sábado, 8 de março de 2025

Não nos deixeis cair em tentação

Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal! | 646 | 09.03.2025 | Lucas 4,1-13

O Espírito leva Jesus ao deserto, lugar da impotência, da carência e da dependência. O Tentador o conduz aos lugares altos, onde a riqueza e o poder brilham mais. O Diabo personifica as forças que se opõem ao plano de Deus. Jesus se defronta com esses atalhos: fugir das carências comuns a todos as criaturas e agir em causa própria; seguir a lógica da riqueza e do poder que amedronta, expropria e oprime; explorar a fé dos pequenos, manipular as escrituras e transformar a religião num espetáculo.

A segunda proposta do diabo é especialmente tentadora, e seu custo é altíssimo: para ser uma espécie de “dono do mundo”, Jesus teria que renunciar à liberdade e à compaixão “Se te prostrares diante de mim, tudo isso será teu.” Riqueza e poder é o que os adversários da Vontade de Deus oferecem às pessoas que os servem, em troca de obediência e submissão.

Ao dizer que a pessoa humana não vive somente de pão, Jesus propõe a fidelidade à Aliança como garantia de alimento para todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, afirma que não é correto considerar tudo como mérito pessoal. Dizendo que não devemos colocar Deus à prova, Jesus recorda o acontecimento de Massa, quando, atravessando o deserto, os hebreus protestaram contra Deus por causa da falta de água.

Reconhecer nossos vínculos com Deus, com os irmãos e irmãs e com toda a criação, reconhecer que tudo é dom recebido e confiado ao nosso cuidado em favor de todos os seres humanos, é uma forma de manter um horizonte que transcende nossos interesses e medos, e de evitar o risco da idolatria. Deus não limita nem se opõe à autonomia humana, mas questiona os valores e instituições menores que colocamos em seu lugar: dinheiro, poder, raça, indivíduo, nação e até a religião.

Assim como Jesus resistiu às tentações, também seus discípulos podemos vencê-las. Além de lucidez para percebê-las, precisamos de coragem e de estratégias para enfrentá-las. E a quaresma é uma espécie de treinamento especial e intensivo para esta luta. Para resistir às tentações que nos desafiam, mesmo sob uma roupagem de sabedoria, felicidade e sucesso, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo e pelo Evangelho de Jesus Cristo.

 

Meditação:

§ Procure dar a devida atenção a cada tentação (onde ocorre, em que consiste), bem como à resposta de Jesus a elas

§ Quais são as tentações mais fortes e atrativas que hoje tendem a nos afastar do projeto de vida de Jesus?

§ E quais são as tentações que nos provocam quando vemos irromper novas guerras e a pandemia se prolonga?

§ Em que sentido a cena do evangelho de hoje, e toda a vida de Jesus, nos ajudam a vencer estas tentações?

As tentações de Jesus e dos cristãos

LUCIDEZ E FIDELIDADE

Não foi fácil para Jesus manter-se fiel à missão recebida do Pai sem se desviar da sua vontade. Os evangelhos recordam a sua luta interior e as provações que teve de superar, juntamente com os seus discípulos, ao longo da sua vida.

Os mestres da lei perseguiam-no com perguntas capciosas para o submeterem à ordem estabelecida, esquecendo-se do Espírito, que o incitava a curar mesmo ao sábado. Os fariseus pediram-lhe que deixasse de aliviar o sofrimento das pessoas e que realizasse algo mais espetacular, um sinal do céu de proporções cósmicas, com o qual Deus o confirmaria diante de todos.

As tentações chegaram até ele e aos seus discípulos mais amados. Santiago e João pediram-lhe que esquecesse os últimos e pensasse mais em reservar-lhes os cargos de maior honra e poder. Pedro repreendeu-o porque colocava a sua vida em risco e poderia acabar executado.

Sofria Jesus e sofriam também os seus discípulos. Nada era fácil nem claro. Todos tinham de procurar a vontade do Pai, superando provações e tentações de vários tipos. Poucas horas antes de ser preso pelas forças de segurança do templo, Jesus diz-lhes: «Vós sois os que perseverastes comigo nas minhas provações» (Lucas 22,28).

O episódio conhecido como tentações de Jesus é um relato em que se reagrupam e resumem as tentações que Jesus teve que enfrentar ao longo da sua vida. Embora viva movido pelo Espírito recebido no Jordão, não estava livre de ser atraído por falsas formas de messianismo.

Deverá Jesus pensar no seu próprio interesse ou ouvir a vontade do Pai? Deverá impor o seu poder como Messias ou colocar-se ao serviço daqueles que dele necessitam? Deverá procurar a sua própria glória ou manifestar a compaixão de Deus para com aqueles que sofrem? Deveria evitar riscos e a crucificação ou dedicar-se à sua missão confiando no Pai?

O relato das tentações de Jesus foi recolhido nos evangelhos para alertar os seus seguidores. Devemos estar lúcidos. O Espírito de Jesus está vivo na sua Igreja, mas os cristãos não estão livres de falsear uma e outra vez a nossa identidade, caindo em múltiplas tentações.

