segunda-feira, 31 de março de 2025

O encontro vivo com Jesus liberta

O encontro vivo com Jesus nos liberta e nos emancipa | 669 | 01.04.2025 | João 5,1-16

Segundo o evangelho de João, esta é a segunda vez que Jesus vai a Jerusalém, mas desta vez não se diz que ele foi ao templo. João também não diz qual era a festa que se celebrava naquele momento. Mas isso não importa, porque Jesus relativiza tanto o templo como as festas religiosas promovidas nele. O templo não é mais o lugar da memória, da fé e da vida!

A piscina conhecida como casa da misericórdia não promove misericórdia nenhuma. Em torno dela temos um retrato da multidão de gente excluída que se amontoa em Jerusalém. Somente os “puros”, os “bons” podem entrar no templo, e é o próprio templo que impõe a lei segundo a qual somente “os primeiros” seriam beneficiados com a esperada cura.

O homem paralisado há trinta e oito anos é figura da imensa maioria do povo: excluída sem piedade do templo e das suas festas religiosas. No templo não há lugar para a fé que liberta, mas vigora a competição que exclui e a perseguição que mata, como comprovará Jesus. Assim como o templo e suas festas não servem para nada, também a água da piscina, como a água do poço de Jacó, só consolidam e aumentam a discriminação.

Jesus visita Jerusalém sem chamar a atenção sobre si, e nem sequer se apresenta à multidão excluída e ao homem paralisado que esperam em torno da piscina. Ele também não dá a mínima importância para o templo e suas leis. Jesus sabe que as festas são ocasionais e que a exclusão é permanente. Sabe também que a Lei e o Templo não libertam ninguém, pois são os próprios causadores da prostração e da exclusão do povo.

Jesus não mergulha o paralítico na água, nem o manda lançar-se na piscina. Ele simplesmente ordena que ele se levante e caminhe por si mesmo, libertando-o das amarras e fardos da lei. A cama na qual estava preso é exatamente o símbolo da Lei! Estimulado por Jesus, o homem, emancipado, não leva mais a Lei em conta e pode peregrinar na esperança.

Por isso, Jesus vai buscar (e não “encontrar”) o homem curado no templo. Ser libertado à margem da Lei e contra as regras do templo e continuar submisso a elas significaria recair no pecado. Na Lei e no Templo ninguém encontra confirmação de sua liberdade nem da sua dignidade, mas apenas discriminação, perseguição e morte.

 

Meditação:

§ Situe-se no interior da cena, observe a atitude de Jesus em meio à multidão que se acotovelava para conseguir “uma vaga” na água

§ Observe atentamente cada palavra que Jesus fala e cada gesto ou ação que ele executa, captando seu sentido profundo

§ Você consegue perceber como o episódio é uma denúncia forte contra o uso das leis e cultos para manter as pessoas dominadas?

§ O que a palavra e a prática de Jesus nos ensina sobre o uso abusivo da religião para premiar alguns e submeter multidões?

domingo, 30 de março de 2025

A força da Palavra

Quem acredita na Palavra de Jesus verá a vida se multiplicar | 668 | 31.03.2025 | João 4,43-54

Esta cena está literariamente situada logo após a cena do encontro e diálogo de Jesus com uma mulher samaritana. E nós a contemplamos e acolhemos sua mensagem no contexto litúrgico e espiritual da adesão à Boa Notícia do Reino de Deus e da conversão a ela, como sublinha o tempo quaresmal. Converter-se é acreditar no Evangelho e assumi-lo como regra.

Jesus está voltando para a região onde se criara, passando pela complicada região da Samaria: marcado pelo desprezo pelo pessoal da Judeia, os samaritanos devolviam na mesma moeda. Mesmo sabendo que os profetas são desprezados em sua própria terra, ele é recebido com boa disposição, pois seus cidadãos haviam sido informados das ações de Jesus na capital.

Informado sobre os sinais que Jesus realizara no templo (expulsara os vendedores), um funcionário do rei busca em Jesus uma ajuda para seu filho, que está gravemente enfermo. Quer que Jesus o cure, ao que parece, preferencialmente com um milagre grandioso e espetacular.

Ao menos, é isso que que Jesus denota na sua resposta ou advertência ao funcionário da corte. Quem é habituado aos corredores do poder, age como tal e espera que Deus também intervenha no mundo com gestos de poder. Ele mesmo trata o filho como dependente de um chefe, pois o chama de “menino”, expressão que caracteriza menoridade.

