quarta-feira, 4 de julho de 2018

ANO B – DÉCIMO-QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 08.07.2018


Em Jesus, Deus assume radicalmente a condição humana.
A grandeza, a fama e o poder sempre nos fascinam. Evitamos, como podemos, a fraqueza, pequenez e a humildade. A luta das seleções e torcidas pelo primeiro lugar na Copa ilustra muito isso muito bem. Os ídolos nos parecem modelos dignos de serem imitados, mesmo quando escondem suas origens humildes, enganam o fisco ou desabam ruidosamente. Mas o caminho da humanização não passa por estas veredas. Jesus de Nazaré define para sempre seu caminho de Deus: o ser humano comum, sem nenhum outro título ou honra, é seu sacramento, seu interlocutor e seu embaixador no mundo.
Existem pessoas que são desprezadas simplesmente por causa do gênero ou orientação sexual: mulheres constantemente humilhadas por uma arcaica e violenta cultura machista e pessoas homo afetivas caçadas como feras perigosas ou abjetas. Existem também grupos humanos que são desprezados por questões étnicas e raciais: negros que carregam as marcas da escravidão como se dela fossem culpados, vistos sempre com suspeita e considerados inferiores; povos indígenas catalogados como seres primitivos ou selvagens, exemplares exóticos de um tempo que não existe mais ou entraves para o excludente e predatório desenvolvimento branco; imigrantes enxotados como lixo imundo...
Apesar dos títulos e imagens de poder que a história associou a ele, Jesus de Nazaré partilhou a sorte das pessoas desprezadas e marginalizadas. Ele não fez coro com os soberbos e satisfeitos, nem se mostrou indiferente ao destino das pessoas humilhadas. Nasceu numa estrebaria, habitou numa cidade insignificante e numa região desprezada, foi trabalhador braçal, aproximou-se e misturou-se aos grupos sociais suspeitos, foi preso e executado entre ladrões. Em Nazaré, sua cidade Natal, Jesus era conhecido como um carpinteiro, e seus familiares eram pessoas muito humildes, gente muito comum.
O evangelho desse domingo mostra a admiração e a inquietação dos conterrâneos de Jesus sobre a origem do seu carisma. Como conheciam Jesus desde pequeno, perguntavam-se: “Onde foi que arranjou tanta sabedoria? Esse homem não é o carpinteiro, o filho de Maria?” Do ponto de vista da origem, Jesus não poderia ser o que dava a impressão de ser. Para seus conterrâneos, sabedoria não poderia vir de pessoas comuns e humildes como eles. Por mais que o ensinamento e as ações de Jesus impressionassem, sua pertença a um povoado marginal era para eles como uma pedra de escândalo.
Jesus fica impressionado com a visão estreita dos seus conterrâneos, com a influência que a ideologia da superioridade das pessoas cultas e poderosas exerce sobre os humildes habitantes da sua aldeia. Por trás dessa influência maléfica está a ideia da inferioridade e impotência dos pobres, da sua radical e eterna dependência de benfeitores poderosos. Como tantos outros, aquele povo simples havia interiorizado e assimilado sua própria insignificância. Mas, o que mais surpreende, é que parece que esse escândalo atinge os próprios familiares e parentes de Jesus.
É isso que deduzimos do provérbio citado por Jesus: “Um profeta só não é estimado na sua pátria, entre seus parentes e familiares...” Aqueles que conheciam suas raízes camponesas e suas mãos calejadas pelo trabalho na carpintaria não conseguiam reconhecer em Jesus os traços do Profeta ou do Messias esperado. Mas, para Jesus, o escândalo dos habitantes de Nazaré diante da sua origem humilde é falta de fé, pois a fé é a abertura essencial que permite reconhecer a presença de Deus nas pessoas simples, acolher as surpresas e a ação inusitada de Deus que se manifesta onde e quando menos se espera.
Chamando a atenção dos cristãos de Corinto, Paulo afirma que prefere orgulhar-se de suas fraquezas e não de seus méritos. “Eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias por causa de Cristo.” Paulo tem a convicção de que a força de Deus se revela na humana fraqueza, e, por isso, não corre atrás de revelações e dons extraordinários. Todos aqueles que realmente acreditam em Jesus Cristo seguem o caminho do amor que serve, do amor a fundo perdido, sem se importar com o sucesso e o retorno. Os cristãos sabemos que seguimos um servo, e não um patrão!
Jesus de Nazaré, carpinteiro numa aldeia insignificante, escândalo para os próprios conterrâneos e familiares... Ensina-nos a apreciar a fraqueza em vez do poder, a humildade em vez da soberba. Ajuda-nos a manter nossos olhos fixos em ti, nosso Senhor e Servo. Como tu, queremos confiar na liberdade e na força que nos vem do Espírito do Pai e da tua Palavra, e não em nosso próprio poder de convencimento e de pressão ou nas ações espetaculares. E não nos deixes esquecer que tu compartilhas nossas origens e não te envergonhas de nos chamar de irmãos e irmãs. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Ezequiel 2,2-5 * Salmo 122 (123) * 2ª Carta aos Coríntios 12,7-10 * Evangelho de São Marcos 6,1-6)

