A simples repetição de uma expressão, somada a um determinado contexto eclesial que condiciona a interpretação, pode esvasiar sua aderência à realidade, desviar sua perspectiva e até trair seu sentido fundamental. É o que acontece com duas frases centrais, propostas na liturgia deste terceiro domingo do tempo comum.
Refiro-me concretamente às seguintes expressões: “Convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1,15); “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens” (Mc 1,17). Ambas fazem parte, segundo o evangelho de Marcos, das primeiras palavras pronunciadas por Jesus Cristo. Portanto, palavras com sabor de novidade, essenciais, cheias de consequências.
“Convertei-vos e crede na Boa Nova!”
A primeira frase – “Convertei-vos e crede na Boa Nova” – está ligada indissoluvelmente àquela que a antecede: “Completou-se o tempo, e o reino de Deus está próximo”. Este anúncio que saiu da boca de Jesus e ressoou na periférica Galiléia, tem claro sabor de uma boa notícia: o tempo amadureceu, a espera chegou ao fim e Deus toma nas mãos as rédeas da história – usurpadas violentamente pelos poderes imperiais de todo tipo – para fazer justiça aos oprimidos.
Mas por quê a recepção de uma boa notícia como esta exige fé e conversão? Primeiro, porque nossa tendência é postergar a intervenção libertadora de Deus para um futuro indeterminado ou situá-la no âmbito nebuloso do coração, da alma ou do céu. Segundo, porque sempre imaginamos que Deus age sem recorrer a mediações humanas ou, no máximo, recorrendo à força dos poderosos.
Jesus associa à intervenção libertadora de Deus sua própria e frágil ação, inclusive a paixão na cruz, e a ação de pessoas absolutamente comuns e desprezíveis, como aquelas duas duplas de pescadores galileus. Reconhecer e aceitar que Deus realiza seu reinado no mundo neste momento da história e mediante pessoas deste nível só é possível no horizonte da fé e da mudança radical de mentalidade.
“Farei de vós pescadores de homens...”
A segunda frase em questão – “e farei de vos pescadores de homens” – precisa ser libertada de um contexto hermenêutico determinado pelas demandas da instituição eclesiástica e condicionado por um romantismo sem raízes históricas. E precisa ser colocado em relação com a perspectiva profética e com a própria ação de Jesus.
O profeta Jeremias fala em pescar e caçar o povo no sentido de libertá-lo das mãos dos opressores e de levá-lo de volta à sua terra (cf. Jer 16,16-18). A seu modo, o profeta Ezequiel ironiza e ameaça o poder do rei do Egito, que escraviza de novo os hebreus: “Cravarei arpões no seu queixo” e “puxarei você para fora do rio com todos os peixes grudados nas suas escamas” (cf. Ez 29,1-16). E o profeta Amós, falando contra a elite da Samaria, diz que vai chegar o dia em que ela vai ser “carregada com ganchos e seus filhos com arpões” (cf. Am 4,1-3).
Fica claro que a pesca é uma metáfora que ilustra o julgamento de Deus, sua ação revolucionária de libertar os oprimidos e meter na cadeia os opressores! Se, por um lado, a ação de Jesus dá visão aos cegos ver, passos aos paralíticos, ouvidos aos surdos, vida aos mortos, pureza aos leprosos e boas noticias aos pobres (cf. Lc 4,18-19; 7,18-23), por outro, dispersa os que têm planos orgulhosos, derruba os poderosos dos seus tronos, despede os ricos de mãos vazias, dá o primeiro lugar aos últimos e põe os primeiros no fim da fila (cf. Lc 1,46-56; Lc 13,30). “Pois o Senhor ama o seu povo, enfeita os humildes com a vitória” e os chama a “prender com correntes seus reis, seus nobres com grilhões de ferro” (cf. Sl 149,4.8).
Parece incrível, mas é para esta obra magnífica e surpreendente que Jesus Cristo convida aqueles pescadores galileus, dando-lhes prioridade frente a tantos outros possíveis agentes. E é nesta mesma ação libertadora e regeneradora que ele alista todos/as os/as que em seu nome são batizados/as.
Será que este projeto tem futuro? Convertamo-nos e acreditemos nesta boa notícia!
Itacir Brassiani msf
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