípulos. ‘Mestre’ é o título mais utilizado tanto pelo povo como pelos discípulos para se dirigir a Jesus. Diz-se frequentemente que ele ‘ensinava’ como quem tinha autoridade (Mt 7,29). E nós, religiosos e ministros ordenados, nos entendemos como pessoas chamadas a prosseguir no tempo o ensinamento de Jesus.
Infelizmente
esta ênfase em Jesus Mestre nos levou
a praticamente esquecer que Jesus é também ouvinte, aprendiz, discente. É claro
que as referências bíblicas a essa dimensão da sua vida não são muito
numerosas, e a maior parte delas é indireta. Mas existem e merecem ser levadas
em conta. Recordemos alguns exemplos:
· Lc 2,41-52: Jesus senta em meio aos
doutores, escutando e fazendo perguntas;
desce a Nazaré e permanece obediente
(ob-audire!) aos pais e, assim, cresce
em sabedoria e graça diante de Deus e dos homens;
· Lc 4,14-21: Jesus frequenta a Sinagoga e busca nas escrituras sagradas inspiração
e orientação para discernir a própria missão;
·
Mt 8,5-13: Jesus se mostra admirado e surpreso diante da fé de um
pagão;
·
Mc 6,1-6: Jesus se mostra admirado e surpreso com a falta de fé
dos conterrâneos;
· Jo 15,15: Jesus diz que comunica aquilo
que ouve e aprende do Pai, que é
mestre enquanto permanece discípulo;
· Jo 5,19: Jesus diz que aprende do Pai, que só faz aquilo que vê
o Pai fazer, aquilo que aprende dele;
· Jo 8,26-28: Jesus diz que anuncia ao mundo
aquilo que ouviu do Pai, que fala
apenas aquilo que o Pai lhe ensina;
·
Hb 5,8: Mesmo sendo filho de Deus, Jesus aprendeu a ser obediente através
dos sofrimentos.
E não
podemos esquecer que Jesus rezava constantemente, retirado. O que é a oração senão o exercício de abrir
horizontes, compreender e acolher o caminho de acordo com o querer do Pai?
Jesus viveu em primeira pessoa aquilo que o profeta Isaías escreveu: “O Senhor
Javé me deu capacidade para falar como um discípulo... Toda a manhã ele faz
meus ouvidos ficar atentos para que eu possa ouvir como discípulo...” (Is
50,4-11). O Papa Francisco lembra que este olhar de discípulo é essencial
também na contemplação e discernimento da realidade (cf. EG 50).
Prestar atenção
à Palavra de Deus e ao Deus que fala e dialoga conosco: este será o fio
condutor destes dias de exercício espiritual, de silêncio e de partilha de
vida. E podemos começar trazendo à memória o acontecimento que Lucas nos
apresenta no capítulo 5 (versos 1-11) do seu livro. Jesus está na margem do
lago de Genesaré, a multidão se aperta ‘para ouvir a Palavra de Deus’, um grupo de pescadores lava as redes.
Suas barcas estão ancoradas, seguras e vazias. Jesus entra na barca de Simão,
pede que ele se afaste da margem e, de dentro da barca vazia, ensina as multidões. Depois pede que
Simão avance para águas mais profundas e lance de novo as redes. E é unicamente
‘em atenção à Palavra de Jesus’ que
Pedro tenta de novo. Ele passa de pescador que sabe tudo e não tem nada a
aprender a discípulo que faz da Palavra do Mestre seu alimento. A atitude de
escuta é o ponto de partida para o caminho da fé.
É esta
inaudita fecundidade da Palavra que estimula e sustenta o subsequente diálogo
de Jesus com Pedro. Diante do resultado inesperado da pescaria, Pedro se joga aos
pés de Jesus, reconhecendo os próprios limites e incapacidades: “Senhor,
afasta-te de mim, porque sou um pecador...” Mas Jesus, vendo o espanto que
tomara conta de todos, procura recompô-los: “Não tenham medo! De hoje em diante
vocês serão pescadores de homens...” Pedro descobre a missão de reunir homens e
mulheres para conduzi-los à vida abundante. E então os barcos ficaram
esquecidos na praia e, com Jesus, aqueles pescadores buscaram outros mares. Tudo
por causa daquela Palavra...
Será que
aquele punhado de gente que começou a seguir os passos de Jesus, chamada e
atraída pela sua Palavra, tinha consciência de que se tornariam ícones nos
quais fixaríamos o nosso olhar? O que teriam pensado e feito se soubessem que
nos espelharíamos neles, nos altos e baixos do percurso que fizeram, nos
entusiasmos e desânimos deles, nas alegrias e medos da caminhada deles? Se
soubessem disso, talvez não tivessem discutido sobre quem era o maior, não
teriam abandonado Jesus no calvário e Tomé não teria dito “se eu não colocar o
meu dedo na marca dos pregos, eu não acreditarei!” (Jo 20,25). Mas, para nossa
sorte e consolação, eles discutiram, fugiram, desanimaram e mereceram a
advertência de Jesus: “Como vocês custam para entender e como custam a
acreditar em tudo o que os profetas falaram!...” (Lc 24,25). E também para o
nosso bem, foram capazes de dizer um dia: “A quem iremos, Senhor? Tu tens Palavras de vida eterna!” (Jo
6,68).