O Evangelho dominical - 08.07.2018


REJEITADO ENTRE OS SEUS

Jesus não é um sacerdote do Templo, ocupado em cuidar e promover a religião. Tampouco se confunde com um Mestre da Lei, dedicado a defender a Torá de Moisés. Os camponeses da Galileia vêm nos Seus gestos curadores e nas Suas palavras de fogo a atuação de um profeta movido pelo Espírito de Deus.
Jesus sabe que lhe espera uma vida difícil e conflituosa. Os dirigentes religiosos irão enfrenta-Lo. É o destino de todo o profeta. Não suspeita todavia que será rejeitado precisamente entre os seus, os que melhor o conhecem desde criança.
Ao que parece, a rejeição de Jesus no Seu povo de Nazaré era muito comentada entre os primeiros cristãos. Três evangelistas recolhem o episódio com todo o detalhe. Segundo Marcos, Jesus chega a Nazaré acompanhado de discípulos e com fama de profeta curador. Os Seus vizinhos não sabem o que pensar.
Ao chegar ao sábado, Jesus entra na pequena sinagoga da povoação e «começa a ensinar». Os Seus vizinhos e familiares apenas o escutam. Entre eles nasce todo o tipo de preguntas. Conhecem Jesus desde criança: é um vizinho entre outros. Onde aprendeu essa mensagem surpreendente do reino de Deus? De quem recebeu essa força para curar? Marcos diz que Jesus «deixava-os desconcertados». Porquê?
Aqueles camponeses acreditam que sabem tudo de Jesus. Fizeram uma ideia Dele desde criança. Em lugar de o acolher tal como se apresenta ante eles, ficam bloqueados pela imagem que têm Dele. Essa imagem os impede de se abrir ao mistério que se encerra em Jesus. Resistem a descobrir Nele a proximidade salvadora de Deus.
Mas há algo mais. Acolhê-Lo como profeta significa estar dispostos a escutar a mensagem que lhes dirige em nome de Deus. E isso pode trazer-lhes problemas. Eles têm a sua sinagoga, os seus livros sagrados e as suas tradições. Vivem com paz a sua religião. A presença profética de Jesus pode romper a tranquilidade da aldeia.
Os cristãos, temos imagens bastante diferentes de Jesus. Nem todas coincidem com a que tinham os que o conheceram de perto e o seguiram. Cada um de nós faz a sua ideia ele. Esta imagem condiciona a nossa forma de viver a fé. Se a nossa imagem de Jesus é pobre, parcial ou destorcida, a nossa fé será pobre, parcial ou alterada.
Porque nos esforçamos tão pouco em conhecer Jesus? Porque nos escandaliza recordar os Seus traços humanos? Porque nos resistimos a confessar que Deus se encarnou num profeta? Intuímos talvez que a Sua vida profética nos obrigaria a transformar profundamente as nossas comunidades e a nossa vida?
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (3)


Uma nova iniciativa missionária na região Amazônica

A terceira iniciativa pastoral dos Missionários da Sagrada Família na Amazônia foi também uma iniciativa da Província do Brasil Meridional e debutou há 18 anos (julho de 2000), na prelazia de Tefé, situada na Amazônia Ocidental, no estado do Amazonas. O território abrange uma área de 266.269 km2 e população é formada principalmente por descendentes de índios. São os chamados “caboclos”, resultado da mistura dos índios com os nordestinos que lá chegaram no período forte da expansão da borracha (início século XX).

A Prelazia de Tefé nos confiou a área compreendida pelas paróquias de Carauari e Itamarati, ao longo do rio Juruá, afluente esquerdo do rio Solimões-Amazonas. A região do rio Juruá é uma área tradicional de extrativismo, desde os indígenas pré-colombianos, mas principalmente a partir do século XVI. No período das grandes secas do Nordeste, os extrativistas de borracha se instalaram nas margens do Juruá, expulsando e perseguindo os nativos. Por muitos anos a borracha foi o produto principal da região, mas no fim dos anos 70 os seringais entraram em franca decadência. No momento da chegada dos MSF, a população da área geográfica das duas paróquias passava de 32.000 pessoas.
O objetivo explicitamente estabelecido e assumido tanto pela Província como pelo primeiro grupo de missionários deste projeto foi “dinamizar o elã missionário da Província Brasil Meridional fazendo-se o próximo do povo da Amazônia, dando testemunho de fraternidade, hospitalidade, solidariedade e serviço aos mais pobres, a fim de fortalecer a caminhada da Igreja local e a consciência de cidadania.”

A nova missão articulou-se inicialmente em torno de cinco eixos: a) Fraternidade e convivência comunitária, visando desenvolver a missão sem perder a identidade e o sonho de vida fraterna; b) Atitude de discípulo, para manter a consciência de que precisamos cultivar uma relação viva e pessoal com Jesus Cristo, junto com os demais cristãos; c) Serviço solidário aos últimos, dedicando uma atenção especial e prioritária àqueles que são considerados e tratados como últimos na sociedade; d) Construção da Igreja local,  para ajudar a consolidar a caminhada de uma Igreja enraizada na Amazônia; e) Comunhão com a Província, cultivando a consciência de que os missionários são enviados pela Província e a representam.

