(Jn 3,1-5.10; Sl 24/25; 1Cor 7,29-31; Mc 1,14-20)
Como não lembrar, no início do tempo comum e em pleno período de férias, o evento do Fórum Social Mundial? Há mais de uma década ele nascia como um grito visceralmente evangélico: ‘Um outro mundo é possível’. E desde então o mundo não é mais o mesmo! As vozes e as mãos que anunciam e tecem alternativas se uniram e o mundo de Davos a contra-gosto reconheceu sua existência. Como não ver nesse grande laboratório de diversidade e de alternativas um eco daquilo que aconteceu às margens do mar da Galiléia dois mil anos atrás? As palavras são outras, mas a perspectiva é a mesma: “O Reino de Deus está próximo! Convertam-se e acreditem nessa boa notícia!” E esse grito reuniu discípulos/as, espalhou sementes, gerou alternativas e ainda hoje nos desperta do sono letárgico de um mundo cheio de produtores, distribuidores e consumidores, mas carente de pessoas plenamente humanas e cidadãs.
“Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo!”
O cristianismo se tornou o maior movimento religioso do Ocidente, não obstante o constante crescimento do islamismo. Sua influência é tal que o mundo inteiro acabou aceitando a divisão da história em antes e depois de Jesus Cristo. Mas em nome dele, algumas ou muitas barbaridades foram cometidas: cruzadas, destruição dos povos latino-americanos, inquisição, guerras de ontem e de hoje, marginalização e extermínio de culturas, etc.
Infelizmente, há outras perversões em curso, algumas delas com cheiro e sabor de boa piedade. Como avaliar o mal produzido pelo esquecimento da dimensão política e social da fé em Jesus Cristo ? Como não chamar de traição a identificação pura e simples do cristianismo com a cultura dominante, masculina, branca e ocidental? Como reparar o mal provocado por uma espiritualidade que reduz Jesus Cristo a um pregador da vida depois da morte, e a fé a uma questão privada e íntima?
É bem outra coisa o que ouvimos no Evangelho. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, o anúncio que resume sua pessoa e sua missão é: “O tempo se cumpriu: o Reino de Deus está próximo!” Ao lançar mão dessas palavras Jesus sabia da força que tinham no imaginário do seu povo. Com este conceito se anunciava o início do novo céu e da nova terra, o começo de uma nova sociedade, na qual idosos e crianças, trabalhadores do campo e da cidade teriam lugar e seriam tratados como gente (cf. Is 65,17-25; Zc 8,1-23). Nada mais longe disso que uma inócua paz para os corações...
“Caminhando à beira do lago da Galiléia, Jesus viu Simão e o seu irmão André...”
O Reino de Deus era uma esperança que os profetas de turno se encarregavam de mater viva. Nos tempos de êxito ou de fracasso político-insitucional essa esperança quase desaparecia, sufocada pela ânsia de poder ou desmentida pela dura realidade. Mas sua semente promissora era teimosa e cuidadosamente guardada e cultivada pelos pobres de Deus que esperavam o ‘Dia do Senhor’. Nenhum reino, por mais poderoso que fosse, pode convencer o povo de que o fim da história havia chegado.
O anúncio do Reino de Deus realizado por Jesus apresenta pelo menos duas novidades: ele desloca o tempo do futuro para o presente; e estabelece cada pessoa humana como seu protagonista. Jesus não anuncia o ‘novo céu e a nova terra’ para um tempo indeterminado, num futuro distante e num lugar incerto, mas diz que o tempo de espera terminou e que esta realidade está próxima do povo palestino. A expressão ‘está próximo’ indica que o reino está batendo à porta, é iminente.
Por outro lado, mesmo mantendo o princípio de que o reino é de Deus, Jesus não atribui sua realização exclusivamente a Deus ou a si mesmo. Certo, ele tem o papel de protagonsita, mas também associa a si homens e mulheres que levam o Reino de Deus adiante. O Reino é tanto mais de Deus quanto mais tiver como protagonistas homens e mulheres comuns, livres e libertadores, despojados e solidários. É na ação de libertar que as pessoas se tornam livres e Deus reina.
“Segui-me...”
É por isso que, depois de fazer ressoar seu anúncio e de pedir o engajamento dos seus ouvintes – “convertam-se e acreditem nessa boa notícia!” – Jesus chama os primeiros discípulos. O pré-requisito é a conversão, a ruptura com o modo de pensar que ensina que o mundo não tem jeito, que a opressão sempre existiu e sempre existirá, que a fé não tem nada a ver com a política, e assim por diante. Para acreditar que um outro mundo é possível é nessário mudar os esquemas mentais, converter-se.
