sábado, 29 de dezembro de 2012

Debate: Jesus é rei e sacerdote?


Uma traição piedosa e espiritualmente promovida

Sei que este é um problema meu, mas tem algumas coisas que, mesmo quando revestidas de piedade e gozando de plena ortodoxia, me desolam e conseguem até me irritar. São atitudes e práticas que soam como piedosas e perigosas traições de Jesus Cristo. E uma delas é a antiga e duradoura mania de esvaziar o divino paradoxo de Jesus Cristo revestindo-o e imobilizando-o com as vestes de rei e sacerdote.

Não desconheço que já nas comunidades apostólicas encontramos indícios dessa perigosa identificação. O recorrente uso do título Kyrios/Senhor para se referir a Jesus é um sinal muito claro desta tendência. E todos/as conhecemos algumas passagens, especialmente nas cartas paulinas e católicas, que aplicam a Jesus reconhecido como Messias os títulos de rei e de sacerdote. Basta citar, a título de ezemplo, a carta aos Hebreus e o Apocalipse de São João.

Mas o que o passar dos anos e a ideologia do poder religioso nos fez esquecer é que, para as comunidades apostólicas, estava absolutamente claro que o Cristo relido sob a figura do sacerdote e do rei – expressões máximas da dignidade humana no horizonte religioso e político daquele tempo – era aquele carpinteiro galileu, profeta e peregrino, supeito aos olhos do templo e do império, executado exemplarmente fora dos muros da cidade.

Toda a literatura neotestamentária parte volta sempre a este ponto tão historicamente seguro quanto paradoxal: aquele homem desprezado, contestado e descartado como pedra inútil na construção do mundo do poder é a máxima expressão da madura dignidade humana e a mais profunda e completa manifestação da divindade. Aquele que se despojou voluntariamente de toda aparência de superioridade e se apresentou como simples ser humano é o único senhor diante do qual todos os joelhos devem se dobrar. Aquele homem relativizado e reduzido a nada, a zero, pelos poderes religiosos e políticos é o tudo e o absoluto no qual a humanidade a nela e se realiza plenamente.

O que me intriga e me tira do sério é a velha e resistente prática de esquecer o estábulo de Belém, a carpintaria de Nazaré, as estradas da Galiléia, as casas dos/as pecadores/as, as multidões curadas e saciadas no deserto, os pobres que ouviam boas notícias, a hipocrisia do sinédrio, a cruz da colina das caveiras, o grito sem resposta, a sepultura tomada de empréstimo, a coragem das mulheres e demais discípulos... para imobilizar Jesus Cristo no meio de uma nuvem de incenso e de uma muralha de candelabros no interior dos templos. Ou então, a traição descarada que retira Jesus da cruz e da sua cabeça a coroa de espinhos para fazê-lo sentar num palácio e apresentá-lo sentado num trono com a coroa imperial sobre a cabeça.

Mas ao lado, ou por detrás desta traição mais descarada e detestável, há uma outra, mais sutil e não menos perigosa. Trata-se do modo de demonstrar nossa fé em Jesus Cristo. Não está suficientemente claro que Jesus pede a quem o reconhece como Messias de Deus e deseja segui-lo conversão de mentalidade e participação ativa na sua missão de promover uma vida abundante para todas as pessoas, começando pelo amor preferencial aos últimos? É isso que nos é ensinado e ensinamos hoje?

Pode até ser... Mas o que pedem e fazem na prática as diversas Igrejas cristãs é muito diferente. Tudo dá a entender que o essencial é professar com a língua e em público que Jesus é o Senhor, participar dos encontros de louvor e libertação, frequentar os sacramentos, aceitar sem discutir o pesado código moral que cheira a passado e a dominação, ler a bíblia ou rezar o terço, inclusive as mil ave-marias... Como se Jesus Cristo fosse um milagreiro, um legislador, um sacerdote, um rei sequioso de nobilidade, de bajulação e de poder. Não é isso uma incrível traição de Jesus, mais detestável ainda por ser justificada em nome da piedade e da ortodoxia?

Itacir Brassiani msf

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