Com este projeto na mente e no coração, os padres Matias Schaefer e Euclides Paulus e o Fr. Vanderlei Souza da Silva partiram para a Amazônia nos primeiros meses do ano 2000. Depois de alguns meses de experiência em diferentes realidades, chegaram a Carauari para assumir as Paróquias desta cidade e de Itamarati, fato que ocorreu no dia 11 de julho de 2000. No ano seguinte o Ir. Moacir Filipin se incorporaria ao grupo.

Aos confrades pioneiros chegaram outros, para substituir os que retornavam ou juntar-se aos que ficavam: padres Inácio Dalla Nora, Mauro Primo Vieira, Virgílio Moro, Pedro Léo Eckert, Pedro Almeida da Silva, Pe. Marcelo Junior Klein. Depois, passaram pela missão os padres Celso Both, Moisés Furmann, Firmino Santana e Neiri Segala. Também foram presença marcante os Irmãos Adelir Bisolo, Lauri de Césare e Wanderson Nogueira, Atualmente, a missão conta com a generosa presença dos coirmãos padres Francisco Ary Carnaúba, Aniceto Francisco dos Santos, Irineu Paulo Paetzold e Valmir José Majolo.  
Mas a missão às margens do rio Juruá não é exclusividade dos Missionários da Sagrada Família. Dela participaram ativamente (desde 2009) uma comunidade de Irmãs Catequistas Franciscanas, uma comunidade de Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, dois postulantes MSF (André Freitas e Gleison França) e uma comunidade de três leigos (um jovem e um casal), estes últimos preparados, enviados e sustentados pela Província MSF do Brasil Meridional.
A população de Carauari é de aproximadamente 25.800 habitantes, para uma área de 25.767 km2, enquanto que Itamarati tem 6.300 habitantes, distribuídos numa área de 25.275 km2. (A soma da área geográfica das duas paróquias é maior que o território da Suíça!) Além de animar os trabalhos normais das duas sedes paroquiais, nossos missionários visitam 67 comunidades eclesiais ribeirinhas e acompanham 6 comunidades eclesiais urbanas. Além destas comunidades, 9 povos indígenas vivem na área geográfica da paróquia.

As viagens são muito demoradas. São necessárias 48 horas de navegação para subir de Carauari e Itamarati, e 90 horas para subir de Tefé (sede da Prelazia) a Carauari. As visitas pastorais às comunidades ribeirinhas de cada paróquia, realizadas duas ou três vezes por ano, costumam durar aproximadamente um mês, com um altíssimo custo em termos de combustível e de manutenção. (continua)

Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Páscoa do Pe. Ceolin: 5 anos


Celebrando a memória de uma vida consagrada

O dia 3 de julho marca a passagem de 5 anos de falecimento do saudoso coirmão Pe. Rodolpho Ceolin msf. Cultivar a memória desse missionário não é uma homenagem que prestamos a ele, mas uma forma de, recordando sua trajetória e seu perfil humano e espiritual, acolher os estímulos de crescimento.
Nos últimos dias de vida, o Pe. Ceolin rabiscou algumas notas telegráficas para uma possível e desejada autobiografia. Ele agrupo estas notas em quatro momentos: episódios marcantes da infância; vida no Seminário de Santo Ângelo; do noviciado à primeira missa; vida ministerial. (Não abordaremos aqui este último momento).
Em relação à infância
Nestas anotações o Pe. Ceolin registra que nasceu no oitavo mês de gestação, fato que ele imaginava estar na origem da sua alta sensibilidade ao barulho e daquilo que ele chama, sem oferecer detalhes, de “medo da morte”. Depois, faz menção ao acidente do pai com a explosão de um dinamite, fato que, sabemos por ele, interferiu decisivamente no futuro da família, e que o Rodolpho tinha certa dificuldade em aceitar e perdoar.
Nesta fase, há uma referência também a um acidente que ele mesmo teve com um embornal. Seu irmão Ermindo me contou que, quando menino ainda bem pequeno, metido como sempre seria, o Rodolpho estava brincando no galpão, enfiou a cabeça num bornal de arame e, com dificuldades de se desvencilhar e assustado, acabou com um profundo corte no pescoço...
Nestas linhas manuscritas, o nosso saudoso coirmão registra também que era muito travesso, e isso tanto em casa como na escola e na catequese. Mas essas travessuras não impediam que ele fosse avaliado positivamente pelos vizinhos e pela comunidade, que o aceitou como coroinha ainda em tenra idade. Ele mesmo lembra que o pai atuou decisivamente para livra-lo dos maus companheiros, sem entrar em maiores detalhes a respeito.
Sinais precoces da vocação à vida consagrada?
Aos 83 anos, o Pe. Ceolin se interrogava se teriam existido, na sua infância, sinais autênticos de vocação à vida religiosa e ministerial. E registra entre aspas e com emoção, palavras que parecem ter sido ditas por sua mãe, dona Carolina: “Você não me pertence. Você é mais filho de Deus que meu!” Sábias, generosas e profundas palavras de uma mãe que se revelaria boa catequista e iluminada orientadora vocacional...
Entre os pontos que, nas notas que nos ocupam, ele destacou como merecedores de um desenvolvimento maior, está uma referência a “luzes e sombras, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas”. Sobre isso, ele não diz nada mais. Sabemos, porém, daquilo que significou sua expulsão do Seminário, conforme relata noutro texto.
Formação no Seminário
Mas para este período, ele escreveu, como primeiro ponto: “Carlito, o amigo verdadeiro”. Trata-se de Carlito Meelz, seu amigo de infância, o qual, desde seu ingresso no Seminário jamais passou um dia sem rezar pela vocação do Pe. Rodolpho. Na celebração dos 50 anos de ministério presbiteral do Ceolin, lá estava o Carlito, na primeira fila, fisicamente debilitado, mas espiritualmente intacto.
Mas há também, para este período, uma anotação muito interessante sobre aquilo que ele denomina de “características emergentes na minha personalidade”, e que ele descreve em cinco pontos: amor ao trabalho humilde; vida modesta e pobre; prontidão e gratuidade para fazer aquilo que lhe solicitam; solidão do coração; pouco exigente com a alimentação. Quem o conheceu pode testemunhar o quanto estes traços emergentes se consolidaram na sua vida adulta, inclusive aquilo que ele denomina “solidão de coração”.
Noviço e presbítero
Nas referidas anotações, o Pe. Ceolin destaca um terceiro período da sua vida, que vai do noviciado à primeira missa. E um primeiro registro que chama a atenção, e que ele faz questão de partilhar, é sua boa convivência com os colegas e seu empenho no estudo, no trabalho e no esporte. Não menos importante é o distanciamento em relação aos colegas que eram lentos ou resistentes aos trabalhos extras, aos que buscavam sempre o que era mais fácil e prazeroso, aos que se aventuravam em experiências contra os votos, aos que mostravam um caráter exageradamente crítico e briguento. Finalmente, há uma nota sobre suas aptidões para o canto, a música e as artes cênicas, dons e gostos que conservou, embora sem desenvolve-los significativamente, até o final da vida.
Há também referências ao que ele chama de limites e feridas deste período. O Pe. Ceolin registra os dois limites que lhe pareciam mais relevantes. O primeiro, ele chama de “dúvidas incertezas vocacionais”, algo que o acompanhará nos primeiros anos de ministério e no período em que foi Superior provincial, e até muito mais tarde. Trata-se de uma questão com a qual ele se debateu a vida inteira!