Para seguirmos Jesus fielmente devemos identificar as tentações que os cristãos enfrentam hoje: a hierarquia e o povo; os líderes religiosos e fiéis. Uma Igreja que não é consciente das suas tentações rapidamente falsificará a sua identidade e a sua missão. Algo assim não está a acontecer conosco? Não precisamos de mais lucidez e vigilância para não cairmos na infidelidade?

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

8 de março

Conversão, cuidado e relações igualitárias

Há dois dias, as comunidades cristãs católicas iniciaram a 61ª Campanha da Fraternidade. Trata-se de um período de intensa reflexão e mobilização em torno de questões específicas que chamam os cristãos à conversão, a uma relação mais atenciosa, fraterna e solidária. Em 2025, a questão central é a ecologia integral, o cuidado da Casa Comum.

Etimologicamente, “ecologia” significa discurso ou reflexão sobre a casa, pensamento sobre ‘nossa casa’ como um todo. Portanto, não se refere apenas de uma abordagem ambientalista. O ambiente é o quintal, não a casa! E o que a Igreja coloca em pauta é mais que isso: são todas as nossas relações, a sociedade que queremos construir e habitar.

Seria muito contraditório preocupar-nos com a natureza enquanto “casa comum” e fechar nossos olhos à “casa-grande” dos países ricos, das elites privilegiadas e das corporações financeiras que vivem à custa do povo, explorado e condenado a viver na ‘senzala”. Cuidar da “casa comum” vai de mãos dadas com a humanização da economia.

Hoje muitos setores preferem usar a expressão “globalização” em lugar de “casa comum”. Ela é o espaço domesticado pela economia neoliberal, no qual os sistemas financeiro, industrial e comercial sentem-se em casa e pode agir sem barreiras. E “não está nem aí” para os setores e povos que “sobram” e com o oceano de dejetos que vai gerando.

Obviamente, a dinâmica do cuidado da “casa comum” deve alcançar também as nossas casas e transformá-las em lar. A “casa” nunca foi sinônimo de igualdade dos que nela habitam: pai e mãe, filhos e filhas, avós e netos, patrões e empregados. Uma ecologia integral deve olhar criticamente também para as relações entre estes diversos sujeitos. São relações de igualdade, gratuidade e reciprocidade, ou dominadoras e violentas?

É por essa porta que introduzo a questão da mulher, trazido à nossa memória pelo Dia Internacional da Mulher. A mesma lógica que corta as veias da natureza e a faz sangrar até à morte sustenta a dominação dos ricos sobre os pobres, sejam eles pessoas ou países, e potencializa a violência do homem sobre a mulher. Em 2024, foram mortas no Brasil 1463 mulheres. Uma a cada seis horas. E isso sem contabilizar outras formas de violência.

Do ponto de vista doutrinal, a Igreja católica deixa claro que “o homem e a mulher têm a mesma dignidade e são de igual nível e valornão só porque ambos, na sua diversidade, são imagem de Deus, mas ainda mais profundamente porque o dinamismo de reciprocidade que anima o “nós” do casal humanoé imagem de Deus. “A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher”, diz a Igreja.

Entretanto, devemos admitir, com humildade e tremor, que ainda custa muito à Igreja católica reconhecer a plena dignidade e cidadania da mulher no seu interior. Não obstante serem elas a maioria dos fiéis e dos agentes de base, são ainda muitas as barreiras que limitam ou interditam a presença e atuação da mulher nas instâncias onde se reflete, decide e julga as questões de fé e de moral. Também nisso precisamos acolher o imperativo do Mestre: “Convertei-vos, e crede no Evangelho!”

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul

sexta-feira, 7 de março de 2025

O Evangelho gera alegria porque não exclui ninguém

O Evangelho gera alegria porque não exclui ninguém | 645 | 08.03.2025 | Lucas 5,27-32

Estamos nos primeiros dias da Quaresma, tempo forte de conversão ao Evangelho de Jesus Cristo. A Campanha da Fraternidade, promovida pelo Conferência Nacional dos Bispo do Brasil, convida todos nós a um empenho generoso e qualificado em vista de uma ecologia integral, incluindo o cuidado com o planeta. Não faz sentido descuidar ou destruir aquilo que o próprio criador disse que era muito bom.

O episódio do evangelho de hoje ocorre depois da pesca abundante, do chamado dos primeiros discípulos e da cura de um leproso e de um paralítico, este último conduzido a Jesus pelos seus amigos. Pedro havia dito a Jesus: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador”; o leproso dissera que era impuro e que Jesus, se quisesse, podia purifica-lo; e ao paralítico, Jesus declarara: “Filho, teus pecados estão perdoados”.

Também Levi e os demais cobradores de impostos eram tratados como pecadores e odiados como infames pelos radicais judeus. Mesmo assim, Jesus novamente desconhece as fronteiras e muros que separam, opõem e hierarquizam pessoas e povos, e chama um pecador suspeito e odiado a ser seu discípulo, sob a murmuração e a reprovação dos fariseus, que se autoconsideravam puros, justos e melhores. Não é por nada que um grande número de pecadores e outras pessoas se reuniram na casa de Levi para festejar alegremente com Jesus esta graça inesperada.