O funcionário se dá conta que imagina Jesus apenas como uma autoridade corajosa, poderosa e reformista, e pede a Jesus para “descer”. Esse verbo diz mais que um movimento físico, e alude ao nível humano. Jesus declara que o filho dele vive, sem dizer que ele estava curado. Jesus não vai a Cafarnaum, mas “desce”: não realiza um gesto de poder, mas um gesto humano, tão humano que revela sua divindade.

O funcionário do rei reconhece a força da Palavra de Jesus e obedece a ela. É a Palavra de Jesus que devolve a vida. O funcionário precisa ir e ver, mas não há nenhum gesto grandioso. Ele não deve tratar o filho como dependente (“menino”) mas como filho. Jesus atende o pedido desse homem pagão e próximo ao poder sem pedir nada em troca, pois está disposto a ajudar a todos. Mas tudo acontece quando Jesus e o funcionário “descem” da esfera das relações de poder à esfera das relações humanas.

 

Meditação:

§ Situe-se no interior da cena, observe a atitude do funcionário do rei, assim como a postura e as palavras de Jesus

§ Você percebe como o funcionário real demonstra pensar, falar e agir segundo a lógica das funções de poder?

§ Em que medida também nós esperamos de Jesus gestos e ações espetaculares, que dispensem nossa colaboração?

§ Que mudanças em nosso modo de pensar e de agir esta cena pede de nós, enquanto caminhamos para a páscoa?

sábado, 29 de março de 2025

Reconciliemo-nos!

Reconciliemo-nos com Deus, com os irmãos e com a natureza! | 667 | 30.03.2025 | Lucas 15,1-3.11-32

Avançando em nossa caminhada quaresmal, neste quarto domingo a Igreja nos brinda hoje com uma das mais belas e conhecidas páginas dos evangelhos: a conhecida parábola do filho pródigo, que seria mais justo chamar de “parábola do pai misericordioso”. Explico: partindo das tensões descritas nos versos 1-3, fica claro que os protagonistas são o pai e o filho mais velho, e o personagem central da cena não é o filho mais novo.

Enquanto os publicanos e demais categorias de gente considerada “pecadora” se aproximam e confraternizam com Jesus, os fariseus o acusam de aliar-se com gente suspeita. Evidentemente, quem critica e acusa se sente melhor que os outros, superior ou com mais méritos que aqueles que são acolhidos por Jesus. E a parábola tem exatamente o objetivo de ilustrar como Deus costuma tratar seus filhos e filhas.

Observemos que o pai tem dois filhos: o filho mais novo cai na miséria mais extrema, vivendo como estrangeiro e forçado a se alimentar da ração dada aos porcos (imagem dos publicanos e demais pecadores); o filho mais velho, cumpridor minucioso das leis e costumes, tem tudo e mais do que necessita (figura dos fariseus). O primeiro tem a sensação de não ser filho de Deus; o segundo, se vê cheio de direitos e não aceita a misericórdia.

O pai, que é figura e imagem do Deus do Reino, em nome de quem Jesus age, trata a ambos como filhos necessitados de acolhida e amparo, mesmo que não mereçam este tratamento. O pai não se interessa pela contrição do filho em situação de miséria e nem deixa que ele termine seu “ato de contrição”. Deus é Pai, e não juiz ou delegado de polícia! Ele não trata ninguém como empregado, pois todos são seus filhos, e jamais deixam de sê-lo. Neste mundo, que é sua casa, ele não quer que uns fiquem com tudo e outros fiquem sem nada, que uns lamentem e outros festejem.

É claro que esta parábola é um chamado contundente à conversão. Mas este chamado é dirigido ao filho mais velho! É ele que não reconhece o amor do pai, não dialoga com o irmão, não o reconhece como tal, nega a fraternidade que torna todos iguais, e defende a primazia do mérito, que nos separa e nos coloca uns acima dos outros. O filho mais novo, mais necessitado, entra para a festa. E o filho mais velho, será capaz de fazê-lo?

 

Meditação:

§ Leia atentamente essa parábola, considerando os versículos iniciais e a atitude do pai e do irmão mais velho

§ Qual é hoje a reação dos cristãos diante do chamado da Igreja e do Papa a uma fraternidade sem fronteiras e a uma ecologia integral?