Caminhando às margens do mar da Galiléia Jesus vê Simão, André, Tiago e João e os convida a ir com ele, a se tornarem discípulos e aprendizes. Os quatro são pescadores, o que significa que têm um nível um pouco acima da pobreza. Mas são trabalhadores comuns de uma região marginal e suspeita, o que significa que o Reino de Deus não é uma espécie de guerra santa ou uma tarefa que supõe muito saber e grande poder. Deus reina quando os calados falam, os passivos agem, os pobres se dão as mãos...
Para seguir Jesus e mudar seu esquema mental, aquele quarteto teve que abandonar o trabalho e distanciar-se da família. Seguir o caminho do Reino é uma decisão que exige rupturas, e a primeira delas é com a segurança econômica. Por mais humilde que fosse, o trabalho de pescador oferecia uma certa segurança econômica, inclusive poder sobre empregados, como é o caso de Tiago e João. Com isso, eles rompem também com a sustentação do sistema opressor através do pagamento de impostos!
Mas, em seguida, os discípulos rompem com a segurança social dada pela família. Deixando o pai, eles estão como que rompendo com um modelo de família centrado na figura e no poder masculino e abrindo-se para novas relações, menos piramidais e mais fraternas. Rompendo com a ordem sócio-econômica dominante, os discípulos entram na escola de Jesus e começam a assimilar um novo pensar e um novo agir. Em linguagem de hoje, os discípulos são inseridos numa prática social alternativa.
“E eu farei de vós pescadores de homens.”
Aceitar o convite e seguir Jesus Cristo é uma decisão inteligente e exigente. Inteligente porque supõe um claro discernimento sobre o caminho da realização pessoal e da libertação social pelas quais ansiamos ardentemente. Exigente porque implica em deixar o cômodo mundo privado e seus interesses estreitos e arriscar-se no tenso e disputado espaço público, tomando partido em favor dos pobres e, quando necessário, contra os poderosos e seus aliados.
É isso que significa originalmente a surpreendente expressão “pescadores de homens”. Jeremias fala em ‘pescar’ e ‘caçar’ o povo libertando-o das mãos dos opressores para levá-lo de volta à sua terra (cf. Jer 16,16-18). Ezequiel ironiza e ameaça o poder do rei do Egito, que escraviza os hebreus: “Cravarei arpões no seu queixo” e “puxarei você para fora do rio com todos os peixes grudados nas suas escamas” (cf. Ez 29,1-16). Falando contra a elite da Samaria, Amós diz que vai chegar o dia em que ela vai ser “carregada com ganchos e seus filhos com arpões” (cf. Am 4,1-3). A pesca é o julgamento de Deus!
Assim, para não romantizar ou espiritualizar apressadamente a força dessa expressão, precisamos colocá-la no seu devido lugar, ou seja: na ação de criticar e mudar a ordem de poder que privilegia uma minoria à custa do sofrimento de muitos, enfrentando seus defensores. Estabelecendo os discípulos como “pescadores de homens” Jesus os compromete nessa ação de barrar o poder dos dominadores e reunir os oprimidos como povo, com memória, articulação e utopia. Tornar-se pescador de gente significa dar continuidade àquilo que o próprio estava fazendo.
“Pois a figura deste mundo passa...”
Deus pai e mãe, fonte e destino dos nossos sonhos e do bom viver que humanidade busca, às vezes de modo inseguro e incerto: Ensina-nos a compreender que a figura deste mundo, com todas as suas propostas de prazer, bem-estar e poder auto-referencializados não tem consistência nem futuro. Ajuda-nos a descobrir com alegria que tudo câmbia, e que um outro mundo está nascendo nas mil ações dos discípulos e discípulas do teu Filho. Cura e abre nossos ouvidos, a fim de que sejamos capazes de ouvir a Boa Notícia de que o teu Reino está próximo. Envia o vento do teu Espírito para mudar nossos rígidos e medrosos sistemas mentais e dinamizar a necessária ruptura com as amarras que reciclam os poderes moribundos. Faz da tua Igreja uma comunidade de pescadores/as de gente, de servidores/as do teu juízo crítico e libertador sobre os sistemas deste mundo. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Um comentário:
Feliz o link que faz do FSM -um dos espaços privilegiados da diversidade- com a leitura do evangelho.Surpreendente- parabéns, o blog está lindo!
Postar um comentário