Pecador como Pedro, Levi é chamado e responde sem “se” nem “talvez”. Com Jesus, quem aceita seu convite e se torna seu discípulo derruba os muros erguidos pelo sistema de pureza, que classifica as pessoas entre puras e impuras, justas e pecadoras. Jesus questiona e enfrenta essa separação, afirmando que, como o médico se ocupa dos doentes, o Filho de Deus veio para se ocupar dos pecadores, e não dos que se autoproclamam justos. Sua especialidade é ir ao encontro da ovelha perdida.

Hoje, o muro que nos separa é erguido pelas ideologias da meritocracia, do nacionalismo, do machismo, do racismo, do status social, cultural e econômico. São elas que rotulam e excluem dos bens e do prestígio social quem é diferente ou é visto como ameaça. É o medo do outro e do diferente que nos leva a construir muros, fechar portas e destruir pontes.

 

Meditação:

§ Leia atentamente, palavra por palavra, e contemple gesto por gesto esta cena memorável na casa de Levi/Mateus

§ Perceba a alegria agradecida que aquelas pessoas resgatadas em sua dignidade transmitem, e alegre-se com elas

§ Diante deste eloquente gesto de Jesus, porque alguns cristãos se escandalizam quando defendemos os marginalizados?

§ Com qual dos grupos você, interiormente, se identifica: com os sadios, “bons” e justos; ou com os doentes, “maus” e pecadores?

quinta-feira, 6 de março de 2025

Qual é o jejum que agrada a Deus?

Qual é o jejum dos cristãos, o jejum que agrada a Deus? | 644 | 07.03.2025 | Mateus 9,14-15

No texto que meditamos na quarta-feira de cinzas Jesus já questionava a atitude que pode contaminar o jejum, a esmola e até a oração. E indicava a postura correta e capaz de manter o sentido profundo destas expressões de piedade. Hoje, depois de ser questionado pelos fariseus sobre seu desprezo pelo jejum, Jesus é interrogado pelos discípulos de João Batista sobre o mesmo tema: “Por que razão nós e os fariseus praticamos (muitos) jejuns, mas teus discípulos não?”

Este episódio dos evangelhos, mesmo que pareça contradizer a recomendação da Igreja para o tempo da quaresma (jejum, oração e partilha), resgata o sentido original do jejum: romper com os mecanismos de dominação e de opressão, como ensina o profeta Isaías (cf. 58,1-9). É isso que Jesus faz e ensina. Diversamente dos fariseus, ele acolhe e reintegra as pessoas oprimidas e marginalizadas à convivência social, proclamando sua dignidade, e esse é o jejum que agrada a Deus.

No episódio que antecede o questionamento de hoje, Jesus chamara para junto de si e para ser seu discípulo um cobrador de impostos, terrivelmente odiado e desprezado pelos judeus; perdoou pessoas consideradas publicamente pecadoras; curou e reintegrou doentes. Para essa gente, o jejum que acompanha as situações dolorosas e a luta pelo reconhecimento da indignidade haviam chegado ao fim, e, diante de tamanha graça de Deus, não poderiam não festejar.

O ensino e as atitudes de Jesus desconcertam, mas, para ele, o jejum é luto, e a partilha à mesa é vida. Com Jesus e com o Reino de Deus, o clamor de dor se transforma em louvor e gratidão. Como “noivo” da Nova Aliança de Deus com seu povo, Jesus tem autoridade para relativizar ou mudar alguns preceitos, por mais sagrados que possam parecer. Ninguém jejua numa festa de casamento!

Quando Jesus é “retirado” do meio de nós e volta a ser crucificado nos seus “irmãos mais pequeninos”, o jejum volta a fazer sentido: jejuaremos para que a festa da vida seja para todos; privar-nos-emos de algo para fazermo-nos dom, para partilhar, para cuidar da Casa Comum, para lutar contra a opressão e pelo fim das guerras a partir de dentro de nós mesmos.

 

Meditação:

§ Leia atentamente, palavra por palavra, estes dois versículos do evangelho segundo Mateus

§ Se possível, leia também o episódio que antecede o trecho de hoje, a narração da refeição de Jesus na casa de Mateus (Mt 9,9-13)

§ O que significa dizer que não podemos fazer jejum enquanto o noivo está conosco, mas somente quando ele nos for tirado?

§ Por que o jejum encontra hoje tanta resistência entre nós, e qual seria o sentido aceitável e cristão do jejum?

quarta-feira, 5 de março de 2025

A decisão está em nossas mãos

Perder ou ganhar a vida: a decisão está em nossas mãos  | 643 | 06.03.2025 | Lucas 9,22-25

As cinzas que recebemos ontem reforçam o chamado contundente à conversão e à adesão ao Evangelho do Reino de Deus. Como todas as criaturas, os seres humanos somos vulneráveis, e a vida escapa ao nosso controle. Hoje, no segundo dia da quaresma, Jesus nos fala do seu caminho de encarnação radical na condição humana humilhada, e o propõe como regra de vida para aqueles que, crendo nele, seguem seu caminho.

Esta lição de Jesus no processo de formação dos discípulos ocorre num momento importante. Os discípulos são tentados a voltar atrás, resistem à proposta de Jesus, têm dificuldades de mudar o modo de pensar e de agir. É nesse contexto que Jesus diz claramente quem ele é e a que veio. E, com a mesma clareza, fala que sua proposta e sua pessoa serão rejeitadas, perseguidas e eliminadas em nome da religião e dos bons costumes. A violência pode se esconder no intervalo entre um canto e um rito.

