segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Sobre a memoria dos que partiram

O risco de morrer com aqueles que partem

Muita coisa mudou ultimamente também no que se refere ao modo de enfrentar a morte. Restam poucos sinais daquilo que, pouco tempo faz, chamávamos de luto. E aqui não estou me referindo aos trajes escuros que os parentes de um finado usavam durante quarenta dias ou mais, mas àquele tempo necessário para assimilar uma perda significativa e acolher uma herança humana e espiritual. Num tempo que parece se precipar sobre os seres humanos para devorá-los, doença, morte e despedida são vistos como momentos fugazes que não podem estrapolar a agenda de  uma semana.

Em que medida as pessoas consagradas conseguem distrair ou despistar a ação do Kronos, esta divindade niveladora e devoradora, sobre nossa vida? Penso que também nós caímos na sua terrível armadilha, mesmo que procuremos apresentá-la como saudável e confortável habitação, revestindo-a com os arranjos tomados de empréstimo ao comportamento-padrão. Em nome de um pretensamente sadio realismo, por ocasião da definitiva e exigente passagem de um coirmão dispensamos as missas de sétimo e trigésimo dia e nos entregamos com sofreguidão às cotidianas atividades, inclusive aquelas carimbadas como apostólicas, com a desculpa esfarrapada de que a vida continua.

Não seria o caso de se perguntar se este comportamento ajuda ou dificulta nosso processo de emancipação e humanização? Não seria este um artifício para consolidar o mito da vida sem ocaso e para não encarar com objetividade nossa temível vulnerabilidade? Menosprezando e evitando os ritos e espaços que nos possibilitariam assimilar pedagogicamente as perdas significativas e acolher responsavelmente a herança que as pessoas queridas nos deixam não estaríamos dando passos rumo a uma vida que não passa de uma sucessão fortuita de momentos horizontais e vazios? E esvaziando a vida das pessoas que partem, reduzindo-as a uma simples data de nascimento e de morte, não estaríamos cavando nossa própria sepultura e nulidade?

Estas perguntas me vieram à mente a partir daquilo que ouvi hoje no encontro da nossa Comunidade religiosa de Passo Fundo, por ocasião da avaliação do ano. A doença e a partida dos cinco coirmãos queridos foi citada pela maioria dos colegas como o aspecto mais denso e significativo deste ano. Mas me parece que esta densidade resultou em pouca partilha, poucos gestos e símbolos – em parca linguagem! – que pudessem nos auxiliar na elaboração das perdas e do enriquecimento que nos possibilitaram, assim como daquilo que nos revelaram e ensinaram sobre nós mesmos. Nem lembranças, nem celebrações especiais, nem visitas. Não há aqui o risco de matar definitivamente aqueles que se foram, e morrer antecipadamente com eles?

Itacir Brassiani msf

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