§ Como você se sente diante dessa parábola? Você concorda e aceita tranquilamente a atitude do pai?

§ Com qual dos três personagens você se sente identificado? Com qual deles precisa se identificar para seguir Jesus de verdade?

Por uma ecologia integral

Guardiões e guardiães da obra do Criador

Há alguns anos, quando os movimentos ambientalistas davam seus primeiros passos, eram recorrentes as críticas à Bíblia e aos movimentos religiosos que nela se fundamentam (judaísmo e cristianismo). Dizia-se que a “ordem” de Deus para que o ser humano se multiplicasse, povoasse e dominasse a terra” (cf. Gn 1,22) deu origem e sustentação ao movimento de apropriação, exploração e deterioração da natureza.

Ignorava-se naquele tempo que, por vários milênios, essa “ordem” não provocara danos relevantes. E que isso só veio a ocorrer no alvorecer da era moderna, com a ascensão e hegemonia do paradigma econômico extrativista, industrial e consumista. É nesse período que a ideologia da supremacia absoluta do ser humano sobre as demais criaturas toma corpo e justifica a posse e a exploração ilimitada dos bens.

Graças a esses questionamentos, e à crescente importância que a questão ambiental foi adquirindo nas últimas décadas, o cristianismo fez uma releitura crítica da sua interpretação do texto citado que alguns dos seus pronunciamentos veiculavam ou sugeriam. E formulou o horizonte que possibilita uma compreensão correta e responsável: criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26), o ser humano é por ele chamado a cuidar, guardar e administrar as demais criaturas (cf. Gn 2,8).

Não faz sentido afirmar que a natureza que é violenta e inimiga do ser humano, que ela precisa ser dominada pelo homem, se o próprio Deus a contempla e diz que tudo é muito bom (cf. Gn 1,31).  Não tem fundamento ensinar que há separação ou oposição entre o ser humano e as demais criaturas, se todos somos obra das mãos do mesmo Deus. Um ser humano arrogante e depredador das demais criaturas está muito longe da imagem de Deus segundo a qual foi criado.

É numa relação de mansidão, proteção e cuidado de todos os seres viventes que expressamos nossa semelhança com Deus. A missão que Deus nos confia é “descobrir a beleza, a bondade, a singularidade, a diversidade e a agradabilidade de todos os seres” (Texto-base da CF, § 69).  Qualquer prática de exploração irresponsável, posse absoluta ou destruição criminosa da obra da criação é contrária a essa missão.

Esta compreensão aparece também no pensamento dos povos originários, e é confirmada pela ciência. O pensamento científico afirma que todos os seres vivos, desde a bactéria que surgiu a mais de três bilhões de anos, passando pelos dinossauros e chegando ao ser humano, possuem o mesmo código genético de base, os mesmos 20 aminoácidos e as mesmas bases fosfatadas. De fato, tudo está interligado. Somos todos irmãos e irmãs, mas não nos tratamos como tais.

O Cacique Seattle nos adverte, ainda em 1855: “Ensinai aos vossos filhos o que ensinamos aos nossos: a terra é nossa mãe; ela não pertence ao homem branco, é o homem branco que pertence a ela; se os homens cospem na terra, estão cuspindo em si mesmos; o que fere a terra, fere também os filhos da terra; o homem não tece a teia da vida, mas é apenas um dos seus fios”. Como dizem os Bispos do Brasil: da criação não somos proprietários, mas guardiões (cf. Texto-base da CF, § 129 e 25).

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo diocesano de Santa Cruz do a Sul

sexta-feira, 28 de março de 2025

Quem se eleva será humilhado

Quem se eleva será humilhado, e o humilde será elevado | 666 | 29.03.2025 | Lucas 18,9-14

Só não vê quem não quer, para não ter que mudar de atitude: vivemos numa sociedade polarizada, com grupos contrapostos por ideologias e por disputa de espaços e poderes. O argumento moral – “nós, os cidadãos de bem; eles, os malfeitores, preguiçosos” – é usado com uma frequência espantosa. E a ideologia da meritocracia acabou oferecendo uma justificação adequada a esta divisão social.

