Como o negociante de pérolas... (Mt 13,44)
Não deixemos que
nos roubem a alegria do Evangelho!
Tanto o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo como
a vinda gratuita do seu reino são motivos de intensa alegria. Que Deus reine,
isso é motivo de alegria! Maria já anunciava isso no seu cântico profético
diante de uma Isabel profundamente comovida.
“O reino dos
céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o descobre e o esconde de
novo. Cheio de alegria, ele vai, vende tudo o que possui e compra esse campo”
(Mt 13,44). Na sua pobreza – ou seria generosa gratidão?! – este homem anônimo decide
vender tudo para ficar com a única coisa que lhe parece verdadeiramente
preciosa, mesmo que sua existência e seu valor seja escondido ou irrelevante
aos olhos de muitos... A descoberta desestabiliza a vida desse personagem sem
nome. O tesouro lhe parece tão valioso que ele não receia fazer coisas novas,
arriscadas e dispendiosas para adquiri-lo. E nisso experimenta a alegria dos
magos ao encontrar Jesus (Mt 2,10) e a alegria de quem acolhe e entende a
Palavra de Jesus (Mt 13,20). A descoberta do Reino é uma notícia boa que traz
profunda alegria e requer a relativização de todas as demais prioridades.
O Papa Francisco insiste que “a alegria do Evangelho é
tal que nada e ninguém no-la poderá tirar” (EG 84). E pede: “Não deixemos que
nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83), pois somos tentados por uma
espécie de “psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos
em múmias de museu”; por um “pragmatismo cinzento da vida
cotidiana” que, sob uma aparente normalidade, deteriora a fé e a transforma em
mesquinhez” (idem). Assim, desiludidos com a realidade, com a Igreja e consigo
mesmos, os cristãos acabam apegando-se a uma “tristeza melosa, sem
esperança”.
Já no início da sua Exortação, o Papa Bergoglio
assinala que “o grande risco do mundo atual, com sua múltipla a avassaladora
oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do
coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se
houve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem
fervilha o entusiasmo de fazer o bem” (EG 2).
Para o Papa Francisco, uma das tentações mais sérias
que sufocam o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos
transforma em pessoas pessimistas lamurientas e cristãos desencantados
com cara azeda (cf. EG 85). Ninguém vai à luta se a considera de antemão uma
causa perdida. E o derrotismo é irmão da tentação de separar prematuramente o
trigo do joio, com todos os riscos que isso comporta... E podemos acabar
transformando o confessionário, lugar por excelência da misericórdia, em uma
espécie de câmara de tortura (cf. EG 44).
Uma vida eclesial missionária deve ser capaz de evitar
a obsessão “pela transmissão desarticulada de uma imensidade de
doutrinas que se tentam impor à força de insistir” (EG 35). Seu anúncio deve se
concentrar naquilo que é “mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo
tempo, mais necessário”, pois mesmo procedendo da mesma fonte divina, algumas
verdades são mais importantes porque exprimem mais diretamente o coração do
Evangelho (idem, 36). Ademais, o anúncio deve acompanhar com paciência e
misericórdia as etapas de crescimento das pessoas.
Precisamos salvar o núcleo gracioso e libertador da
novidade cristã. “O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que
nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar
o bem de todos. Este convite não há de ser obscurecido em nenhuma circunstância!
Todas as virtudes estão a serviço desta resposta de amor. Se tal convite não
refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se
tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso maior perigo; é que então não
estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações
doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas” (EG 39). Quando
nosso anúncio é fiel ao Evangelho, manifesta-se claramente a centralidade de
algumas verdades e que a moral cristã não é uma ética estoica, é mais que uma
ascese, que uma filosofia prática ou que um catálogo de pecados e proibições.
