Como os operários da última hora (Mt 20,1-16):
Deixemo-nos
fascinar pela gratuidade de Deus
Imaginemos a cena dos discípulos que, depois de
estudar a parábola dos diaristas
contratados para trabalhar na vinha (Mt 20,1-16), agora sozinhos com o
mestre, pedem que lhes explique o sentido. Talvez algum deles ousasse lembrar que,
noutra versão conhecida por muita gente, quando os primeiros trabalhadores
protestaram ao ver aquilo que os últimos haviam recebido, o patrão respondera:
“Em apenas uma hora, aqueles últimos contratados produziram mais que vocês
durante um dia inteiro...” Este sim seria um final sensato e justo, pois
evidenciaria o mérito e a premiação pelo trabalho, enquanto que na insólita
versão de Jesus isso sequer merece uma consideração do patrão (imagem velada de
Deus Pai), que prefere concluir com uma pergunta: “Por acaso não posso fazer o
que eu quero com aquilo que me pertence? Ou você
está com ciúmes porque eu estou sendo generoso?” (Mt 20,15).
Podemos também imaginar a seguinte resposta de Jesus:
“E se vocês fizessem parte do grupo de trabalhadores da última hora e
recebessem o mesmo que os outros que labutaram o dia inteiro? Será que no dia seguinte
vocês não chegariam mais cedo que os outros? E não tanto para acumular méritos,
mas por
pura gratidão, simplesmente porque a bondade do patrão conquistara e envolvera
vocês naquela aspiral de gratuidade...” Um tal comentário de Jesus
evidenciaria a mesquinhez de tantos, começando por nós mesmos, que murmuram
interiormente: “Se eu fosse um daqueles que ganharam uma moeda de prata tendo trabalhado o dia
inteiro, considerando a generosidade do patrão, no dia seguinte eu também
apareceria às cinco da tarde...”
Como a eles, também a nós a Palavra empurra para além dos
limites que estabelecemos, e nos supera com a sua novidade. Quando
lemos e meditamos o Evangelho, o maravilhoso toca a nossa existência, como um
cometa que ilumina com sua órbita de luz um outro planeta escuro. E então aquilo que nos parecia razoável acaba sendo
desafiado por propostas mais verdadeiras que, como numa epifania, rompem o
nosso horizonte limitado e deixam entrever possibilidades inéditas e
apaixonantes.
Sabemos que muitas vezes Jesus se expressa com um
lúcido realismo e até com um certo pessimismo, como na passagem seguinte: “Mas
Jesus não confiava neles, pois conhecia a todos. Ele não precisava de
informações a respeito de ninguém, porque conhecia o homem por dentro” (Jo 2,24-25).
Mas, ao mesmo tempo e de uma forma aparentemente inexplicável, Jesus
é movido por uma ilimitada confiança na capacidade de reação e de mudança da
pessoa humana. É como se ele não houvesse perdido e ingenuidade
infantil e quisesse despertar em nós atitudes utópicas. Suas propostas contêm
um grande potencial transformador, e quem as escuta e acolhe, renasce em Deus
recebe o poder de se tornar discípulo. Nas suas propostas palpita um dinamismo
que pouco a pouco transfigura nossas idéias sobre Deus e as faz semelhantes às
dele.
Se a Palavra anunciada por Jesus nesta parábola
completou seu trabalho, podemos imaginar que aqueles diaristas que haviam
trabalhado apenas uma hora e recebido uma recompensa desproporcional começaram
a conhecer o coração do patrão. E que tal se agora déssemos a eles a
Palavra e escutássemos o que eles querem nos dizer?
“Deixem-se seduzir e fascinar por este Deus
privado de atributos divinos (imutabilidade, impassibilidade,
inacessibilidade, onisciência, onipotência, etc.) e dominado por emoções
autenticamente humanas: a inquietação de uma pessoa zelosa, cuidadosa
com aquilo que lhe pertence (uma moeda, uma ovelha), incapaz de aceitar a
mínima redução das suas posses, uma pessoa que vincula sua alegria ao
reencontro daquilo que perdeu...” (cf. Lc 15,1-10).