Estamos diante do “coração” da fé cristã: a realização do Reino de Deus, a construção da unidade num mundo polarizado e intolerante, passa pela doação da própria vida. É claro que Jesus não está falando de uma espécie de suicídio premeditado, nem de uma morte acidental. Ele diz que esse é o caminho de quem é enviado por Deus para ser um sinal inequívoco do seu amor por todas as pessoas, sem olhar para sua condição moral ou religiosa. É difícil legitimar nossas violências com o álibi da autodefesa.

Mas Jesus não é uma espécie de herói solitário, como aqueles que estrelam os filmes americanos. Nem alguém a ser apenas admirado e imitado. Seu caminho é o caminho de toda pessoa que nele crê: o boicote, a perseguição e a exclusão por parte das elites que dominam. Para Jesus, a cruz, ou o dom radical de si mesmo, não é um martírio espetacular e admirável, nem uma solução de emergência, mas a lógica predominante e permanente da fé.

Por isso, Jesus coloca seus discípulos de ontem e de hoje diante de uma encruzilhada, e pede que escolhamos entre dois caminhos alternativos: focar nossa caminhada antes de tudo em nossos interesses, salvar nossa vida a qualquer custo e viver mediocramente; doar a vida sem reservas pelos outros e pelo cuidado da casa comum, acessando, assim, uma vida plena e fecunda, que nada e ninguém pode aprisionar.

 

Meditação:

§ Leia atentamente, palavra por palavra, frase por frase, este ensino no qual Jesus apresenta o “miolo” do seu Evangelho

§ Se possível, leia também o episódio que antecede estas palavras (9,18-21), onde Jesus pergunta: “Quem vocês dizem que eu sou?”

§ O que significa propriamente salvar ou perder a própria vida? Como Jesus nos mostra isso no seu próprio modo de viver?

§ Por que continuamos vivendo preocupados apenas conosco mesmos, como se não tivéssemos nada a ver com os outros e com o planeta?

A conversão ao Evangelho é também uma conversão ecológica

Da terra viemos, à terra voltaremos!

Há quase dois mil anos atrás, o Papa Clemente I exortava os cristãos com palavras muito sugestivas. Ainda hoje ele nos convida a percorrer todas as épocas da história e verificar como, em cada geração, o Senhor “concede um tempo favorável da penitência a todos os que a ele quiseram converter-se. Noé proclamou a penitência, e todos que o escutaram foram salvos. Jonas anunciou a ruína aos ninivitas, mas eles, fazendo penitência de seus pecados, reconciliaram-se com Deus por suas súplicas e alcançaram a salvação”.

“Inspirados pelo Espírito Santo, diz o Papa e Mártir, os ministros da graça de Deus pregaram a penitência. O próprio Senhor também falou da penitência: “Não quero a morte do pecador, mas que mude de conduta. Deixa de praticar o mal! Ainda que vossos pecados subam da terra até o céu, ainda que sejam mais vermelhos que o escarlate e mais negros que o cilício, se voltardes para mim de todo o coração eu vos tratarei como um povo santo e ouvirei as vossas súplicas” (cf. Ez 33,11; Is 1,18; 63,16; 64,7; Jr 3,4; 31,9).

E continua: “Querendo levar à penitência todos aqueles que amava, o Senhor confirmou esta sentença com sua vontade. Obedeçamos, portanto, à sua excelsa e gloriosa vontade. Imploremos humildemente sua misericórdia e benignidade. Convertamo-nos sinceramente ao seu amor. Abandonemos as obras más, a discórdia e a inveja que conduzem à morte. Sejamos humildes de coração, irmãos, evitando toda espécie de vaidade, soberba, insensatez e cólera. Lembremo-nos das palavras do Senhor Jesus: “Sede misericordiosos, e alcançareis misericórdia; perdoai, e sereis perdoados; como tratardes o próximo, do mesmo modo sereis tratados; dai, e vos será dado; não julgueis, e não sereis julgados; fazei o bem, e ele também vos será feito; com a medida com que medirdes, vós sereis medidos” (cf. Mt 5,7; 6,14; 7,1.2).

Depois de vinte séculos de caminhada, a Igreja nos exorta e pede, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil:  “Nessa Quaresma, o desafio para a nossa conversão é cuidar da Casa: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade; da casa em que habitamos (família; da casa onde passamos grande parte do nosso tempo (trabalho); da casa em que nos relacionamos (cidade); e da nossa Casa Comum”.  E observam: “O pecado mais perigoso do nosso tempo talvez seja a separação entre criatura humana e natureza”.

“Esse é o pecado ecológico, essa visão das coisas e pessoas como meros objetos dos quais podemos dispor conforme nossos desejos”. Por isso, “precisamos urgentemente de uma conversão ecológica: passar da lógica extrativista, que contempla a terra como simples depósito de recursos, de onde podemos retirar aquilo que quisermos, como quisermos e quanto quisermos, a uma lógica do cuidado. Precisamos nos converter, contribuindo para restabelecer a harmonia quebrada”.  A terra é nosso berço e nossa mortalha!

