Somos salvos e libertados pela Graça de Deus
Para não dizer que não falei da Graça de Deus, passo das costumeiras
reflexões de cunho social a temas espirituais. Mas aviso desde já que, segundo
Jesus Cristo e o Evangelho, as ações espirituais são essencialmente materiais: repartir
o pão com os famintos, dar água a quem tem sede, socorrer os doentes, visitar
os presos, etc. Para os famintos, o alimento é uma necessidade humana; mas
nossa reação diante deles, é uma questão espiritual.
Depois de receber a rígida formação dos fariseus, de apostar
todas as fichas no estrito cumprimento da lei e de perseguir os cristãos por
causa da pouca importância que davam às imposições e interdições da lei
judaica, Paulo faz uma profunda e inusitada experiência de encontro com Jesus
Cristo no caminho para Damasco. E, a partir disso, descobre-se cego e limitado,
necessitado de ajuda e profundamente acolhido por Jesus Cristo.
Esse encontro com Jesus e seu Evangelho faz ruir diante dos
olhos de Paulo o inteiro edifício teológico e moral que abrigava a sua fé: ele joga
no lixo como desprezível tudo aquilo que antes lhe parecia precioso, que
considerava privilégio e mérito adquirido pela origem judaica e pela prática
rigorosa da lei. Ele descobre que a salvação não é prêmio para os cumpridores
da lei, mas graça que nos vem de Deus em Jesus Cristo.
A convicção de que somos salvos pela Graça de Deus faz parte
do núcleo dinâmico da fé cristã, tanto na versão católica como protestante. E
isso significa, em primeiro lugar, que ninguém chega à plena realização humana
quando se enclausurando-se em seu individualismo, fechando-se numa dourada
indiferença frente às necessidades alheias, confiando complacentemente no poder
do dinheiro, do saber e das normas morais.
Crer que somos salvos pela Graça significa, portanto,
abandonar toda e qualquer forma de meritocracia, esta ideologia que ensina que
a vida agracia os bons, que Deus abençoa os empreendedores, que o saber pode
ser comprado e usado em favor da própria prosperidade, sem reconhecer sua
origem e sua finalidade social e universal. Mas não há como pintar Jesus como
alguém distribuindo globos de ouro aos ‘melhores’...
Hoje, a lei que Paulo relativiza e contra a qual se rebela
recebe outros nomes, entre os quais estão estes: ‘Quem pode mais, chora menos’;
‘o importante é levar vantagem em tudo’; ‘cada um para si e deus para todos’;
‘lei da oferta e da procura’; ‘o mercado e a concorrência são os únicos
garantidores da justiça e do bem-estar’; ‘os direitos humanos são para os
humanos direitos’; ‘faça o bem a quem é do bem’...
Afirmar que somos salvos pela Graça de Deus significa também
reconhecer que todos – homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, cidadãos
e estrangeiros, católicos e protestantes, crentes e não crentes – somos
pecadores acolhidos por Jesus Cristo e reconciliados com Deus. A Graça de Deus
nos torna iguais, membros do mesmo corpo, herdeiros das mesmas Promessas. E
nisso se realiza plenamente a humanidade que pulsa em nós e a santificação
operada pacientemente pelo Espírito Santo no ventre da história.
Dom Itacir Brassiani msf
Bispo de Santa Cruz do Sul
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