Mesmo com o risco de se alongar demais, é importante
mencionar também a doença espiritual que o Papa Francisco chama de “mundanismo
espiritual” (cf. EG 93-97). Esta doença se mostra em muitas atitudes
aparentemente opostas: cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do
prestígio da Igreja, sem a preocupação pela encarnação do Evangelho no povo e
na história; fascínio pela ostentação de conquistas sociais e políticas; vanglória
ligada a gestão de assuntos práticos e atração por dinâmicas de autoestima e
realização autorreferencial; vida social plena de viagens, reuniões, jantares e
recepções; funcionalismo empresarial carregado de estatísticas, planos e
avaliações que não beneficiam o povo mas a organização eclesial. “Em
qualquer um dos casos, não traz o selo do Cristo encarnado, crucificado
e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos
que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já
não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma autocomplacência egocêntrica”
(RG 95).
Esta doença se esconde por trás de aparências de
religiosidade e de amor à Igreja, mas não passa de busca de bem-estar pessoal e
de glória humana, de defesa dos próprios interesses. Este mundanismo espiritual
se alimenta, por um lado, do fascínio por uma fé fechada no subjetivismo, de
conhecimentos e experiências que confortam e animam, mas acaba enclausurando a
pessoa nos próprios pensamentos e sentimentos; por outro lado, se enraíza num
certo imanentismo antropocêntrico, confia unicamente nas próprias força e leva
ao sentimento de superioridade por cumprir determinadas normas ou por ser fiel
a normas de um catolicismo do passado.
É neste húmus que se nutre a “vanglória de quantos se
contentam em ter algum poder e preferem ser generais de exércitos
derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar”
(EG 96). Tais cristãos olham os demais de cima e de longe, rejeitam a profecia
dos irmãos, desqualificam quem os questiona, ressaltam os erros alheios e vivem
obcecados pela aparência. “É uma tremenda corrupção, com aparências de
bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si
mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos
livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais e pastorais!” (EG 96) Eles
trocaram o tesouro precioso por bolsas corroídas pelas traças!
Mas o Papa Francisco sublinha que os males do mundo, e
mesmo os da Igreja, “não deveriam servir como desculpa para
reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para
crescer. (...) A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser
transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio.” (EG, 84). Para
ele, a cura deste mundanismo espiritual asfixiante vem da abertura ao Espírito Santo,
que nos liberta da centração em nós mesmos, do esconderijo numa aparência
religiosa vazia de Deus (cf. EG 97). Trata-se de trocar tudo pela
despojada alegria de ter encontrado o precioso tesouro do Evangelho de Deus!
Segundo a CNBB, no contexto brasileiro o que preocupa
é o surgimento de “grupos fechados em seus ideais, sem comunhão com a diocese e
resistentes ao diálogo com o mundo”. Multiplicam-se pequenas associações de
interesses religiosos particulares que, frequentemente, “promovem certo
fundamentalismo católico”, comprometendo o conceito de Igreja-povo de Deus
(Doc. 100, 34). Mas há também o problema de paróquias ou capelas que funcionam
mais como instituição que como comunidade de discípulos de Jesus Cristo (idem,
35).
O fato é que o excessivo cuidado com as estruturas nos
levou a formas de ativismo estéril. “A primazia do fazer ofuscou o ser
cristão. Há muita energia desperdiçada em manter estruturas que não respondem
mais às inquietações atuais (Idem, 45). Mas também aqui poderíamos aplicar a
advertência de Francisco: a missão não é um negócio, nem uma atividade
empresarial! (cf. EG 279).
Por isso, sem negar o valor do que já foi realizado, a
CNBB diz que precisamos aprender e a agir e responder às
inquietações novas. Isso pode significar: tornar as estruturas
paroquiais mais missionárias; tornar a pastoral ordinária mais comunicativa e
aberta; colocar os agentes pastorais em atitude constante de saída; e assim
favorecer uma resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece sua
amizade (cf. idem, 46; EG 27).