Estamos numa encruzilhada, e ela é cada vez mais dramática: “Ou mudamos nossa maneira de ser e agir no mundo, reeducando nossos hábitos e costumes na relação com toda a criação, cumprindo nossa missão de cuidá-la e guardá-la, ou deixaremos para as futuras gerações uma Casa Comum insustentável, contrariando os desígnios do Deus Criador. Como nos diz o Papa Francisco, a escolha é nossa: “Formar uma aliança global para cuidar da terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida”.  É por aqui que passa a nossa conversão ao Senhor na Quaresma de 2025.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul

terça-feira, 4 de março de 2025

47ª Romaria da Terra do RS (Arroio do Meio)

Peregrinos do Vale de Lágrimas aos Novos Céus e Nova Terra

 

Onde estamos?

Acabamos der percorrer as ruas de uma cidade e as margens de um rio que escancaram feridas abertas. Aquilo que vimos são apenas algumas entre as muitas feridas que doem no corpo da terra e na vida do povo.

A culpa por este “vale de lágrimas” não é somente da chuva, nem do descaso de Deus. O responsável por este desastre e tantos outros é o modelo econômico tecnocrático. Essa ideologia venenosa considera a terra apenas como reserva de recursos e fonte de lucro. Ela está transformando o planeta num depósito de veneno e lixo. Ela nos leva à ilusão de que somos donos da terra e das pessoas, com procuração para explorá-las e saqueá-las.

Nossa mãe terra está sendo depredada, e nossos irmãos e irmãs vivem encurvados por essa forma míope de entender a economia. A mesma impiedade e avidez com que exploramos a natureza contamina nossas relações familiares, sociais e políticas. Os clamores da terra e os clamores dos pobres são duas expressões do único e mesmo grito de todas as vítimas, um clamor que sobe aos céus.

O ritmo de consumo, de desperdício e de agressão ao meio ambiente superou as possibilidades de auto regeneração do planeta. É isso que provoca catástrofes, como esta que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, e como aquelas que explodem por todos os lados. Nossa terra está cada vez menos rica, menos bela, e menos generosa. Esquecemos que somos feitos de terra, dela dependemos e a ela voltaremos.

 

A Palavra de Deus nos mostra por onde andar!

Não caminhamos sem rumo, mas como peregrinas e peregrinos de esperança. Viemos aqui porque acreditamos que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com aquilo que está por vir (cf. Rm 8,18) da bondade de Deus, pelas mãos generosas dos amados e amadas de Deus.

Mas peregrinamos gemendo! Toda a criação geme (cf. Rm 8,23) por estar sendo devastada, triturada, envenenada e transformada em mercadoria. Estas dores anunciam nascimento ou morte? Que sejam sinais de nascimento, depende da nossa responsabilidade, de uma conversão ecológica e social, estrutural e profunda. Todas as criaturas anseiam pela Nova Criatura que está sendo gerada em nós: irmãos e irmãs sem fronteiras, de coração grande, “fratelli tutti”.

Depende de nós, irmãs e irmãos! Aqui estamos para reassumir o compromisso de reconstruir a Casa Comum e cercá-la de cuidados. Precisamos fazer isso sobre bases sólidas. Precisamos “construir sobre a rocha”. Não adianta clamar a Deus ou reclamar dele! O sistema econômico e social deve ser edificado sobre uma Justiça maior que a justiça “dos escribas e dos fariseus” (cf. Mt 5,20). Ou seja: sobre uma relação justa com os pobres e com toda a criação. Sobre uma justiça social que dê as mãos à justiça ambiental.

A justiça social se expressa em relações e mecanismos sociais, jurídicos e econômicos que asseguram aos pobres e vulneráveis as condições de uma vida minimamente digna. A justiça ambiental se expressa em práticas de cautela, cuidado e conservação de todas as formas de vida, e na superação da ditadura da economia tecnocrática.

 

Lições do Povo de Deus

A bíblia sagrada nos ensina que as criaturas são, cada uma ao seu modo, um raio da sabedoria e da bondade de Deus. A nossa Casa Comum é uma irmã, com quem partilhamos a existência, uma boa mãe que nos acolhe em seu regaço. Formamos uma espécie de família universal das criaturas, e isso nos impele a um respeito sagrado e humilde para com todas as formas de vida. É da boca das criaturas mais vulneráveis que brota o mais belo louvor a Deus (cf. Sl 8).

A criação é um manancial de encanto e reverência. Em cada criatura, habita o Espírito vivificante de Deus. Desde o coração das coisas, o Espírito nos chama à comunhão, ao cuidado e ao louvor. Reconhecendo o valor e a fragilidade da criação e acolhendo a missão de cuidadores que recebemos do Criador, temos que desmascarar o mito do progresso econômico ilimitado que se manifesta no crescimento do PIB.

Deus declara que tudo é bom, inclusive o ser humano. Ele nos fez no sexto dia, mas estamos entre as demais criaturas, e não separados delas. Deus nos cria do barro da terra e nos alimenta com os frutos da terra. Sem ar, sem água, sem luz e sem terra, não existe vida humana. Deus confia tudo a nós para que, em seu nome, cultivemos e cuidemos. Não faz sentido destruir aquilo que Deus criou e disse que é bom!

