segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Uma destruição massiva: a geopolítica da fome (27)


A ONU incluiu o direito à alimentação entre os Direitos Humanos (cf. artigo 25). É na perspectiva da luta por esse direito, um dos mais violados, que publico aqui uma série de breves textos sobre o escândalo da fome e o direito humano à alimentação. São informações e reflexões que simplesmente traduzo e resumo do recente livro Destruction massive. Géopolitique de la faim, de Jean Ziegler, relator especial da ONU para o direito à alimentação, de 2000 a 2008.
O livro foi publicado em outubro de 2011, pela editora Seuil (Paris).

Os especuladores agem como ‘tubarões-trigres’.
O tubarão-tigre é um grande animal que vive nos mares temperados e tropicais, preferentemente nas águas turvas. É carnívoro e extremamente voraz. É capaz de detectar uma gota de sangue diluída em mais de 4 milhões de litros de água!

Os especuladores de bens alimentares atuam na Bolsa de Produtos Primários (Chicago Commodity Stock Exchange) como tubarões-tigres. Eles também são capazes de identificar suas vítimas a dezenas de quilômetros, e de destruí-las num instante. Tudo para satisfazer sua voracidade, ou seja, para acumular vultosos lucros. As leis do mercado ignoram deliberadamente que a alimentação é um direito humano, um direito de todos os seres humanos.

Os especuladores de alimentos agem em todas as frentes onde seja possível lucrar. Jogam especialmente com a terra, os insumos, as sementes, os fertilizantes, os créditos e os alimentos. Como em qualquer cassino, em fração de minutos, eles podem acumular lucros gigantescos. Um exemplo: em 2009, a Gaïa Word Agri Fund (empresa com sede em Genebra) obteve um lucro líquido de 51,9% sobre o capital investido na especulação com alimentos.

O que distingue um especulador dos demais operadores econômicos é que ele não adquire nada para uso ou consumo próprio: compra um bem – um lote de arroz, de trigo, de milho, de óleo, etc. – para revendê-lo mais tarde ou imediatamente com a intenção de, se os preços variarem, recomprá-lo mais tarde. O especulador não é a causa inicial do aumento dos preços, mas sua intervenção acelera esse aumento.

Como os Estados ocidentais têm se mostrado incapazes de impor limites jurídicos aos especuladores, o banditismo bancário é hoje mais florescente que nunca. Mas depois da implosão dos mercados financeiros, causada por eles mesmos, os ‘tubarões-tigres’ mais perigosos, principalmente os Hedge Funds norteamericanos, migraram para o mercado de produtos primários, notadamente os mercados agroalimentares.

O campo de ação dos especuladores é praticamente ilimitado. Todos os bens do planeta podem se tornar objeto de especulação. O caso mais danoso para a vida humana é o dos alimentos básicos (arroz, trigo e milho, que, juntos, representam 75% da  alimentação da humanidade). Em 2008 e 2011 a especulação provocou significativa elevação dos preços dessses produtos, provocando o agravamento de fome em dezenas de países e, consequentemente, violência e morte.

Por um momento, o mundo se deu conta de que, em pleno século XXI, dezenas de milhões de homens e mulheres estavam morrendo de fome. Mas logo em seguida o silêncio midiático voltou a acobertar a tragédia. O interesse por estes milhões de seres humanos não passou de um fogo de palha, e a indiferença voltou a se impor sobre os espíritos.

Humanamente falando, é chocante e imoral que se possa especular impunemente sobre os alimentos básicos. Mas, para os especuladores, os produtos agrícolas são uma mercadoria como todas as demais. Eles não se preocupam com as consequências que suas ações especulativas possam ter sobre milhões de seres humanos. Eles apostam alto, e isso é tudo.

A especulação com produtos alimentares se intensificou a partir de 2004. Em Paris, por exemplo, entre 2005 e 2007, os contratos de compra e venda de trigo passaram de 210.000 para 970.000! Até o Senado norteamericano se mostrou preocupado com a notícia de que há empresas que assinaram, de uma só vez, 130.000 contratos de comércio de trigo, 20 vezes mais que o limite autorizado normalmente pelos operadores financeiros.

Entre 2003 e 2008 a especulação sobre produtos primrios aumentou 2.300%! E segundo a FAO, apenas 2% dos contratos futuros desses produtos chegam efetivamente a entregar a mercadoria: 98% renegociam os contratos com outros especuladores antes de expirar! Quanto mais sobem os preços dos produtos alimentares mais esse mercado atrai investimentos e mais sobem os preços.

Não haveria crise alimentar se não houvesse especulação. Esta não é a única causa da crise, mas a acelerou e agravou. Os mercados agrícolas são naturalmente instáveis, mas a especulação a amplifica brutalmente. Ela torna difícil o planejamento da produção, e pode provocar o aumento brutal dos gastos dos países importadores de alimentos.

Em janeiro de 2001 o próprio Fórum Econômico Mundial de Davos reconheceu que o aumento do preço dos produtos primários, especialmente dos produtos alimentares, é, ao lado do uso de armas de destruição massiva pelos terroristas, uma das cinco maiores ameaças ao bem-estar dos povos. Mas não será certamente Davos que se preocupará com o problema da fome no mundo.

“Que civilização é essa, que não encontrou outra forma de fixar o preço do pão e do arroz que alimentam a humanidade senão o jogo especulativo? As leis do mercado e o direito à alimentação se opõem e excluem radicalmente. Os especuladores jogam com a vida de milhões de seres humanos. Abolir total e imediatamente a especulação sobre os produtos alimentares é uma exigência da razão” (p. 303; cf. p. 287-304).

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