Daí a necessidade de redescobrir, degustar e proclamar
a alegria original e tremendamente libertadora do Evangelho. E isso antes de
tudo porque Deus não se cansa de nos perdoar, carrega-nos nos seus ombros.
“Ninguém nos pode tirar a dignidade que esse amor infinito e inabalável nos
confere” (EG 3). E esse amor é salvífico! O AT preanuncia a alegria da salvação,
que seria gratuita e plena em Jesus Cristo. “Multiplicaste a alegria,
aumentaste o júbilo... Exultai de alegria!” (Is 9,2; 12,6) “Exulta de alegria,
ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu
povo e se compadece dos desamparados” (Is 49,13). “Exulta de alegria, filha de
Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a
ti...” (Zc 9,9).
Esta alegria do Evangelho marca os primeiros capítulos
do evangelho de Lucas. “Não tenha medo, Zacarias!... Você terá alegria e
felicidade, e muitos se alegrarão com o nascimento dele” (Lc 1,13-14).
“Alegre-se, cheia de graça: o Senhor está com você!” (Lc 1,28). “Quando Isabel
ouviu a saudação de Maria, o bebê pulou de alegria em seu ventre” (Lc 1,41).
“Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador...” (Lc 1,47). “Os vizinhos e
parentes ouviram dizer que o Senhor havia tido misericórdia para com Isabel, e
se alegraram com ela” (Lc 1,58). “Não tenham medo! Pois eis que lhes anuncio a
boa notícia, uma grande alegria para todo o povo...” (Lc 2,10). Mas é também a
alegria que enche a terra e o céu pela acolhida que Deus dispensa aos pecadores
e excluídos. “Alegrem-se comigo, porque encontrei minha ovelha perdida...
Haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por
noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15,6-7). “Alegrem-se
comigo, porque encontrei a moeda que eu tinha perdido... Da mesma forma, há alegria
entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,9-10). “Mas
era preciso festejar e se alegrar, porque este seu irmão estava morto e voltou
a viver, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32).
A alegria do Evangelho é verdadeira e duradoura, mas
discreta e serana. “É a alegria vivida no meio das pequenas coisas da vida
cotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai” (EG 4). Como o
próprio Jesus, que estremece de alegria no Espírito Santo ao contemplar a
dedicação apostólica dos setenta e dois discípulos (cf. Lc 10,21). É uma
alegria que brota da capacidade de ser amigo, que tem força para vencer a
tristeza, uma alegria que ninguém pode roubar, nem mesmo a perseguição (cf. Jo
15,11; 16,20-22; At 13,52). Não podemos ser cristãos que vivem uma
quaresma sem fim e sem páscoa! (cf. EG 6).
Os bispos do Brasil ensinam que a conversão pastoral
da paróquia passa pela volta às fontes bíblicas (Doc. 100, 62), e a Sagrada
Escritura testemunha que as primeiras comunidades cristãs “tomavam o alimento
com alegria” (At 2,46) e que havia grande alegria por onde os discípulos
passavam (At 8,8). Com Jesus, eles aprenderam um novo jeito de viver:
comunhão com ele; igualdade de todos em dignidade; partilha de bens; amizade
fraterna; serviço recíproco e aos mais pobres; acolhida e perdão ilimitado;
oração comum; alegria, mesmo em meio à perseguição (cf. Doc. 100, 74).
Para a missão, os discípulos receberam de Jesus quatro
recomendações fundamentais: hospitalidade; partilha; comunhão de mesa;
acolhida aos excluídos (cf. Doc. 100, 75). “Estas recomendações sustentavam a
vida dos missionários do Evangelho. Tratava-se de uma nova forma de ser e agir
numa sociedade marcada por grandes contrastes” (Doc. 100, 76). E as comunidades
que nasceram dessa missão tinham quatro elementos distintivos: o
ensinamento dos apóstolos (Palavra); a comunhão fraterna (Comunhão); a fração
do pão (Eucaristia); e a oração (Liturgia).
Itacir Brassiani msf
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