 

Estamos numa encruzilhada!

Não podemos mais tratar as previsões catastróficas com desprezo e ironia. Vivemos uma grave emergência climática, e precisamos mudar urgentemente nosso estilo de produção e consumo. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de uma destruição sem precedentes.  Os Bispos do Brasil lançam o alerta: “A escolha é nossa; formar uma aliança global para cuidar da terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida” (Texto-base, 31).

A gravidade da crise humana, social e ecológica que vivemos nos obriga a pensar no bem comum. E nos pede para avançar na luta inteligente e articulada contra as desigualdades sociais e a depredação do meio-ambiente.  O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio e responsabilidade de toda a humanidade. A terra pertence à humanidade, e seus frutos devem beneficiar a todos, inclusive às gerações futuras.

A situação da terra e dos seus filhos e filhas pressiona e interroga nossas lideranças políticas e também a cada um de nós. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vem depois de nós? Entregaremos um planeta reduzido a ruínas, desertos e montanhas de lixo? Estamos numa encruzilhada! O futuro depende do que fizermos agora!

 

Evitemos a tentação dos atalhos fáceis!

Na busca de saídas, precisamos agir de forma organizada. Precisamos passar da constatação dos sintomas a ações corajosas, evitando atalhos que prometem soluções fáceis. Os problemas ambientais são inseparáveis dos problemas humanos e sociais. Existe uma única e complexa crise ética, social, política, econômica e ambiental. Tudo está interligado, e as soluções duradouras só podem ser sistêmicas.

Existem atitudes que dificultam soluções efetivas e duráveis.  E a primeira delas é negação criminosa, que quase sempre aparece abraçada à indiferença cínica.  Não faltam vozes que gritam nas praças e nas redes que não existe emergência climática. Outras vozes reconhecem que existem alguns sinais, mas dizem são de pequena importância. São cegos que se oferecem para guiar quem pensa que enxerga. Como os contemporâneos de Noé, eles continuam seus negócios, sem tomar conhecimento do dilúvio que está se armando.

Uma segunda atitude que retarda as soluções é a resignação acomodada à situação, arrematada pela confiança cega nas soluções técnicas e mágicas do fantasioso “mercado”. Os detentores do poder econômico e político querem mascarar os problemas ou ocultar seus sintomas. Promovem uma ecologia superficial e aparente, apregoando uma “economia verde”, que acaba reforçando a passividade e induzindo a uma “alegre irresponsabilidade”, como diz o Papa Francisco.

É preciso dizer com com clareza: os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente o meio ambiente. Dentro do esquema do lucro máximo e fácil não há como respeitar os ritmos da natureza, os seus tempos de degradação e regeneração. E que ninguém se iluda: os problemas mais sérios da humanidade não se resolvem apenas com avanços tecnológicos. A salvação do planeta e da humanidade não vêm da inteligência artificial, por mais sedutora que seja!

A causa ecológica também não pode se reduzir a um conjunto de medidas emergenciais e paliativas. É necessário desenvolver políticas municipais, estaduais e nacionais sérias e capazes de mudar nossa relação com a terra e com as pessoas. Os projetos econômicos precisam se subordinar a elas, e não o contrário. Mas se nós, cidadãos e cidadãs, não formos capazes de fazer pressão constante, as administrações públicas e dirigentes empresariais farão pouco ou nada.

 

A necessária conversão

Os Bispos do Brasil dizem que o pecado mais perigoso do nosso tempo é a separação entre a humanidade e a natureza, opondo ou submetendo uma à outra (cf. Texto-base, 118). Por isso, a recuperação e proteção do meio ambiente supõe uma postura ética e crítica: um olhar, um pensamento, uma política, uma educação, um estilo de vida e uma espiritualidade que interponham barreiras ao avanço de uma economia sem alma. Não haverá uma nova relação com a natureza sem um ser humano novo.

Cada geração pode tomar da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, também tem o dever de a protege-la e de garantir a continuidade da sua fertilidade para os demais povos e as gerações futuras. Não fazer isso significa incorrer num “pecado ecológico”, numa espécie miopia que vê as coisas e pessoas como meros objetos dos quais podemos dispor (cf. Texto-base, 52).

Precisamos desenvolver ações locais e globais que enfrentem o desafio da redução da poluição e, ao mesmo tempo, da escandalosa desigualdade social. A lógica que não respeita o meio ambiente é a mesma em que não leva em conta os mais pobres e frágeis. A lógica que dificulta a tomada de decisões para barrar a escalada do aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objetivo de erradicar a pobreza.

Mas, atenção! Os esforços para um uso sustentável dos recursos naturais e para a erradicação da pobreza e a segurança alimentar de todos os cidadãos não são obstáculos ao progresso. Eles são investimentos que trarão grandes benefícios econômicos a médio e longo prazo.

 

O que podemos e precisamos fazer?

A missão é a de guardiões da obra de Deu. Isso não é um aspecto secundário da experiência cristã. É parte essencial de uma existência virtuosa e digna.  A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa traduzir-se em novos hábitos, em novos estilos de vida. O amor nos impele a desenvolver estratégias para deter a degradação ambiental e desenvolver uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade.  