O segundo limite é uma espécie de ferida, à qual ele chama de “provação” e se referia seguidamente: foi obrigado a ficar sete anos sem visitar sua família. E isso se fez ainda mais doloroso pela impossibilidade da sua mãe fazer-se presente na sua ordenação presbiteral, celebrada no dia 25 de novembro de 1956, em Tapejara (RS).
Itacir Brassiani msf

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (2)


Primeiras experiências dos MSF na região Amazônica
Mesmo sem sequer imaginar a importância que a Amazônia teria nas décadas seguintes, a presença dos Missionários da sagrada Família na região remonta aos inícios do século passado. Um grupo de sete missionários (Pe. João Paulsen; Pe. Alexandre Mertens; Pe.José Lauth; Pe. Ludovico Bechold; Pe. Germano Elsing; Ir. Boaventura Hammacher; Ir. Francisco Ramm) partiu da Holanda em dezembro de 1910 e, depois de uma parada em Recife para aprender os rudimentos da língua nativa, chegou, já desfalcado de dois membros, a Mazagão, na região da foz do rio Amazonas, no dia 15 de agosto de 1911. Era a primeira iniciativa missionária da Congregação.
Segundo um historiador Eduardo Hoornaert, o que caracteriza substancialmente a primeira evangelização oficial na Amazônia como um todo é o abandono das populações em termos religiosos, assim como o autoritarismo e o elitismo: "Fomos evangelizados de cima para baixo e de fora para dentro. Tanto o cristianismo dos engenhos como o dos aldeamentos eram baseados numa inversão de valores que camuflava o especificamente cristão. O colonialista estava no altar e o pobre na porta, o dinheiro abria as portas da Igreja e os pobres ficavam por fora, assim como quem quer que seja que falasse a favor deles.” (A Igreja no Brasil" em: Enrique Dussel [Org.] Historia Liberationis, São Paulo: Paulinas/CEHILA, 1992, p. 316)
A população da região onde atuaram os recém-chegados missionários era formada quase que totalmente por negros, mulatos e caboclos. Habituados aos trabalhos pesados, este povo ficara à margem da sociedade. As mulheres eram diminuídas e subjugadas pelos maridos. As igrejas estavam quase sempre fechadas ou abandonadas. E eram apenas 13 padres para dar conta de uma prelazia de dimensões continentais.

Nossos missionários se depararam com as dificuldades enfrentadas pelo povo e o trabalho era insano e desalentador. "De um lado a pobreza extrema de uma grande parte do povo, tecida de tradições e costumes africanos; de outro lado, a ignorância religiosa generalizada, aliada ao analfabetismo, à licenciosidade dos costumes, a famílias mal constituídas. Era o pano de fundo daquela impressionante realidade” (Demerval Alves Botelho, Uma história de amor e sacrifício, vol. I, 1988, p. 73). Por várias razões, os Missionários da Sagrada Família deixaram a região em 1948, depois de 37 anos de trabalho.
No ano de 1994 um grupo de missionários da Província do Brasil Meridional deu vida a uma nova presença dos MSF na região amazônica, desta vez na periferia de Palmas, capital do recém criado estado de Tocontins. Naquele momento a cidade contava com mais de 60.000 habitantes, composta por uma maioria absoluta de migrantes, e com apenas um padre para atendê-la. A comunidade missionária viveu de modo simples e despojado, próxima do povo mais pobre e trabalhando para o próprio sustento. Atuou decidamente na organização da luta pela moradia, além dos trabalhos de organização das comunidades eclesiais.
No período de sete anos em que vigorou esta missão, vários coirmãos deram o melhor de si: Pe. Júlio César Werlang; Ir. Irio Luiz Conti; Pe. Pedro Léo Eckert; Pe. Inácio Dalla Nora; Fr. Moisés Furmann; Fr. Romeu Feix; e Fr. Onivaldo e alguns postulantes.  Esta comunidade foi fechada no ano 2000, considerando especialmente o progressivo conservadorismo da Igreja local, o aumento do número de padres e religiosos, a grande distância que separava a pequena comunidade dos demais confrades e o projeto de uma nova missão na prelazia de Tefé. (Continua)
Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 28 de junho de 2018

