Deus é amor. Existe felicidade maior que o amor, que amar e ser amado/a? Deus é felicidade porque é amor, porque é a felicidade do amor. É a infinita felicidade do amor infinito. Tudo o que existe emerge deste amor. Todas as coisas são feitas por amor e são amor.
Deus não haveria criado alguma coisa que odiasse, diz o livro da Sabedoria (cf. Sb 11,24-25), e o simples fato de que mantém algo vivo é prova do seu amor. Assim, o que possibilita a existência de todas as coisas é o amor de Deus, o beijo do amor de Deus.
Picasso tinha razão quando dizia que no fundo não sabemos o que é uma árvore ou uma janela. Todas as coisas são muito misteriosas e estranhas (no sentido picassiano), e se esquecemos esta estranheza e mistério é simplesmente porque nos habituamos a vê-las. Comprendemos as coisas de modo muito obscuro. O que são as coisas? São o amor de Deus feito coisa.
Deus se revela a nós através das coisas. As coisas são mensagens do seu Amor. Quando leio um livro, ele está me falando através desse livro. Quando levanto os olhos para contemplar a paisagem, vejo que ele a criou para que eu a veja. A pintura que estou admirando, foi por ele inspirada ao pintor para que eu a contemplasse. Tudo o que degusto foi amorosamente doado por Deus para que eu o desfrute, a toda dor é igualmente doada amorosamente por Deus.
O amor de Deus criou o mundo e continua a criá-lo a cada instante no processo da evolução. Como o Deus criador é também o Deus transformador, a evolução do universo é obra do seu amor. Dizendo “crescei e multiplicai-vos”, Deus estabeleceu a lei da evolução.
O mundo não é como um quadro pintado há séculos por um artista, agora é exposto num museu. Antes, é uma obra de arte em constante processo de criação no atelier do artista. Deus não é o mármore – como afirmou Paulo, diante das esculturas, no areópago de Atenas – nem uma escultura. Ele é o Deus vivo, e nele vivemos, nos movemos e existimos. É dele que vem o mármore do areópago, as mãos que o esculpiram e a inspiração que moveu as mãos do artista.
Cada um/a de nós se considera o centro do universo. Por isso, vivemos num universo falso, como o universo imaginado pelos astrônomos pré-copernicanos. As coisas nos interessam na medida em que servem aos nossos pequenos interesses. Mas só seremos felizes se Deus for o centro do nosso universo. Assim nos alegraremos por sua existência, porque as coisas são como são, porque tudo acontece como acontece, porque Deus assim quer, independentemente do fato de servirem ou não aos nossos pequenos interesses.
Deus é amor, mas o nosso amor próprio é um auto-amor e, por issso, é um anti-amor. O amor é abandono confiante ao outro, e o amor próprio é o auto-abandono ou o não-abandono. O amor próprio é amor ao contrário, é amor voltado a si mesmo, é ódio.
Amar os outros como a nós mesmos parece uma coisa difícil de praticar e também de compreender. Mas este é o estatuto natural da pessoa no paraíso, o estado natural da pessoa humana. A pessoa humana é criada como uma totalidade orgânica que a faz indivíduo. “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gen 1,27).
Somos um só corpo composto de inumeras individualidades, e o egoísmo individual é anti-natural, como seria anti-natural o egoísmo de uma célula do organismo que, concentrando-se em si mesma, antepusesse seu interesse individual à função orgânica do conjunto, entrando em guerra com as outras células (como é o caso do câncer).
O amor próprio é o câncer do Corpo Místico, do Corpo Cósmico. Como diz Paulo: “O olho não pode dizer à mão ‘Não preciso de ti!’, nem a cabeça dizer aos pés “Não preciso de vós!’” (1Cor 12,21).
(Ernesto Cardenal, Canto all’Amore, I classici dello Spirito, Fabbri Editori, 1997, p. 50-52. Tradução de Itacir Brassiani msf)
Um comentário:
Ernesto Cardenal é divino nesse texto!... É da essência do amor ser revolucionário, o que ele também foi!Que lembrança maravilhosa fazer essa tradução linda!
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