A ecologia integral se constitui de gestos e iniciativas quebram a lógica da violência, da exploração e do egoísmo. O cuidado da natureza vai de mãos dadas com a capacidade de viver juntos em comunhão. Urge redescobrir que precisamos uns dos outros, que precisamos de uma natureza e um ambiente inteiros. A “alegre superficialidade” pode levar a humanidade ao suicídio e à morte do planeta.

Mas, para se resolver uma situação tão complexa como essa que enfrentamos hoje, não basta que cada um seja melhor. Não é suficiente que cada um faça a sua parte. Precisamos de estratégias de mudança que sejam potentes e duradouras. Precisamos criar redes, movimentos e grupos de pressão que atuem nos espaços políticos locais, regionais, nacionais e internacionais. É preciso incidir nas instâncias que condicionam os processos culturais, elaboram as leis, formulam as políticas econômicos e decidem as prioridades dos países e do mundo.

Se não fizermos isso, a nossa Casa Comum continuará sendo tratada como um quintal, ou como um depósito de lixo. Estaremos reconstruindo a Casa Comum sobre um terreno arenoso, uma área de risco. E então ela terá dias contados, e nossos filhos e netos viverão num mundo imundo e inabitável. Pela primeira vez na história da humanidade, as próximas gerações poderão viver em condições piores do que nós. Ainda é tempo de evitar isso aconteça, mas o tempo é agora! “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer!”

+Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul

Cuidar da casa comum com fé, esperança e solidariedade

Cuidar da casa comum com fé, esperança e solidariedade | 642 | 05.03.2025 | Mateus 6,1-6.16-18

É desconfortável constatar que a fraternidade precisa de uma campanha especial. Mas esta iniciativa da Igreja do Brasil, iniciada já faz 60 anos, tem ajudado as comunidades cristãs a viver o espírito quaresmal numa perspectiva comunitária e social. Neste ano, somos interpelados mais uma vez a abrir os olhos para urgência de uma fraternidade que não se restrinja àqueles que são do nosso círculo familiar ou de trabalho. Somos chamados a uma conversão ecológica, a desenvolver uma ecologia integral.

O profeta Joel grita: “Voltai para mim com todo o vosso coração! Rasgai o coração e não as vestes! Voltai para o Senhor, vosso Deus! Ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia!” E Jesus, recomenda: “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça diante dos homens, só para serdes vistos por eles! Não façais como os hipócritas...” Até a oração, a esmola e o jejum, podem ser corrompidos pelo desejo de causar boa impressão.

Jesus começa sua exortação catequética com uma advertência contundente: “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente das pessoas, só para serdes vistos por elas!” Jesus não é ingênuo, e percebe que a busca de evidência e relevância pode contaminar até aquilo que parece mais piedoso, como a partilha mediante a esmola, a oração e o jejum. Estas práticas precisam ser expressão de algo mais profundo: a conversão ao Evangelho, a solidariedade com os necessitados e o cuidado da criação.

Jesus propõe uma atitude fundamental e efetiva para evitar esse risco: evitar a busca do aplauso e da publicidade, deslocando o foco de nós mesmos e nossas instituições para Deus e o Outro. É isso que nos justifica! O resto é teatro e espetáculo para impressionar as pessoas incautas. O que vale todas as penas é a aprovação de Deus, que vê o que é discreto e secreto, aquilo que ninguém vê, aqueles que ninguém quer ver e reconhecer.

Quando Jesus fala de “hipócritas”, está se referindo aos fariseus, pois eles se consideram melhores, puros e superiores a todos os outros. Sob a aparência de piedade e de fidelidade à lei de Deus, eles escondem, cultivam e praticam a exterioridade, a arrogância, a violência. Mas, falando assim, Jesus não se cansa de prevenir também seus discípulos contra esta permanente tentação que nos ronda como pessoas que se consideram melhores e mais piedosas que os outros.

 

Meditação:

§ O Brasil vive uma situação sombria de intolerância e polarização, de enfrentamentos desleais e difamantes entre diversos grupos.

§ Como viver a fé de forma dialogante, testemunhal e respeitosa neste contexto tão minado?

§ Como viver o sentido cristão do jejum e da esmola numa sociedade regida pelo mercado e em meio a tanta gente que passa fome?

§ Que atitudes e compromissos podemos assumir para expressar a conversão ecológica e o cuidado da Casa Comum?

segunda-feira, 3 de março de 2025

Ninguém pode se apresentar a Deus cobrando méritos

Ninguém pode se apresentar a Deus cobrando méritos | 641 | 04.03.2025 | Marcos 10,28-31

Continuamos com o evangelho segundo Marcos. Os versículos de hoje estão situados após a cena da deserção do homem rico diante das exigências de Jesus para ser seu discípulo. Ele sente-se bom e irrepreensível, um ‘homem de bem’ como se diz hoje, e volta para casa desiludido. Diante das palavras e atitudes daquele homem, Jesus desabafa: que um rico aceite seu caminho é tão raro como um camelo passar pelo buraco de uma agulha!