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (1)

O mundo volta sua atenção à Amazônia

Logo mais, no dia 11 de julho, o calendário marca 18 anos da presença dos Missionários da Sagrada Família na Prelazia de Tefé, mais precisamente, às margens do Rio Juruá, municípios de Carauari e Itamarati.  Esta pequena comunidade – nunca fomos mais que cinco! – é a forma que encontramos de “dar da nossa pobreza”, atendendo ao apelo que nos chega da Igreja amazônica.
A V Conferência Geral do Espiscopado Latino-Americano e do Caribe (Aparecida, Brasil, 2007) afirma: “A fé se fortalece quando é transmitida e é preciso que em nosso continente entremos em uma nova primavera da missão ad gentes. Somos Igrejas pobres, mas devemos dar de nossa pobreza e a partir da alegria de nossa fé, e isso sem descarregar sobre alguns poucos enviados o compromisso que é de toda a comunidade cristã” (Documento de Aparecida, 379).
E o grupo de bispos, padres, religiosos e agentes leigos da região Pan-Amazônica, reunidos no III Encontro Regional sobre a Amazônia (outubro/2009) escreveu: “É necessário reconhecer a Amazônia como um dom de Deus em sua criação. Este dom tem como particular característica a diversidade múltipla, tanto de climas, biomas, rios e recursos naturais como de tradições históricas, culturais, lingüísticas e territoriais dos povos aborígenes que a habitam. Esta característica inerente permite pensar a região como um verdadeiro arquipélago amazônico mais que uma só região uniforme.” 
De fato, a área chamada Pan-Amazônia abrange aproximadamente 7,5 milhões de km2, se estende por oito países sul-americanos e representa 43% da área da América do Sul. Nesta área quase continental predomina altaneiro o rio Amazonas, com seus mais de 1.100 afluentes, que tecem a rede fluvial mais extensa do mundo, com mais de 25.000 km navegáveis. A região amazônica concentra 20% da água doce não congelada do planeta; abriga 34% das florestas primárias e 30% da fauna e 50% da flora do mundo. Eis algumas das razões que fizeram com que esta região passasse a ser olhada como uma praça central do planeta e deixasse de ser considerada um quintal desprezível.
Mas a Amazônia não é feita somente de florestas e rios. Nela vivem mais de 40 milhões de pessoas. Deste contingente, 3 milhões são indígenas, distribuídos em mais de 400 povos que falam 250 diferentes línguas (agrupadas em 49 famílias linguísticas). Além disso, a Pan-Amazônia é habitada por milhares de comunidades afro-americanas e uma infinidade de comunidades ribeirinhas compostas de mestiços, caboclos, migrantes, agricultores e habitantes de cidades médias e grandes. As pesquisas arqueológicas comprovaram que a presença humana na região remonta a mais de 11.000 anos.
Mais que um descobrimento, a chegada dos europeus no século XVI representou uma espécie de encobrimento desta rica realidade e uma negação da dignidade dos povos aborígenes. Alguns historiadores afirmam que a invasão européia deu início a um dramático processo de esgotamento dos recursos naturais e de escravidão e extermínio dos povos povos nativos, provocando uma das maiores catástrofes demográficas da história recente: os cinco milhões de indígenas pertencentes a 900 grupos étnicos que existiam no ano 1500 se reduziram às poucas centenas de milhares de hoje. Infelizmente, a depredação dos recursos da Amazônia e a violência contra os povos indígenas e tradicionais continuam hoje com os novos ciclos extrativistas e, sobretudo, com os grandes projetos de desenvolvimento que estão sendo implantados em toda a região. (continua)
Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 27 de junho de 2018