Alguém pode se surpreender ao constatar que esta mesma postura estava presente na sociedade e no contexto cultural no qual Jesus de Nazaré viveu e atuou. Naquele tempo, vigorava o muro ideológico e religioso que separava puros e impuros e os colocava uns contra os outros. A ideologia da pureza – que misturava critérios sanitários, religiosos, morais, étnicos e sociais – definia quem era puro e quem era impuro, ou melhor, quem era “cidadão de bem” ou “elemento suspeito”.

Na parábola de hoje, estes dois grupos ou setores sociais estão tipificados no fariseu e no publicado. O primeiro, se considera e é tratado como homem correto, merecedor, justo, superior, ou cidadão digno. O segundo, é visto e tratado como suspeito, sujo, herege, sem dignidade e sem direito ao respeito e à cidadania. Chama a atenção que a prática da oração não os torna iguais perante a Deus, apenas escancara as diferenças.

Para Jesus e seu Evangelho, ninguém pode se arrogar o status de melhor que os outros, superior, honrado, merecedor. Todos – fariseus e publicanos – são pecadores e necessitam de conversão. O fariseu, que manifesta na oração seu orgulho e seu desprezo pelos outros, exatamente por isso também é pecador. A diferença é que o publicano, explicitando a dor da exclusão e a percepção das próprias contradições, é acolhido e justificado, enquanto que o fariseu, que se considera justo, melhor e superior aos demais, continua devendo.

A humildade não é um simples ou falso sentimento de inferioridade, mas a consciência justa e correta daquilo que somos: vazio, dependência, ambiguidade, desejo. É o reconhecimento de que somos todos devedores uns aos outros, de que ninguém – começando por nós mesmos – é maior ou melhor que ninguém. Somos o que somos por graça de Deus.

 

Meditação:

§ Situe-se no templo, como quem foi rezar com o fariseu e o publicano, e observe a postura e as palavras de cada um

§ Com qual deles você se parece quando reza? Você se apresenta diante de Deus ostentando seus méritos?

§ Você considera a humildade uma limitação à sua personalidade e o orgulho e o mérito uma expressão de sua grandeza?

§ Como assumir com serenidade e verdade diante de Deus a nossa condição de pecadores e devedor necessitados de misericórdia?

Um pai e dois filhos

COMO JESUS EXPERIMENTA DEUS?

Jesus não queria que o povo da Galileia sentisse Deus como um rei, um senhor ou um juiz. Ele experimentou-o como um pai incrivelmente bom. Na parábola do bom pai mostrou-lhes como imaginava Deus.

Deus é como um pai que não pensa na sua própria herança. Respeite as decisões dos seus filhos. Não se ofende quando um deles o considera morto e lhe pede a sua parte na herança.

Vê-o sair de casa com tristeza, mas nunca o esquece. Aquele filho poderá sempre voltar para casa sem medo. Quando um dia o vê chegar faminto e humilhado, o pai comove-se, perde o controlo e corre ao encontro do filho.

Esquece a sua dignidade de senhor da família e abraça-o e beija-o efusivamente como uma mãe. Interrompe a sua confissão para poupá-lo a mais humilhações. Já sofreu o suficiente. Não necessita de explicações para o receber como filho. Não impõe qualquer punição. Não lhe exige um ritual de purificação. Não parece sentir sequer a necessidade de manifestar-lhe o seu perdão. Não é necessário. Nunca deixou de o amar. Sempre procurou para ele o melhor.

Ele mesmo se preocupa de que o seu filho se sinta de novo bem. Oferece-lhe o anel da casa e o melhor vestido. Oferece uma festa para toda a cidade. Haverá banquete, música e dança. O filho deve conhecer junto do pai a boa celebração da vida, não a diversão falsa que procurava entre as prostitutas pagãs.

Assim sentia Jesus a Deus e assim o repetiria também hoje a quem vive longe d’Ele e começam a ver-se como «perdidos» no meio da vida. Qualquer teologia, pregação ou catequese que esqueça esta parábola central de Jesus e impede de experimentar Deus como Pai respeitoso e bom, que acolhe os seus filhos e filhas perdidos, oferecendo-lhes o seu perdão gratuito e incondicional, não provém de Jesus nem transmite a sua Boa Nova de Deus.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 27 de março de 2025

Ame a Deus acima de tudo

Ame a Deus acima de tudo, e tudo o mais como criaturas irmãs | Marcos 12,28-34

A cena oferecida à nossa leitura neste dia da quaresma, mesmo parecendo bastante tranquila e isenta de provocações, faz parte das armadilhas que os chefes do judaísmo colocam a Jesus com a intenção de acusá-lo e das tensas disputas teológicas e políticas com ele. Não esqueçamos que elas ocorrem no ambiente do templo, do qual Jesus já havia expulsado os comerciantes. Este é o último confronto de Jesus antes de ser preso, condenado, torturado e crucificado.