Os discípulos reagem à comparação de Jesus, pois pensam que se os ricos não estão mais perto de Deus, o que dizer então dos doentes, dos pobres e dos estrangeiros, que eles tratam como ‘sujeitos suspeitos’? Mas, aquilo que para muitos parece impossível, para Deus é absolutamente normal: a riqueza dos ricos não é bênção de Deus, e a prosperidade não é sinal de fidelidade; no reino de Deus e no coração do Deus do Reino, os pobres e doentes estão no centro!

É neste contexto que Pedro toma a Palavra e apresenta a Jesus um fato: aquilo que o jovem rico não quisera fazer, os discípulos o fizeram, livremente ou por causa das perseguições. Eles deixaram os bens e seguiram Jesus, em busca do único bem: do reino de Deus. Pedro parece “cobrar a conta”, pois ele e seus companheiros ainda não haviam provado a vida eterna, apenas incompreensões.

Jesus responde solenemente, sublinhando que o retorno prometido estava assegurado, mas em dois tempos: agora, durante esta vida; no mundo futuro. Agora, quem relativizou tudo pelo absoluto do Reino de Deus no caminho de Jesus, já recebe 100 vezes mais em termos de hospitalidade, ajuda, companheiros e apoiadores mediante a fraternidade e a partilha comunitária. Mas isso sempre em meio às perseguições, próprias do discípulo no mundo.

No Reino de Deus plenamente realizado, que começa aqui, mas aqui não chega ao seu termo, está assegurada uma vida densa e intensa em termos de dinamismo e de sentido, uma vida que desborda a história e avança para a eternidade. Com o olhar fixo no “mundo futuro”, o discípulo de Jesus é convidado e ver já “agora” os frutos da sua entrega: os benefícios da vida em comum, que são os irmãos e irmãs, os bem partilhados, um futuro de esperança.

 

Meditação:

§ Recomponha a cena, relendo os versos 15 a 27, que relatam o encontro de Jesus com as crianças e, depois, com o homem rico

§ Observe a reação dos discípulos, especialmente do homem que se apresentou como candidato a discípulo

§ Será que não somos tentados a nos apresentar a Deus ostentando nossos méritos, sem consciência daquilo que nos falta?

§ Conseguimos perceber que tudo aquilo do que abrimos mão nos havia sido dado, e que tudo o que temos pertence a todos?


domingo, 2 de março de 2025

A partilha nos faz livres para seguir Jesus

A partilha solidária nos faz livres para seguir Jesus | 640 | 03.03.2025 | Marcos 10,17-27

Na reflexão do sábado vimos que, na família cristã iluminada pelo Evangelho, assim como nas comunidades eclesiais, as crianças têm seu lugar e são bem colhidas. Mais: todas as pessoas e grupos sociais fragilizados e vulneráveis devem ser acolhidos e tratados como cidadãos plenos, portadores de dignidade e sujeitos de direito. É isso que nos ensina Jesus, nosso Mestre.

Na cena do evangelho de hoje Jesus conclui seu dramático ensinamento sobre as novas relações sociais instauradas pelo Reino de Deus e nos mostra plasticamente como “pessoas de bem” têm enormes dificuldades de entender e seguir Jesus. O personagem da cena de hoje é proprietário de muitos bens, e não faz parte do grupo dos discípulos de Jesus. Nesta cena, a questão do maior e do menor é aplicada às classes sociais.

O sujeito anônimo se aproxima de Jesus sem disfarçar seu jeito bajulador. Ele se dirige a Jesus com uma saudação que equivale â expressão “excelência”, esperando ser tratado da mesma forma. Jesus rejeita o título para si mesmo e não o usa para o homem rico. Na verdade, Jesus reprova esse tipo de bajulação e falsidade.

O homem pergunta o que deve fazer para conseguir a vida eterna, e Jesus recorda alguns dos mandamentos, acrescentando “não prejudicarás (roubarás) ninguém”, que não aparece entre os mandamentos. Nesse acréscimo parece estar embutido uma advertência ou um questionamento: como ele adquiriu suas riquezas?

O homem não se dá por rogado, sente-se perfeito, não percebe o que lhe falta: ir, vender, dar, vir, seguir. Em outras palavras: falta-lhe libertar-se das propriedades que o possuem e tornar-se discípulo de Jesus. Isso ele não suporta, e procura esquivar-se diante do imperativo de repartir os bens com os pobres para ser livre. Prefere ficar com suas coisas que seguir Jesus na companhia dos discípulos.

O comentário de Jesus diante da atitude do home não deixa dúvidas: a posse de muitos bens é um grande impedimento para a adesão ao Reino de Deus. Jesus é muito cético diante dos discípulos ricos. A metáfora do camelo e do buraco da agulha, uma picante ironia de Jesus, o dizem claramente. A solidariedade com os pobres é a porta de entrada no Reino de Deus. Riqueza não é sinal de bênção!

 

Meditação:

§ Releia o texto e contemple a cena, procurando dar atenção a cada gesto e palavra, tanto as de Jesus como as do home rico

§ Não ocorre também hoje considerar as elites como mais abençoadas, exemplares e dignas de serem imitadas?

§ Como nos aproximamos de Jesus: ostentando nossos méritos e perfeições, sem consciência das nossas carências e desejos?