ANO B – DÉCIMO-TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 01.07.2018


A fé nos ilumina na busca de solução para os dramas humanos.
É triste constatar, mas vamos nos acostumando com os atos, atitudes e estruturas contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. A cultura funciona de modo semelhante ao nosso corpo: se começamos ingerindo pequenas doses de veneno letal e formos aumentando levemente a medida, as células, tecidos e aparelhos vão se habituando e acabam não reagindo mais. Assim também acontece com a injustiça e a mentira: às custas de doses diárias, ininterruptas e crescentes deste veneno, os cristãos assimilamos esse material venenoso e mortífero como natural e não conseguimos mais esboçar reações contrárias. Até as Igrejas são tentadas a obedecer mais à diplomacia e às exigências do status que ao Evangelho.
O mundo no qual Jesus se movimenta e atua não é a metafísica abstrata ou o mundo das teorias, mas a sociedade e a vida concreta. O que está em questão no evangelho proclamado hoje não é a morte biológica, mas a morte social, que denominamos marginalização. Jesus não se interessa prioritariamente por conceitos ou leis, pois está implicado com a vida e a dignidade concretas das pessoas. Sua preocupação não é com coisas que denominamos espirituais ou interiores, mas com aquilo que melhora ou dificulta o bem viver do seu povo.
As ações e palavras de Jesus estão referidas e um contexto sociocultural bem específico. Marcos coloca à nossa frente duas categorias de pessoas. Na primeira categoria entra Jairo, que tem nome, é chefe de uma sinagoga e chefe de uma família. Entra também sua filha que, estando doente, pode contar com a assistência própria da sua classe social. Jairo trata Jesus como alguém do seu nível, fazendo-lhe a reverência devida às pessoas consideradas dignas, mesmo que existam indícios de que a sua aparente polidez no tratamento esconde a falta de fé.
Na segunda categoria está uma mulher sem nome, uma criatura anônima e perdida no meio da multidão, encurvada sob o peso de uma hemorragia que a leva às mãos de exploradores duplicam sua condição de marginalizada: mulher, impura e pobre. Ela não tem nome, nem família, nem honra. Vive sob o manto da vergonha, esta sensibilidade pessoal diante do que os outros pensam de sua honra. Ninguém intercede em seu favor, e ela sabe que não pode se aproximar de Jesus como as pessoas honradas. Mas Jesus não respeita os costumes do código de honra que rege as relações sociais de Israel!
Jesus subverte a ordem estabelecida quando se trata de socorrer as pessoas em situação de vulnerabilidade. Neste caso, Jesus deixa em segundo plano o atendimento ao pedido de Jairo, uma pessoa com status e reconhecimento social, a se entretém com uma pessoa triplamente proscrita. E não quer nem saber se com isso coloca em risco a vida da filha de Jairo. Aquela mulher anônima e sem classe aproxima-se por trás e toca-lhe o manto, marcando-o com a impureza que lhe era atribuída, e este gesto desesperado de uma pessoa habituada ao sofrimento não passa incógnito a Jesus.
Mesmo sem ter pedido nada a Jesus, a mulher, vítima de uma sociedade patriarcal, de um sistema de pureza e de um sistema médico explorador tem prioridade sobre o pedido de Jairo. Somente depois de curada, a mulher cai aos pés de Jesus, conta o drama que vivera e que chegava ao fim, expõe a vergonha que carregava por ser vista e tratada como impura. O medo e a vergonha desaparecem e dão lugar à alegria quando ela escuta da boca de Jesus: “Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença.” Jesus vê seu gesto como demonstração de uma fé autêntica e fecunda, e não como sinal de desespero.
Depois desta cena, Jesus segue em direção à casa de Jairo, indiferente à notícia de que a menina morrera, como se não tivesse perdido nada. Pede apenas que Jairo siga o exemplo daquela mulher anônima, que creia e tenha fé. É com a ajuda da mudança de mentalidade de Jairo que a menina recupera a vida.  Assim, para que possa merecer respeito, uma ordem social e cultural precisa abrir-se à fé e aderir ao dinamismo do Reino de Deus, que é uma nova ordem, um outro mundo, no qual todas as pessoas gozam do mesmo status, de igual dignidade. Somente isso liberta os marginalizados e poupa os ‘honrados’.
Jesus de Nazaré, profeta do Reino de Deus, amigo e próximo das pessoas menosprezadas e excluídas: tua delicadeza para com a mulher anônima e mestra na fé nos comove e interpela, e a cura da filha de Jairo nos convoca a renovar nossas instituições subordinando-as à lógica do reino de Deus. Como comunidade de discípulos e discípulas te pedimos: ajuda-nos a tirar a máscara de amor e de fé com que muita gente encobre a discriminação das mulheres e a indiferença e ódio às pessoas e grupos marginalizados. Que nossa missão seja fazer com que os últimos sejam os primeiros. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

(Livro da Sabedoria 1,13-15.2,23-24 * Salmo 29 (30) * 2ª. Carta aos Coríntios 8,7-15 * Evangelho de  São Marcos 5,21-43)

ANO B – SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS SÃO PEDRO E SÃO PAULO– 01.07.2018