Mas não é
apenas sobre este grupo concreto e
histórico de homens e mulheres movidos pela Palavra que fixaremos nossa
atenção. Somos convidados a olhar para outros
personagens que só aparecem nos evangelhos graças à imaginação de Jesus.
Pedro, Madalena, Mateus, Zaqueu, Bartimeu e tantos outros personagens tiveram
uma vida própria antes de encontrar Jesus. Mas os personagens que povoam as
parábolas só ‘existem’ porque foram ‘chamados’ pela sua Palavra e ‘criados’ por
ela. Nenhum deles, com exceção de Lázaro, têm nome próprio, como se
estivessem esperando assumir o nosso nome
para se transformar em ícones que, ao serem contemplados, nos ensinam belas
lições de vida.
Graças a
Deus, há cinquenta anos o Concílio Vaticano II ‘democratizou’ o acesso à
Palavra de Deus e pediu que o povo de Deus tivesse acesso a ela e que o Magistério
se colocasse a seu serviço. Nela e por ela, o próprio Deus estabelece um
diálogo vivo conosco e nos constitui como povo da Aliança, peregrino do seu
Reino. Recentemente, acolhendo a contribuição do Sínodo dos Bispos, Bento XVI confirmou: não existe nada mais
prioritário que abrir ao homem de hoje o acesso a Deus, ao Deus que fala e nos
comunica seu amor para que tenhamos vida abundante (cf. Verbum Domini, 2). A Palavra de Deus é fundamento e base da
espiritualidade cristã (VD 72; 121), o coração da vida cristã
(cf. VD, 3) e nos possibilita um novo
olhar sobre o mundo (cf. VD, 108).
É claro
que não foi sempre assim! Nos primeiros séculos do cristianismo, as comunidades
cristãs se guiavam basicamente pela Palavra de Deus. Na patrística, Biblia e
Tradição andavam de mãos dadas. A título de exemplo: escrevendo a Eustáquio, no
ano 420, São Jerônimo insistia: “Lê com frequência e aprende o melhor que
possas. Que o sono te encontre com o livro nas mãos e a página sagrada acolha o
teu rosto vencido pelo sono.”
Mas, no
século XIII, o movimento dos cátaros começou a interpretar alguns livros da
Bíblia de modo próprio e polêmico, o que levou o Concílio de Toulouse (1229) a
proibir o uso de traduções vernáculas (esta proibição foi revogada em 1235,
pelo Concílio de Tarragona). Jonh Wyclife (1320-1384) afirmava que somente a
tradução inglesa da Bíblia era regra de fé. O movimento dos valdenses começou a
interpretar as escrituras numa perspectiva subjetiva e a negar alguns dados da
fé católica tradicional. Lutero e seus seguidores definiram a Biblia como única
autoridade para orientar e julgar a fé e os costumes. Então, o Concílio de Trento reagiu, confirmando a
autenticidade e a inerrância da tradução vulgata
da Bíblia, rejeitou a livre interpretação, estimulou os estudos bíblicos nos
colégios e conventos, incluiu novos livros no cânon católico (Tobias, Judite,
Sabedoria, Baruc, Eclesiástico e Macabeus). Mas declarou também que somente os bispos e inquisidores poderiam
autorizar a leitura da Bíblia em vernáculo. Consequentemente, os católicos
se afastaram da Bíblia e esta perdeu sua influência salutar sobre a piedade e a
espiritualidade.
Livre das
tensões com o protestantismo, o jansenismo e algumas heresias, o século XX
trouxe consigo significativas mudanças em relação ao uso da Bíblia. Pio X
(1903-1914) sugere o uso constante da Sagrada Escritura na liturgia. Bento XV,
em 1920, recomenda aos fiéis a leitura diária dos evangelhos. Em 1940, Pio XII
recomenda a difusão da Bíblia entre os fiéis, nas línguas vernáculas autorizadas.
E o Vaticano II falará da mesa da
Palavra ao lado da mesa da Eucaristia; recordará que é preciso venerar a
Sagrada Escritura como regra suprema da fé, e que ignorá-la significa ignorar
Jesus Cristo; e pedirá que se faça a Bíblia chegar ao povo de Deus.
Tudo isso
é muito importante, mas precisamos ter presente que a Bíblia não pode ser
simplesmente identificada sem mais com a Palavra de Deus. A Palavra de Deus
desborda o livro, embora nele se expresse de modo importante. Temos também a
tradição viva da Igreja e os sinais dos tempos. A Palavra de Deus precede e
excede a Sagrada Escritura (cf. VD, 17). E o estudo da Bíblia, graças a
Deus hoje muito estimulado, não é tudo. Por isso, aqui estamos para, como Maria
de Nazaré, crescer na familiaridade com a Palavra de Deus, entrar nela,
indentificarmo-nos com ela (cf. VD, 28). Mas, para tanto, precisamos fazer as
pazes com o mundo, amá-lo e escutá-lo, habitá-lo guiados pela fé.
(Este texto é praticamente uma tradução
livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj,
publicado pela União dos Superiores
Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola
di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59.
Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum
Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)
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