No centro da disputa de hoje está a questão do primeiro ou principal mandamento da ética religiosa judaica. Quem questiona e chama ao debate é um mestre da lei, que disfarça sua intenção ardilosa falando num tom aparentemente simpático. Ele pergunta pelo “primeiro de todos os mandamentos”. Jesus responde no horizonte de uma ortodoxia cautelosa, mas se atreve a juntar ao mandamento de amar a Deus (cf. Dt 6,4-13), amplamente conhecido e aceito, o mandamento de amar ao próximo (cf. Lv 19,18). “Não existe outro mandamento maior que estes!”

É importante perceber ainda que, no primeiro testamento, o mandamento “ame ao seu próximo como a si mesmo” não vem isolado, mas está situado num conjunto mais amplo de normas que se opõem às práticas de opressão, exploração e indiferença em relação aos mais pobres das tribos de Javé (cf. Lv 19,9-18). Anteriormente, Jesus havia dito que estas normas são violadas abertamente pelos escribas. Para Jesus, o céu precisa vir à terra, e a terra é o único caminho para o céu. Não há lugar para escapismos e espiritualismos de qualquer espécie.

O texto termina dizendo que ninguém mais se atrevia a apresentar armadilhas a Jesus. Ele venceu todos os seus opositores: expulsou os comerciantes do templo, enfrentou as ciladas de fariseus e saduceus sem cair nelas, questionou a legitimidade e os privilégios dos chefes, assumiu seu papel de mestre. Em síntese, “amarrou o homem forte e reconquistou sua casa”, como refletíamos ontem (cf. Mc 3,27).

No caminho da conversão precisamos decidir quem manda em nós: Jesus e seu evangelho da fraternidade, ou o Mercado, que incensa o consumismo individualista e predatório, que trata tudo – as pessoas e todas as demais criaturas – como se fossem bens dos quais pode se apropriar e desfrutar.

 

Meditação:

§ Situe-se no interior da cena, no templo, diante de Jesus e do escriba, especialista nos mandamentos

§ O escriba parece candidato a discípulo, seu tom é simpático, mas é ardiloso e enganador, como os outros

§ Estaríamos nós também comprometidos com a manutenção das relações de dominação e legitimando-as com falsa ortodoxia?

§ Perceba a novidade corajosa de Jesus: ele une o amor a Deus e o amor ao próximo, e faz dos dois um só mandamento

quarta-feira, 26 de março de 2025

Não fechar o coração

Oxalá ouçamos hoje a voz do Senhor | 664 | 27.03.2025 | Lucas 11,14-23

Jesus acabara de ensinar os discípulos a rezar, sublinhando a necessidade de pedir com confiança, pois Deus é pai. Mas isso não livra Jesus de reações diversas e contraditórias frente à sua pessoa e às suas ações. Enquanto as multidões ficam admiradas com seu ensino e suas ações libertadoras, as autoridades religiosas questionam suas credenciais. E pedem com insistência que diga em nome de quem ele vive, prega e age.

Por ocasião da libertação de uma pessoa do domínio do demônio, os questionamentos viram acusação curta e grossa: “É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios”. É a mais grave acusação que pode ser dirigida a uma pessoa: a acusação de ser aliado e executivo do demônio. Partindo dessa acusação, Jesus discorre sobre o sentido do que ele faz, questiona as práticas do judaísmo e alerta seus discípulos.

Quando liberta uma pessoa de algo que limita sua personalidade, Jesus não age como quem realiza sinais espetaculares para impressionar, nem recorre a poderes mágicos. As curas e libertações que opera, sempre em benefício de pessoas vulneráveis e necessitadas, são sinais eficazes do dinamismo do Reino de Deus que está ativo no mundo. Ele não é enviado ou parceiro do diabo, mas filho e enviado de Deus.