Nada e ninguém consegue algemar o Evangelho de Jesus Cristo!
Concluímos ontem um mês cheio de memórias de santos populares, mas ainda resta a solenidade de São Pedro e São Paulo. Escutemos e acolhamos com reverência o testemunho destes irmãos maiores, colunas que sustentam as comunidades cristãs. Mas, para chegar à vida real destes personagens é preciso escutar as Escrituras. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, também é certo que ambos, cada um a seu modo e a seu tempo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados.
Esqueçamos por um instante a cena contada por Mateus e centremos nossa atenção no acontecimento narrado nos Atos dos Apóstolos. Pedro, o primeiro Papa foi presidiário! “Para que servem as chaves prometidas por Jesus Cristo se não ajudam a soltar as algemas que o prendem ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância?” Pedro estava imerso na penumbra desta e outras perguntas quando uma luz iluminou sua cela, uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse. As algemas caíram, os guardas não viram nada, e a porta que separava a cela da cidade se abriu sozinha...
Por sua vez, Paulo, depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, fez a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa notícia, especialmente às pessoas e comunidades de origem pagã. O zelo e o ardor que Paulo demonstrara pelo judaísmo se transformou em zelo pela fé em Jesus Cristo. Com isso, perdeu de vez a tranquilidade...
Sua complexa trajetória de vida atraiu contra Paulo a desconfiança dos próprios cristãos e o ódio dos seus irmãos judeus. Depois de sucessivos enfrentamentos e perseguições, ele também acabou na prisão. Sendo cidadão romano, exigiu o direito de ser julgado decentemente pelo imperador, e foi conduzido a Roma. Entretanto, ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada”, escreveu ele ao seu fiel amigo e companheiro Timóteo (2Tm 2,9).
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos detidos mantêm contato com as suas comunidades de base, inclusive através de cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficam indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome de Deus e da religião, assim como pelos riscos políticos e sociais que estas relações implicam. O vínculo entre a comunidade dos discípulos e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e comovente no relato dos Atos dos Apóstolos que a liturgia nos propõe hoje (cf. 12,1-11).
As escrituras dizem que “enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” É neste contexto que Pedro experimenta a presença fiel de Deus também na prisão. Logo que é libertado do cárcere, vai à casa da mãe de João Marcos, onde a comunidade está reunida em oração. Quando Rosa, a mãe de Marcos, abre a porta e vê que é Pedro, é tomada de tamanha alegria que o deixa plantado do lado de fora e vai às pressas anunciar a boa notícia à comunidade reunida, a qual pensa que Rosa está doida. Aberta a porta, Pedro entra, e conta entusiasmado o que havia acontecido.
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente isso. Num lugar marcado pelo domínio estrangeiro, Jesus interroga seus discípulos sobre o que pensam dele. E Pedro é o primeiro dentre todos os discípulos a reconhecê-lo e proclamá-lo Messias. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer sua presença nas ações e palavras deste filho da humanidade, no irmão de todos os seres humanos. Esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã.
Queridos Pedro e Paulo, apóstolos e irmãos na fé! Com vocês aprendemos que crer, confiar, partilhar e anunciar são os verbos essenciais da gramática e na ação cristã. O verdadeiro discípulo é aquele que conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas. Ajudem-nos a viver de tal modo que, chegando ao entardecer da existência, também nós possamos dizer: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Suportando os sofrimentos e incertezas presentes, jamais nos envergonhemos ou desanimemos, pois sabemos em quem acreditamos! Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
 (Atos dos Apóstolos 12,1-11 * Salmo 33 (34) * 2ª. carta a Timóteo 4,6-8.17-18 * Evangelho de Mateus 16,13-19)

O Evangelho dominical - 01.07.2018

A GRANDE FÉ DE UMA MULHER

A cena é surpreendente. O evangelista Marcos apresenta uma mulher desconhecida como modelo de fé para as comunidades cristãs. Dela poderão aprender como procurar Jesus com fé, como chegar a um contato curador com Ele e como encontrar Nele a força para iniciar uma vida nova, cheia de paz e saúde.
Diferentemente de Jairo, identificado como «chefe da sinagoga» e homem importante em Cafarnaum, esta mulher não é ninguém. Só sabemos que padece de uma doença secreta, tipicamente feminina, que lhe impede de viver de forma sã a sua vida de mulher, esposa e mãe.
Sofre muito física e moralmente. Arruinou-se procurando ajuda nos médicos, mas ninguém a pôde curar. No entanto resiste a viver para sempre como uma mulher doente. Está só. Ninguém a ajuda a aproximar-se de Jesus, mas ela saberá encontrar-se com Ele.
Não espera passivamente a que Jesus se aproxime e lhe imponha as Suas mãos. Ela mesma o procurará. Irá superando todos os obstáculos. Fará tudo o que possa e saiba. Jesus compreenderá o seu desejo de uma vida mais sã. Confia plenamente na Sua força curadora.
A mulher não se contenta só com ver Jesus de longe. Procura um contato mais direto e pessoal. Atua com determinação, mas não de forma destrambelhada. Não quer incomodar ninguém. Aproxima-se por detrás, entre as pessoas, e toca-Lhe no manto. Nesse gesto delicado concretiza e expressa a sua confiança total em Jesus.
Tudo ocorreu em segredo, mas Jesus quer que todos conheçam a fé grande desta mulher. Quando ela, assustada e temorosa, confessa o que fez, Jesus diz-lhe: «Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e com saúde». Esta mulher, com a sua capacidade para procurar e acolher a salvação que nos são oferecidas em Jesus, é um modelo de fé para todos nós.
Quem ajuda as mulheres dos nossos dias a encontrarem-se com Jesus? Quem se esforça por compreender os obstáculos que encontram em alguns setores da Igreja atual para viver a sua fé em Cristo «em paz e com saúde»? Quem valoriza a fé e os esforços das teólogas que, com pouco apoio e vencendo toda a classe de resistências e rejeições, trabalham sem descanso para abrir caminhos que permitam à mulher viver com mais dignidade na Igreja de Jesus?
As mulheres não encontram entre nós o acolhimento, a valorização e a compreensão que encontravam em Jesus. Não sabemos olhar como as olhava Ele. No entanto, com frequência, elas são também hoje as que com a sua fé em Jesus e o seu alento evangélico sustentam a vida de não poucas comunidades cristãs.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