“Não se surpreendam ao descobri-lo semelhante
a um pai agitado e comovido, que deixa de lado as responsabilidades da
casa e fica do lado de fora, procurando e esperando, como alguém que perdeu o
centro da vida e, por isso, se sente transtornado...” (cf. Lc 15,11-32).
“Observem que ele é como um rei sem poder nem autoridade,
incapaz de convencer seus próprios emissários, exposto à desilusão e ao fracasso
diante da recusa ao convite para o seu banquete, mas surpreendentemente feliz em
acolher à sua mesa aqueles que vagam pelas estradas...” (cf. Mt
22,1-14; Lc 14,15-24).
“Surpreendam-se ao saber que ele é também semelhante a
um investidor ousado e temerário que corre o risco de dividir seu capital e
confiar sua administração a pessoas que não lhe oferecem garantias de
uma boa gestão... (cf. Lc 16,1-8; Mt 25,14-30). Ou como um fraco agricultor,
demasiadamente paciente e instável nas decisões, que não aceita a sugestão de
arrancar o joio do meio do trigo (cf. Mt 13,24-30) e se deixa convencer pelo vinhateiro
a não cortar a figueira que não está dando fruto...” (cf. Lc 13,1-9).
“Abram-se às consequências de crer em um
Deus que é um observador parcial, que vê aquilo que a maioria não vê:
as pessoas feridas e abandonadas nas margens das estradas (cf. Lc 10,30), a
porta da casa onde ninguém enxerga Lázaro (cf. Lc 16,20), os lugares onde os
mais fracos são maltratados...” (cf. Mt 24,49).
Como os discípulos de Jesus, lentos e resistentes em
aceitar um Deus assim insólito, provavelmente os diaristas que fizeram
a experiência da novidade absoluta de Deus terão necessidade de muito tempo e
de uma paciente catequese para eliminar as velhas idéias sobre Deus que
povoavam seu imaginário e aceitar que ele não se identifica com as idéias e
doutrinas que elaboraram sobre ele. Mas se nós permitirmos que a Palavra de
Deus inicie e prossiga seu trabalho em nós, ela acabará por nos revelar também
quem somos nós aos olhos desse Deus maravilhoso. Demos de novo a
Palavra àqueles gratos trabalhadores da última hora...
“Não contabilizem méritos e créditos sobre o vosso
empenho no trabalho. Deixem que Deus surpeenda vocês com seu amor
desmedido e os encha de um amor que ultrapassa todos os méritos...”
“Vocês são uma terra rica de sementes
destinadas a dar frutos (cf. Mc 4,3-9). Existem em vocês gérmens de vida que o
olhar do Pai sabe reconhecer (cf. Mc 13,28-29). Aquilo que ele semeou em vocês
possui tal força de crescimento que germina e cresce fora do controle de vocês
(cf. Mc 4,26-29). Não se preocupem com o joio misturado ao trigo, pois o Pai se
importa apenas com aquilo que em vocês há de bom...”
“É verdade que vocês são pequenos e insignificantes,
mas esta
pequenez esconde uma força capaz de transformar-se numa grande árvore (cf.
Mc 4,30-32). Talvez vocês cheguem à sala do banquete cobertos de trapos e de pó,
mas serão comensais convidados e queridos do rei, que vos espera com a mesa
preparada...” (cf. Mt 22,1-14).
“Alegrem-se de possuir
dons e talentos para investir (cf. Mt 25,14-30) e façam amigos que
acolherão vocês nas moradas eternas, porque vocês têm nas mãos aquilo em que
vocês apostaram tudo: pão, água, teto e vestes para partilhar com aqueles que
são privados de tudo (cf. Mt 25,31-46). Vocês se perdem, se afastam, dormem,
endurecem o coração, mas alguém acredita na capacidade que vocês têm
de se deixar encontrar e voltar para casa, de vigiar e de ser misericordiosos,
de transformar os débitos em amor. E se ele ama e deseja vocês, procura
e espera tanto, é porque para ele vocês são preciosos...”
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)
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