Para refutar a grave acusação que dirigem contra ele, Jesus recorre a duas experiências familiares aos seus ouvintes: um reino dividido prepara a própria ruína; ninguém combate a si mesmo, nem desfere tiros nos amigos; quando a casa de um homem forte e bem armado é atacada e dominada por outro homem mais forte ainda, o dono acaba expulso e seus bens mudam de dono. Jesus é esse homem mais forte, que restituiu a liberdade a todas as pessoas vítimas dos agentes do mal e expulsa o “dominador”.

Por fim, Jesus faz uma advertência a todos os que foram acolhidos e justificados por ele: ninguém pode se sentir imunizado e melhor que os outros, nem considerar a salvação como adquirida e merecida. Nossa liberdade se mantém e se renova na luta pela liberdade dos outros. Nossa condição de filhos, irmãos e herdeiros é sempre precária, e precisa ser reassumida diariamente. A necessária celebração da vitória não pode esconder a continuidade da luta.

 

Meditação:

§ Leia atentamente esta breve, tensa e complexa discussão de Jesus com seus acusadores, que são lideranças religiosas do judaísmo

§ Acusações semelhantes àquela feita contra Jesus não estão sendo feitas hoje aos cristãos, igrejas e organizações mais progressistas?

§ O que significam as críticas desrespeitosas que alguns grupos católicos dirigem contra a Conferência dos Bispos do Brasil e contra o Papa?

§ O que dizer das pessoas e grupos que se julgam superiores, mais puras e ortodoxas que o próprio Papa e a Conferência dos Bispos?

terça-feira, 25 de março de 2025

A plena realização da profecia e da lei

Jesus é a mais plena realização da profecia e da lei | 663 | 26.03.2025 | Mateus 5,17-19

Os evangelhos não deixam dúvidas: aos olhos de grande parte dos seus contemporâneos, Jesus era um anarquista que estimulava a desobediência religiosa e civil. A liberdade daqueles que se fizeram seus discípulos também causou preocupações, até por causa do exagero de alguns. Daí a pergunta: Jesus teria vindo da parte de Deus para abolir a Lei?

Estamos na primeira grande “aula” no processo de formação dos discípulos, que conhecemos como “sermão da montanha”. É claro que a indicação das características das pessoas que são “bem-aventurados”, os santos, as pessoas que agradam a Deus, causou um certo desconcerto, e não apenas naquele tempo. A intervenção de Jesus que refletimos hoje procura esclarecer e colocar as coisas no seu devido lugar.

As citações diretas das escrituras que podemos ler nos capítulos anteriores de Mateus já poderiam ter eliminado as dúvidas: tudo na vida de Jesus ocorre “para que se cumpra a Lei”. Mas então, se fosse simples assim, Jesus seria apenas um profeta judeu como todos os outros, ou um simples reformador dos costumes? Nele só haveria continuidade, sem nenhuma espécie de ruptura em relação ao judaísmo?

Para responder a estas interrogações, Jesus começa com uma advertência: “Não pensem que eu vim abolir a Lei e os Profetas!” Tanto a Lei como os Profetas, continuam como uma espécie de pedagogos até que o Reino de Deus seja consumado, até que passe este velho sistema social, cultural e religioso (“o céu e a terra”). “Eu vim para cumprir plenamente” tanto a Lei como a Profecia, diz Jesus. Para ele, a prática dos escribas e fariseus era ostensivamente parcial e imperfeita.

A expressão “em verdade, em verdade, eu vos digo” enfatiza a autoridade de Jesus. Ele é o cumpridor do sentido profético da Lei, até então escondido aos judeus. Jesus se apresenta como a “chave” que abre o sentido das escrituras, que devem ser lidas e revistas a partir daquilo que ele viveu e ensinou. Desobedecendo (ou ultrapassando) as leis para atender as necessidades das pessoas vulneráveis, Jesus se mostra um profeta, e manifesta o verdadeiro sentido e o objetivo último da Lei. Quem o segue deva estar disposto a renunciar ao legalismo e ao medo.

 

Meditação:

·    Você não tem a impressão de que, com seu ensino e sua prática, Jesus estimula uma postura desobediente e anárquica frente às leis?

·    Você não acha que, por outro lado, muitas pregações e práticas de hoje prendem Jesus à simples e inflexível obediência às leis e costumes?

·    O que significa para nós, hoje, levar a sério que Jesus cumpre e revela plenamente as escrituras anteriores a ele?