sábado, 23 de junho de 2018

ANO B – SOLENIDADE DO NASCIMENTO DE SÃO JOÃO BATISTA – 24.06.2018


João, um profeta que veio para endireitar estradas.
A festa de São João está profundamente arraigada na cultura do povo brasileiro. Em algumas regiões, tornou-se atração turística e é explorada como ocasião para ganhar dinheiro ou consolidar votos. Mas esta é uma festa que só aparentemente se distanciou do seu nascedouro bíblico e profético. Pois a alegria simples e inocente que a caracteriza brota da certeza de que Deus não esquece a aliança que fez conosco, visita e liberta seu povo, e envia profetas e profetizas que preparam caminhos novos. Por isso, celebremos este dia com a alegria que brota da liberdade que virá e com a coragem de João.
A festa de hoje não exige megaprodução. Bastam uma pequena fogueira e alguns fogos de artifício, algumas roupas simples e baratas, uma banda improvisada e capaz de tocar a alma popular, alimentos que custam pouco e têm sabor de intimidade, bandeirinhas coloridas nos varais e balões levados ao sabor do vento... Os degraus do poder são substituídos pela roda que a todos iguala nas mãos dadas. A seriedade dos comandantes e a resignação dos que devem obedecer o ritmo de produção ditado pela sede de lucro dão lugar a uma alegria que não há como esconder, uma alegria que lança raízes no passado bíblico que nos pertence e se embebeda das luzes de um mundo que está por vir.
De repente, os operários viram artistas, os camponeses se revelam bailarinos, os coadjuvantes são protagonistas. A alegria, assim como a irreverência, têm raízes bíblicas e força revolucionária. Não se trata da alegria forçada pelas drogas, nem da felicidade histérica de quem se deleita nos bens subtraídos aos homens e mulheres que os produzem, e também não é a alegria produzida artificialmente por líderes religiosos sequiosos de domínio e de riqueza, ou por estrelas políticas e midiáticas que seduzem incautos mas duram pouco mais que uma noite.
Trata-se da alegria que brota da descoberta de que Deus olha para as mãos calejadas, para os rostos sofridos, para os corpos vergados e os corações partidos e os vê e proclama cheios de graça, plenos de charme. “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,28.42). Como Maria na casa de Isabel, alegramo-nos porque Deus olha para a humilhação dos seus filhos e filhas; porque sua misericórdia se estende de geração em geração; porque ele mostra a força do seu braço, derrubando os poderosos dos tronos e elevando os humildes...
Assim, a alegria inocente e despojada das festas juninas tem raízes na história da salvação, que atravessa e supera a história da opressão e que está ainda hoje em curso. O nascimento de João representa a delicadeza de um Deus que levanta o manto da vergonha e da dor que, numa sociedade machista, pesa sobre uma mulher idosa e sem filhos (cf. Lc 1,25). Quando o menino nasce, a vizinhança toda se alegra com mais esta demonstração da misericórdia de Deus. E a razão dessa alegria está no próprio nome dado àquele prodígio nascente: “João é o seu nome!”, dirá Zacarias, acatando a decisão de Isabel.
João significa literalmente ‘Deus age com misericórdia’. Dando este nome ao filho, Zacarias e Isabel rompem com a tradição e renunciam ao hábito de fazer do filho um espelho dos desejos do pai. João será profeta, e não sacerdote, como o pai. Nas palavras de Zacarias, ele será ‘profeta do Altíssimo’, irá à frente do Senhor, ‘preparando os seus caminhos, dando a conhecer ao seu povo a salvação, com o perdão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus’ (cf. Lc 1,76-78). Segundo os evangelhos, João despertará a ira de Herodes por denunciar seu casamento com a cunhada (cf. Mc 6,17-18).
Mas João é muito mais que um pregador preocupado unicamente com a moralidade matrimonial...  Ele é um autêntico profeta, na linha dos grandes profetas de Israel. Ele exige mudanças radicais, tanto o âmbito pessoal como na esfera social. Eis sua voz: “Preparai os caminhos do Senhor; endireitai as veredas para ele. Produzi frutos que mostrem vossa conversão. Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo...” Trata-se de uma vocação exigente, e parece que o próprio Zacarias inicialmente não a entende ou não a aceita a vocação profética do filho.
Deus dos humildes, pai e mãe dos profetas e profetizas, razão da nossa alegria: te agradecemos pelos homens e mulheres que continuas enviando para transformar desertos em jardins e acender teu fogo no mundo. Eles se chamam João, Adelaide, Pedro, Oscar, Ezequiel, Sepé, Dorothy. Mas seus irmãos e irmãs menos famosos se chamam José, Tião, Rosa, Maria, Tonico, Zeca, Antônio, Severino, Josefa..., gente que faz parte da imensa caravana de homens e mulheres que vivem uma alegria autêntica e simples, inocente e solidária, despojada e profética, um precioso tesouro do povo brasileiro. Bendito sejas para sempre!
Itacir Brassiani msf
 (Profecia de Isaías 49,1-6 * Salmo 138 (139) * Atos dos Apóstolos 13,22-26* Evangelho de Lucas 1,57-66.80)