·    Quais as implicações de assumir “o olhar, o agir e o sentir” de Jesus como chaves para a leitura das Escrituras Sagradas?

segunda-feira, 24 de março de 2025

Encontraste graça diante de Deus!

Alegra-te, pois encontraste graça diante de Deus! | 662 | 25.03.2025 | Lucas 1,26-38

Hoje a Igreja católica nos propõe a solenidade da anunciação do nascimento de Jesus, celebrada a exatamente nove meses do Natal. E o texto do evangelho de Lucas ilumina esta solenidade cristológica. Minha amiga Inez Maciel, a “doce pimentinha”, chama Maria de “Graciosa”, mas essa graça ela recebe do Filho e compartilha com ele.

No texto de hoje, o papel central fica com o Anjo Gabriel. O clima geral é de intenso júbilo. O Mensageiro de Deus saúda Maria com uma expressão que significa “Esteja bem! Tudo de bom!” E diz que o “charme” dela encantou o próprio Deus. Mas isso terá consequências, pois Maria terá que mudar os planos que traçara.

É claro que o anjo Gabriel não está se referindo apenas à eventual e imaginável formosura física de Maria de Nazaré, mas à sua humanidade, original e sem pecado, como a criação tal como foi sonhada por Deus. Ela é a imagem da pessoa humana na qual brilha a imagem de Deus.

Sendo acolhedora, disponível e serviçal, Maria não é, de modo algum, uma mulher passiva, sem personalidade. Antes, mostra-se uma mulher atenta e reflexiva. Ela pede explicações, interroga o Anjo, quer compreender. E descobrirá a misteriosa ação que Deus realiza nela e através dela, dando prioridade aos humildes e marginalizados.

Dizendo que “o poder do altíssimo a cobrirá com sua sombra”, o Anjo se refere à nuvem que escondia e manifestava a glória de Deus no êxodo do povo hebreu, e apresenta Maria como tenda da presença de Deus no mundo. E o filho que dela nascerá abrirá o caminho de uma para uma nova terra, na qual floresce o cuidado, a liberdade e a fraternidade.

E o próprio anjo antecipa alguns traços do filho que vem anunciar a Maria: ele será grande, será chamado filho do altíssimo, será santo por sua ação profética, filho de Deus, e herdará o espírito do pastor Davi, o parceiro dos pobres. No nome que lhe será dado, está escondida sua missão: Deus é salvação. Isso significa que, em Jesus, Deus não se mostrará juiz ou legislador, mas libertador.

 

Meditação:

§ Releia atentamente o texto, imaginando-se presente e ativo na anunciação, naquele lugar perdido e obscuro da Galileia

§ Observe o que o anjo antecipa sobre Jesus de Nazaré, o filho recém-anunciado que nascerá de Maria

§ Tome como dirigidas a você as palavras do Mensageiro de Deus: “Alegra-te, cheio de graça! O Senhor está contigo!

§ Procure inserir seu projeto de vida no projeto que Deus tem para a humanidade e para você

domingo, 23 de março de 2025

A quem Jesus prioriza?

A prioridade de Jesus e dos cristãos são os mais necessitados | 661 | 24.03.2025 | Lucas 4,24-30

Depois de termos refletido ontem sobre cena na qual Jesus questiona a ideologia que atribui à ira de Deus os desastres históricos e diz que as vítimas são pecadoras, somos levados à estreia da sua vida pública em Nazaré. E ele começara “demarcando o campo”, lendo um trecho do profeta Isaías e terminando com uma breve e explosiva “homilia”: “Hoje se cumpriu essa passagem da escritura que vocês acabaram de ouvir”.

A reação dos seus conterrâneos e coetâneos é contraditória: por um lado, admiração e aplausos; por outro, escândalo, críticas e até ameaças. Enquanto uns se impressionavam pela coragem e sabedoria das suas palavras, outros tropeçavam na sua origem humilde e pobre. Ademais, sua postura pouco exclusivista em benefício dos seus concidadãos, e pouco nacionalista por alargar as fronteiras da sua missão para todos os pobres começa a causar estranheza e incômodo inclusive aos mais próximos.

Jesus conhece a história da profecia, expressão da vontade de Deus especialmente nos momentos mais críticos da vida social e religiosa. Deus não considera os vínculos étnicos, tribais e nacionais na sua ação libertadora. E os profetas, quando autênticos, se movem na mesma direção e com a mesma liberdade. Por isso, sempre sofrem rejeição por parte daqueles que se consideram melhores, superiores, mais merecedores, começando pelos que lhes são mais próximos ou parecem mais piedosos.

Jesus não realiza nenhum milagre em benefício exclusivo dos seus conterrâneos e, com isso, frustra as expectativas e interesses deles. Ele não se submete aos interesses de pequenos grupos. Os caminhos de Deus seguem outra lógica: Deus prioriza as pessoas e grupos sociais mais necessitados, aqueles que não contam e não valem aos olhos dos grupos que controlam o poder, aqueles que são “diferentes” ou “estão longe” e, por isso, são tornados invisíveis e são menosprezados.

Jesus busca como prova dessa lógica de Deus dois fatos antigos. Mesmo que existissem muitas viúvas pobres em Israel, o profeta Elias foi socorreu apenas uma viúva estrangeira. Mesmo diante de muitos leprosos hebreus, Eliseu priorizou a cura de um leproso estrangeiro. Cabe-nos assimilar e viver o amor sem fronteiras de Deus. É este o caminho da conversão.

 

Meditação:

§ Leia atentamente a narração desta primeira manifestação e rejeição pública de Jesus na cidade de onde se criara

§ Dá para entender que, recordando Elias e Eliseu, Jesus está pedindo que a Igreja abra suas portas às pessoas discriminadas?

§ Em que medida também nós estaríamos alimentando a ideia de que Deus deve beneficiar primeiro os “nossos”?

§ No horizonte da Campanha da Fraternidade, quem faria parte desses grupos considerados desprezíveis e “estrangeiros”?

sábado, 22 de março de 2025

As vítimas das enchentes eram mais pecadoras que nós?

Será que as vítimas das enchentes eram mais pecadoras que nós? | 660 | 23.03.2025 | Lucas 13,1-9

No evangelho de ontem Jesus nos dizia que Deus é como um Pai que se alegra e faz festa quando um filho ou filha acessa um patamar de vida mais digna. Ele chama todos aqueles que, sendo donos de “meio mundo”, murmuram e protestam quando as pessoas vulneráveis são tratadas conforme o que necessitam, e não de acordo com o que merecem.

No evangelho de hoje, o ensino de Jesus é motivado por duas violentas tragédias, bem conhecidas dos seus contemporâneos. A primeira é recente, e comunicada a Jesus por algumas pessoas: a violenta repressão perpetrada por Pilatos contra um grupo de galileus, no interior do próprio templo. A segunda, que o próprio Jesus acrescenta, chamando a atenção dos seus ouvintes, havia acontecido anteriormente: a queda acidental de uma torre de guarda sobre algumas pessoas.

Jesus parte destes dois acontecimentos para corrigir uma visão parcial e errônea dos seus discípulos e demais contemporâneos, e para chamar todos à conversão ao Reino de Deus. Muita gente via acontecimentos semelhantes como sinais da punição de Deus reservada aos pecadores. Por isso, a pergunta incisiva de Jesus: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?”

Jesus quer desfazer a ideia de que as vítimas são as culpadas, e lê estes acontecimentos numa perspectiva profética: precisamos perceber neles um chamado à mudança de vida e de mentalidade. “Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”, repete Jesus, como um refrão. Trata-se de fazer as pazes com a criação inteira, de cuidar da casa comum, de viver de modo fraterno e solidário. Ou será que as vítimas das inesquecíveis enchentes eram mais pecadoras que nós?

Mas isso deve ser feito sem nenhuma demora, com senso de urgência. Deus tem paciência com quem não produz frutos, mas ele tem seu calendário! À figueira estéril, que persistia sem frutos, o agricultor da parábola dá só mais um ano! Ele cuida e trata com atenção e delicadeza, mas não é bobo. Aprendamos a contar nossos dias, não percamos a hora da graça, não deixemos para amanhã os passos que podemos dar hoje.

 

Meditação:

§ Você percebe, em você, na sua família e na sua comunidade, a velha ideia de que as recorrentes tragédias são castigos de Deus?

§ Quais são as consequências pessoais e eclesiais da afirmação de que ninguém é mais pecador que ninguém?

§ Será que, num certo sentido, alguns grupos religiosos atuais não estão presos à mesma mentalidade que Jesus reprova neste texto?

§ O que fazer para levar a sério a parábola da figueira que não produz frutos e recebe mais uma chance?